Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Da devoção ao seguimento : contemplando o Sagrado Coração de Jesus,

Na casa da minha infância os quadros dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria ficavam na sala de jantar. Passar por eles significava ser seguido por aqueles olhares. Posicionados como estavam, no centro da casa como reza a devoção, era impossível não senti-los me acompanhando, o que me causava incômodo, várias vezes por dia.

Fossem só os olhares estaria bem, mas havia mais. Jesus e Maria tinham expostos os corações e isto era aterrorizante. Nunca tinha visto alguém com o coração de fora. Ficava pensando se alguma daquelas velhinhas mais fervorosas da Igreja era assim. A Assunta sempre sentada no canto direito do primeiro banco, o véu cobrindo o rosto vincado, não teria o coração desse jeito sob o vestido preto?

Tempo de catecismo e recebo num sábado suas regras. Dentre elas a obrigação da missa em nove primeiras sextas feiras de cada mês. Seguidas, sem faltar nenhuma, era frisado. Em casa a pergunta é: “Mãe, missa não é para se ir no domingo?” A explicação vem rápida e curta. “Cumpra a devoção, meu filho. Não atendê-la é correr grandes perigos de não se salvar”.

O tempo que para umas coisas voa, em outras é lento demais. Quem disse que essas nove primeiras sextas feiras chegavam? Por essa mesma época soube de histórias bem impactantes. Do árabe, seu Fanô, que toda vez que estava prestes a completar os nove meses, tinha algum imprevisto, ou se esquecia da obrigação. Havia mais de cinqüenta anos que tentava cumprir sem conseguir. Por isso andava curvado e não falava com ninguém. “Era por desespero puro”, me contaram. O velho de uma hora para a outra sumiu. Será que morreu sem cumprir a devoção completa?

História também do menino Pascoal. Acordado pela mãe numa primeira sexta feira, preferiu o conforto da cama e ainda reclamou que as missas eram cedo demais. Ao voltar da Igreja sua mãe foi chamá-lo para o café e estava mortinho.

Para onde teriam ido os dois? Com certeza que para lugar bom não havia sido. E lá iam histórias assim povoando o nosso imaginário infantil. Importa o alívio de ter cumprido os nove meses regulamentares. Senti-me feliz. O passaporte para o céu estava enfim carimbado.

Chega o décimo mês e sou sacudido na sexta feira fria. “Mãe, já completei as nove comunhões. Para que mais?” “Não diga isto, filho. Deus escuta tudo. Vamos para provar que teremos muito mais comunhões do que as exigidas. Com a vida eterna não se brinca e é melhor ter sextas-feiras de crédito garantindo aquelas de pouco fervor”.

Crescia e a fé, minha e dos meus pais, amadurecia. O divisor de águas foi o Concílio Vaticano II. A missa ficara mais interessante, pois entendia o que o padre dizia e via o que fazia. Das primeiras sextas feiras não mais se falava e não sentia falta. Era roupa que não mais servia. Confessar-se também era diferente. O padre tinha deixado de lado aquele tom ameaçador causador de tremedeira pela fila e fazendo desejar que nunca chegasse a hora de enfrentá-lo naquele buraco de tela do confessionário.

Tempo que segue e tomo conhecimento, através do Padre Hermann Rodrigues sj, da Colômbia, de fato acontecido com Anthony de Mello, jesuíta indiano. Conta-nos ele que o Padre viajava para ministrar um dos seus muitos cursos mundo afora. Era hóspede numa casa de freiras duma cidade qualquer.

Elas, obviamente, que não iriam perder a chance de ouvir aquele homem famoso ali tão perto. Pede-lhe então a superiora que fizesse uma palestra, numa noite após o curso. O Padre, mesmo cansado, aceita, mas comete o engano de não sugerir um tema. Algo que não demandasse o esforço da preparação.

“Minha irmã, sobre o que gostariam de me ouvir falar? “Ah, Padre Anthony, seria tão bonito escutá-lo pregar sobre o amor incondicional de Deus”. Ele, extenuado, vai para o quarto a pensar em como tratar do tema com as generosas anfitriãs.

Na noite agendada, comunidade reunida, chega o padre com ares de preocupação. As primeiras palavras foram para dizer que precisava confessar-lhes algo bem sério. “Vivia uma crise fazia algum tempo. Estava apaixonado e era correspondido. Conversara com o superior e tinham acertado a saída, dali a alguns dias, do sacerdócio e vida religiosa”. Paralisadas inicialmente pelo que ouviam as irmãs se mexiam nervosas nas cadeiras.

O conferencista, antes que tivessem a chance de interrompê-lo, seguiu. “Bem, quero então lhes fazer um pedido. Gostei muito da cidade e me sinto muito bem nessa casa tão acolhedora. Por isso lhes solicito que deixem que volte aqui para a lua de mel. Sairei sem dinheiro e a generosidade de vocês não deixaria que gastássemos nada, não é mesmo?”.

A superiora, trêmula, de um salto se põe de pé tomando-lhe a palavra. “Padre Anthony de Mello. Preciso lhe informar que esta é uma comunidade religiosa e que será impossível atendermos esse pedido. Além do mais, creio que já escutamos o suficiente. Podemos dar por encerrada sua fala”. As outras freiras assentiam com a cabeça e ela terminou. “Para que acabe o constrangimento, amanhã cedo buscaremos um bom hotel para que o senhor se hospede”.

Já se ouvia o farfalhar dos hábitos de freiras se levantando quando rompe sonora gargalhada. “Peguei vocês direitinho. Agora sim, estamos todos prontos para começar a conferencia sobre o amor incondicional de Deus. Falar dele é sentir o carinho e a acolhida infinita do Sagrado Coração de Jesus...”

E lhes explicou que tudo que dissera era deslavada mentira. Também contou que fizera o mesmo com sua mãe e que ela chorando respondera: “Sinto tanto que vá abandonar o sacerdócio e a Companhia de Jesus, mas saiba que aqui você tem sua casa e nós sempre estaremos com você para o que venha a precisar”.

E foi com essa história, já homem maduro, que entendi o significado da devoção do Sagrado Coração de Jesus. Pude, a partir daí, resgatar e criar espaço na minha fé para vivê-la. O Sagrado Coração de Jesus é a forma que temos de ver, através do corpo humano de Jesus, que o amor de Deus é imenso e nos acolhe a todos sem fazer avaliações ou julgamentos. O Sagrado Coração de Jesus é amor e ele é sempre incondicional.

É para nos lembrar que não importa o que sejamos, ou façamos, o Coração está sempre aberto a nos esperar e acolher. Tão aberto que não se contenta em ficar do lado de dentro do peito. Sai de casa, põe-se de fora, como o pai que vai para o meio da estrada para esperar e acolher, com festa, o filho que volta.

Para que possamos viver de uma maneira mais integrada à fé desses nossos tempos é preciso que levemos em conta a realidade pós-moderna na qual estamos imersos. O mundo que experimentamos é de rápidas transformações e de muitos sentidos, ao contrário daquele no qual a devoção em seu início se dava, que era estático e onde a Igreja representava o único sentido.

Nos tempos atuais, para aqueles que sentem haver muito mais a ser bebido do amor e misericórdia de Deus, é impossível se permanecer somente nesse primeiro nível da devoção. Ela não mais é capaz de preencher as necessidades do homem de fé de hoje. A profecia de Rahner, a nos dizer, cerca de cinqüenta anos atrás, que se quisermos ser cristãos no futuro precisamos ser místicos já se realiza. O místico não se prende a rituais, mas vai à essência. Ele mergulha até o fundo na experiência de Deus e viver essa dimensão profunda significa, dentro da Espiritualidade Inaciana, colocar-se na estrada até contemplar o amor sentindo Deus em todas as coisas.

Não que a devoção seja pobre. Ela é rica ,mas precisa ser vista com o olhar posto na realidade atual como etapa a ser vencida. Da mesma forma que nos Exercícios não se permanece na Primeira Semana, exceto quando não se tem as condições para se ir avante1, a devoção precisa levar ao seguimento. É necessário que haja, como parte integrante dela, o convite para se seguir em frente, externando o coração de discípulo, ou seja, colocando-o também do lado de fora, inclusivo e acolhedor.

Para as pessoas muito simples e que não sentem desejos de ir à frente, para os jovens que dão os primeiros passos na fé e também como complemento da caminhada aos que já seguem além, a manutenção da devoção do Sagrado Coração de Jesus, repaginada pelo ensinamentos do Concílio Vaticano II, é útil e válida, podendo gerar lindos frutos.

Em relação à juventude, é fato mais do que documentado o afastamento dela da Igreja. Mesmo nos países considerados cristãos, ela é minoria. Dentre os que seguem a fé há muitos, quem sabe a maioria, que se sentem confortáveis com a forma antiga da devoção. Ela atende ao anseio por uma Igreja forte que lhes transmita segurança. A questão é que falar da devoção àqueles jovens que estão do lado de fora da Igreja, na forma como muitos de nós a recebemos, é fazê-los rir e tomar antipatia das coisas que lhes seja trazida da religião.

Mais do que seguir ritos a juventude está aberta às experiências. Quer provar de tudo e a todo o momento. Daí que vem buscando até aquilo em que não acredita para experimentar. Note-se, por exemplo, o sucesso que faz entre eles tudo que diga respeito aos vampiros e à magia. Não que acreditem nisso que curtem. O “sinistro”2 está em viver a experiência.

Há que se reciclar as formas da devoção ao Sagrado Coração. Inserir nela, bem mais que a força do rito de ter nas paredes da casa uma estampa e de se gerar, durante nove meses, a certeza de que não se será abandonado por Deus. Sabemos que Ele não nos rejeita nunca. Cumprir dessa forma a principal das promessas é ter uma visão equivocada dele. É ter o Senhor como mercador da salvação.

Deus sempre é, mas a letra com o passar do tempo pode perder o viço e até mesmo morrer. Vez em quando é necessário resgatar o seu sentido original e o que o mundo nos pede hoje, é que coloquemos nela a mística de uma espiritualidade engajada no serviço a Deus e aos irmãos, a começar dos pequenos.

Por isso, cuidando para que seja preservado o seu espírito, as doze promessas do Sagrado Coração, que, como reza piedosa tradição, Santa Margarida Alacoque3 recebeu do coração de Jesus3, pedem-nos adequação aos dias de hoje. Não fazendo assim correremos o risco de manter a devoção fechada em si mesma e dissociada do seguimento. Faço abaixo uma sugestão para atualização delas:

1ª Promessa: Os devotos do meu coração receberão as graças necessárias para seguir-me conforme sua missão no mundo e na Igreja.

2ª Promessa: Através das famílias o carinho do meu coração transborda e a paz nelas será mantida pelo cuidado e respeito uns pelos outros. Assim demonstrarão o amor que têm entre si e a mim.

3ª Promessa: Saibam todos que meu coração é consolador. Venham até ele todos vocês que estão aflitos.

4ª Promessa: Meu coração é incapaz de abandoná-los. Ele está sempre aberto para receber a todos, em qualquer momento da vida. Até naquele final e que nos gera tanto medo.

5ª Promessa: No trabalho busquem sempre a justiça. Cuidem para que ninguém e nem a natureza sejam explorados. Paguem o salário digno e ajudem as pessoas a crescerem em dignidade. Minhas bênçãos serão abundantes.

6ª Promessa: Meu coração é para todos que queiram vir até mim, mas digo-lhes que tenho um carinho todo especial pelos pecadores. Foi para eles que vim ao mundo e terei grande alegria em acolhê-los na minha misericórdia.

7ª Promessa: Não fiquem parados. A devoção ao meu Sagrado Coração deve levar vocês ao mundo. Ao fervor do meu seguimento como discípulos missionários.

8ª Promessa: Seguir o meu coração é aprender de mim e ir se tornando, pouco a pouco, mais amorosos e santos.

9ª Promessa: As casas dos meus amigos devem ser diferentes. As pessoas, ao visitá-las, precisam sentir exposto o amor de vocês. Quanto mais viverem unidos no amor do meu Sagrado Coração, mais presente estarei entre vocês.

10ª Promessa: O amor ao meu Sagrado Coração dará a todo Povo de Deus, desde os sacerdotes até os leigos, a graça do testemunho, sendo templos vivos do meu amor e fazendo com que os que estejam perdidos se aproximem também de mim.

11ª Promessa: Todos vocês já tem o nome escrito no meu coração, mas saibam que ficarei ainda mais feliz quando o levarem até aqueles que ainda não me conhecem.

12ª Promessa: Comam e bebam do meu corpo e sangue. Comungar é testemunhar o amor do meu Coração e ter a vida transformada, abrindo-se para o outro. A todos que tiverem na comunhão o remédio para suas fraquezas egoístas e o tônico animador para sair em direção aos irmãos, darei a graça da perseverança final e da salvação eterna.


Notas
1 – Conforme a Anotação 18 dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio.
2 – Sinistro é gíria do jovem de hoje para dizer que algo é muito bom.
3 – As promessas do Sagrado Coração na sua versão original:
1. Eu lhes darei todas as graças necessárias ao seu estado de vida.
2. Eu farei reinar a paz em suas famílias.
3. Eu os consolarei em todas as suas aflições.
4. Serei seu refúgio seguro durante a vida e sobretudo na morte.
5. Derramarei muitíssimas bênçãos sobre todas as suas empresas.
6. Os pecadores encontrão em meu Coração a fonte e o mar infinito da misericórdia.
7. As almas tíbias tornar-se-ão fervorosas.
8. As almas fervorosas elevar-se-ão rapidamente a grande perfeição.
9. Abençoarei Eu mesmo as casas onde a imagem do meu Coração estiver exposta e venerada.
10. Darei aos sacerdotes o dom de abrandar os corações mais endurecidos.
11. As pessoas que propagarem esta devoção terão os seus nomes escritos no meu Coração e dele nunca serão apagados.
12. No excesso da misericórdia do meu amor todo-poderoso darei a graça da perseverança final aos que comungarem na primeira sexta-feira de nove meses seguidos.

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Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 08/08/2011
Alterado em 08/12/2011


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