Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Antes dos últimos raios de sol irem embora a menina já se punha ansiosa. A chegada da noite lhe trazia enorme medo. Aquele era o tempo dos espíritos ruins passearem sobre a terra , foi o que ouvira numa história quando bem pequena e que depois da experiência da mão levantada tornara-se ainda mais real em sua vida.

Sobre aquilo nunca contara nada para ninguém. Nem Fabrícia, melhor amiga e que tanto sabia dos seus temores, a conhecia. Recordava que já devia ser madrugada quando acordou com o uivo angustiado de algum cachorro da vizinhança. Estava voltada para a parede e ao abrir os olhos viu, com horror, a mão escura aberta e levantada sobre ela.

O grito acordara o pai que, solícito chegou à beira da cama. Encontrou-a num choro convulsivo, trêmula e de olhos fechados.

- Teve um pesadelo, não é mesmo filha?

Tentara lhe falar, entre soluços, o que acontecera, mas cheio de sono ele lhe acariciava o rosto, pedindo silêncio e dizendo de quão ruins podem ser os sonhos e de que:

-A boa notícia é que eles logo seriam esquecidos quando acordasse.

Atendendo-o e paralisada pelo pânico não abriu mais a boca. O pai achando que já tinha adormecido, beija-lhe a fronte e a abençoa. Não conseguiu mais dormir.

Escutou incontáveis uivos e latidos não só daquele, mas de vários outros cães, contou os sete cantos do galo e surpreendeu-se com o trinado do primeiro passarinho no abacateiro.

Já havia crescido. Era linda moça e aquele pavor da mão levantada em meio às trevas se mantinha. Aliás, não só continuava, mas aumentava cada dia mais. Só conseguia dormir com a luz acesa, o que lhe causava sérios problemas com as irmãs que com ela dividiam o quarto.

Arrumava as coisas de modo a se deitar antes delas, tentando adormecer o mais breve possível e assim não perceber a escuridão do ambiente. Nem sempre o conseguia e quando isto acontecia cerrava bem forte os olhos e as mãos, não os abrindo até apagar. Não era raro acordar com os dedos doloridos ainda fechados e rijos. Voltar-se para a parede era algo impossível de ser sequer cogitado.

O Natal era a festa por excelência da sua família e a cada ano celebravam o nascimento de Jesus na casa de um dos tios. Naquele em que fizera dezessete anos, festejavam-no em sua casa.

Os mais novos, por mais que os adultos os animassem, nunca conseguiam curtir toda a festa. Um a um adormeciam sendo levados às camas da casa. Na sua já dormia o bebê da Tia Anália, quando Bruno, seu outro filho também adormeceu. A tia lhe pediu que fosse à frente para ajeitar a cama. Ao abrir a porta a mão foi automaticamente para o interruptor. Anália atrás dela cochichou:

- Não acenda a luz. O bebê pode acordar.

Estremeceu dos pés à cabeça, mas adorava a tia e não queria que soubesse dos seus medos de escuro. Respirou o mais fundo que pôde e entrou no quarto. O vitral da janela à frente deixava passar a luz do poste da rua.

Foi então que teve a maior surpresa de sua vida. O bebê dormia a sono solto e, acreditem, virado para a parede! Sua mão direita,meio fechada, meio aberta, estava levantada. Na parede a sombra daquela mão, tão delicada, parecia agressiva.

Então era isto. O que tanto a assustara naquela noite terrível era sua própria mão refletida. Até hoje Tia Anália lhe pergunta do que tanto ria e chorava ao mesmo tempo, quando sairam do quarto. Preferiu guardar para si mesma o segredo.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 17/03/2012
Alterado em 19/03/2012


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