Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Criador de dromedários
 
O Desembarque

Tinha bem clara a data na qual os dromedários desembarcaram em sua vida. Foi bem antes da chegada deles ao Zoológico. Quase adolescente e lhe eram desconhecidos. Num documentário sobre desertos os viu pela primeira vez e mesmo lhe passaram a impressão de camelos aleijados. “Pai, que camelo é este de uma corcunda só?”

“Dromedário”, respondeu sem tirar os olhos da tela, que aquela não era hora de se encompridar conversa. Em casa buscou na Enciclopédia Britânica quem era tal animal. Em pouco tempo tornara-se bom conhecedor da espécie. Encantara-se de vez com aquele bicho exótico. Buscava fotos e nelas reparava risos nas suas bocarras.

Riram quando afirmou num almoço de domingo que dromedário sorria. O pai, voltando a falar sobre eles, lhe ensinou que, mesmo não sendo oficialmente um ruminante, devia ser o jeito de mastigar que estava lhe passando aquela impressão. Na escola também esse afeto era incompreendido e se tornou alvo de gozação: o cara esquisito dos dromedários.

Daí em diante optou por não mais falar da nova paixão. Melhor calar o bico a este respeito. A vida seguia rotineira quando a pequenina nota no jornal, três anos após, lhe trouxe grande alvoroço. “Zoológico faz permuta e recebe casal de dromedários”. Correu para lá, mas foi só decepção. Dos bichos nem sinal.  

A moça da administração notara seu desapontamento e o chamou. “Deixe seu telefone que lhe comunico quando os tivermos”. Naquela boa vontade captou haver espaço para pedir além. “Quero recebê-los. A senhora me avisa quando forem chegar à Estação Ferroviária?” Ela concordou balançando a cabeça. Anotou seu nome e telefone e ele, feliz, correu para casa.

Logo a tal mulher se arrependeu da boa ação. Ligava pelo menos quatro vezes ao dia atrás de notícias. Não importava se fossem chegar em horário da escola, ou tarde da noite. Mataria, aula, ou escaparia pela janela do quarto. Só que sua informante e muito menos os demais empregados sabiam em que dia e em qual cargueiro viriam.

Informações mais concretas dos bichos ficavam com o diretor e o veterinário e estes não costumavam partilhá-las com subordinados. Imaginava-se que pretendiam guardar surpresa. Era boa estratégia aproveitar os novos moradores para realizar algum evento, atraindo assim mais gente ao Zoológico. Tentou que lhe transferissem as ligações para esses importantes, mas rápido descobriu que eram inacessíveis aos seus telefonemas.

Mais que insistentes as ligações tornaram-se folclóricas. Na sala da administração a turma se dividia em três grupos. Havia alguns que tinham pena do garoto e torciam para que os bichos viessem logo. Queriam vê-lo satisfeito. Tinha outros que o achavam no mínimo chato. O terceiro era composto daqueles que o viam doido. “Se novo está desse jeito, quando ficar mais velho terá que ser internado. Vai ser louco de pedra”. E outro completava gargalhando: “Vai ficar, ou já é?”

Era hora do almoço quando os tratadores receberam a ordem de arrumar, próximo aos camelos, um cercado. Nem precisava o doutor dizer que tratavam-se dos  dromedários. Acharam melhor não telefonar para o rapazinho. Temeram que fosse dormir por lá, ou virar morador da estação.

Ainda demoraram. Aos tantos telefonemas arrumavam mentiras, respondendo nada saber. Quando recebido o documento informando que já viajavam e chegariam pela manhã do dia seguinte, disseram a ele, enfim, que a carga se encontrava a caminho.

Impossível dormir. Levantou-se ainda escuro e não teve pai, mãe, aula, matéria, prova, professor que mantivesse a programação do dia. Tirado do esconderijo de dinheiro da mãe, meteu no bolso valor suficiente para os ônibus e lá se foi esperar o trem.

Tentou saber dos bichos, mas ninguém lhe dava atenção. Quando um guarda enfim parou, foi para apontar o caminhão saindo pelo portão lateral. Do alto da carroceria as cabeças dos bichos mostravam-se assustadas com a cidade.

Correu ao ponto do ônibus. Chegando ao zoo viu de longe o veículo estacionado. A grande caixa em cima. Aproximou-se esbaforido. Muita gente em volta e ouviu quando o veterinário gritou. “Vamos iniciar a descarga”. Incomodara ouvir no dia anterior que a carga viajava. Mais ainda escutar agora que seria descarregada. Sentia-se no direito de auxiliar na operação, mas o berro do doutor o fez ver o contrário. “Quem trouxe esse jovem que o tire daqui!”

Ninguém o havia levado e assim pensou que poderia permanecer. Nada disto. Logo foi empurrado e o porteiro tentou expulsá-lo. Depressa se afastou para uma distância segura. A coisa demorou. Os animais não demonstravam interesse nenhum em sair do caixotão. Usando tábuas e cordas desde o topo da carroceria, criaram uma espécie de corredor até o cercado. Repetidas e inúteis vezes tentaram animar os bichos a atravessá-lo.

Nesse caminho foram botando cana fininha, farelo enriquecido com cenouras e outros vegetais. A meta era seduzi-los com comidas consideradas iguarias por seus primos camelos. Mas mantinham-se irredutíveis. A fêmea mirava à frente, nem se dignando a reparar na tal trilha de guloseimas. “É acho que teremos que usar o ferrão e se nem isto der certo o choque.” Vociferou impaciente o veterinário.

Indignou-se de vez se fazendo homem. Atravessou a alameda e se impôs: “Deixem-me desembarcá-los.”. Olhares sarcásticos de quem já se cansara sem alcançar resultado no trabalho. Algumas risadas e resmungos em resposta. A mulher dos telefonemas e que se mantinha a um canto o apoiou ponderando:

“Deixem que faça uma tentativa. Ninguém perderá nada e enquanto trabalha vocês descansam”. “Ah, é? E se for mordido, tomar coice, ou patada? Quem explicará o porquê de termos deixado um menor participar, numa complexa logística de desembarque de carga exótica?” Era o veterinário tentando discordar da idéia.

Enquanto discutiam deu um jeito de transpor no sentido inverso a estradinha e lá no alto sussurrava algo para o macho. Este olhou para baixo e deu um passo. A fêmea, não se sabe se por notar aquele movimento, ou se também pelas palavras sussurradas, virou-se e começaram a descer. Seguia à frente os conduzindo. Chegando ao cercado foi seguro e puxado com mãos fortes.
 
Fora do caminhão o casal tinha pressa. Mostrava-se ansioso para se colocar o mais longe possível daquela gente. Um tratador, de antemão, enchera de comida o cocho. Mas a primeira coisa que fizeram foi saciar a sede. Estavam secos, sugaram água demais.

Fora reconhecido. Olhavam-no admirados e alguns, os tratadores mais experientes, se mostravam enciumados com aquela habilidade em lidar com animais desconhecidos por lá. O diretor havia enfim chegado dando a desculpa do trânsito como justificativa ao atraso. Contaram-lhe da façanha do moço. De início os repreendeu por terem concedido tal coisa. “E se ocorresse um acidente? O prefeito teria me despedido imediatamente.” Não foram poucos os que desejaram que tal azar sugerido tivesse acontecido.

Após beber os dois, ainda assustados, mantinham-se no canto oposto do cercado. Enquanto davam plena atençao ao chefe, ele aproveitou para escapar. Deu larga volta passando rente ao espaço dos camelos, depois pelo dos alces e veados, finalmente o redil dos búfalos. Enfim estava perto do casal.

Não se intimidaram com sua presença. Ao contrário, pareciam acalmar-se. Sorria para os amigos recém-chegados lhes soprando palavras de boas vindas, contava-lhes da cidade, do povo, da cultura e história. O que os bichos respostavam era impossível saber. Mas que conversavam parece não haver dúvidas, pois que olhavam para ele, meneavam as cabeçorras e nem demonstravam alguma vontade de deixá-lo. Travava-se ali uma boa conversa de bichos.

Constatara em definitivo o já sabido. Que apreciavam mesmo era sorrir. Riam agradecidos pelo que lhes contava. Sorriam também ao relatar, em língua dromedárica, peripécias da viagem e, quando ele já tudo sabia, iniciaram o relato sorridente de suas vidas. Parentes, lugar de nascimento, o clima por lá. Essas coisas todas que grandes companheiros compartilham quando se encontram.

Nesse tempo o Zoo promoveu concurso para nomear os dromedários. Somente crianças poderiam votar dentre as opções oferecidas. Dario e Andrômeda foram os nomes vencedores. Detestou-os, mas resignou-se. Não tinha como fazer nada.

Tornou-se visita mais que habitual. Tomou bomba no colégio. Não que tirasse notas baixas, mas o excesso de faltas impediu a progressão. Nem se importava. Até porque já estava atrasado dois anos e se sentia desajeitado e pouco aceito em meio à garotada mais nova. Ano que vem faria o supletivo.

Em casa o tinham em conta de tão estranho quanto o tio sistemático. O irmão maluco da mãe, um tal que vivia como eremita escrevendo e enviando cartas, na busca de audiência nos Tribunais Eleitorais para apresentar seu método infalível na descoberta de corruptos, ladrões e tarados. Como isto funcionava só iria demonstrar para alguma autoridade competente.

Estar com os dromedários era sua aspiração de vida. Era sair de casa e sabiam que poderia ser encontrado no Zoo. Desistiram de vez em controlá-lo, mandá-lo à escola, ou tentar alguma nova terapia. Tudo o que fizeram foi em vão. Sua voz há muito não era ouvida em casa. Houvesse algo para responder faria balançando a cabeça, ou deixando algum bilhete sobre a mesa de jantar.
 
O Sonho
 
Era o primeiro a chegar, o último a deixar o Zoológico. Agia como se ninguém por lá existisse, nem porteiros, tratadores, muito menos os demais animais. Já com Dario e Andrômeda era diferente. Haveria assunto para dias e noites de papo, caso o deixassem moraria por lá e fez tentativas, infrutíferas, nesse sentido. Assim foi durante três anos. Perdera todo afeto pelos pais e irmãos. Não mais se cuidava, nem banhos costumava tomar. O pai reclamava:  “meu filho tem a catinga de uma boiada inteira.“

Pensava demais em fugir de casa, mas ir para onde? Partir para longe e deixar Andrômeda e Dario estava fora de cogitações. Desse jeito a vida seguia até que se deu o sonho. Acordou sorrindo. Era um oásis. Havia o poço, algumas árvores pequenas de galhos secos e poucas palmeiras meio raquíticas. Mas isto nem era importante. Significativo por lá era a quantidade de dromedários. Só ele de humano em meio à bicharada. E seus grandes amores, Dario e Andrômeda, rei e rainha, comandantes de todos eles.

Reuniam-se para apoiá-lo a se tornar homem-dromedário. Seria considerado como tal naquele dia em que libertasse os irmãos presos mundo afora em zoológicos, circos e demais prisões. Até para saciar de leite a ditadores e milionários excêntricos existiam irmãs oprimidas, conforme relatava, apoplético, o rei Dario com o assentimento total da rainha Andrômeda.

Para que isto pudesse acontecer era necessário que ele fosse alguém na vida. Continuasse o hábito de permanecer próximo ao alambrado dos amigos, como iria atender ao chamado tão honroso do grande líder? Não conseguiu dormir mais e bem antes do Zoológico abrir, tendo saltado o muro num lugar fora das vistas dos vigias, lá estava dizendo aos amigos que entendera tudo. Iria, prontamente, ajuntar dinheiro para missão tão nobre. A despedida se fez com lágrimas.
 
Ao vê-lo sair, quando nem tinham sido abertos os portões o segurança se assustou. Só podia ter dormido com os dromedários e anotou tal fato no livro de partes da recepção.

Estudar não iria mesmo. Até porque achava que quem usasse uniforme escolar, ou portasse livros, pastas ou mochilas era burro. Fosse mesmo inteligente não perderia tempo com escolas.

Em casa logo notaram a mudança de comportamento. Passara a acordar mais cedo, tornou a responder, educado, às pessoas, lia jornais, assistia noticiários da televisão. Precisava ter clareza do que iria mesmo gerar dinheiro suficiente para a grande missão.

Mais estranho para todos do Zoo foi que desapareceu de lá, gerando boatos de que morrera. Em casa a mãe agradecia aos santos de devoção. Seu filho, milagre divino, estava curado de tanta sandice.
Os Cavalos
 
Completara dezoito anos e nada de emprego ou ganhar dinheiro. Alistou-se no Exército. Inquirido sobre o que dominava, escolado pelas experiências negativas quando falava dos dromedários, respondeu que sabia cuidar de cavalos.

“Ótimo. Vai para a Arma da Cavalaria. Com certeza que será bem útil nas estrebarias”. Desse jeito virou soldado. O Regimento de Cavalaria ficava na Capital Federal e para lá foi levado. Trinta recrutas naquela carroceria dura de caminhão. Recordou-se dos amigos viajando no caixão e, ao contrário dos vinte e nove, cumpriu a viagem sem reclamar.

Decepção mesmo foi quando começaram a falar do soldo. Sem nem precisar fazer contas, caiu em si e viu que precisaria limpar estercos e não gastar nada por muitos milhares de ano, para possuir o dinheiro que imaginava necessário à missão.

Pouco com Deus é muito, filosofou barato. Nem é preciso dizer que se deu maravilhosamente bem na função. “Esse recruta entende mesmo de cavalo. Vejam como estão mais calmos. Titã que toda semana derruba montaria, ultimamente parece ser pônei de parque infantil”.

“Pois é, coronel. Tem soldado dizendo que ele fala com os bichos”. “Mas que tem isto de estranho? Eu também converso com meus cavalos”! “Diferente, senhor coronel, é que com ele os animais respondem”. Dando uma baforada no cachimbo o superior deu por encerrada a conversação.

A saudade dos dromedários era imensa. Chorava toda noite a ausência deles. Entregava-se ao cuidado dos cavalos como consolo pela falta dos amigos. Afeiçoou-se a alguns e os entendia. Mas só de ter afeto e atenção, que isto sabia dar demais a um bicho. Amor mesmo, desse de dar aflição, este permanecera naquele cercado distante.

Chegava o tempo da baixa do serviço militar obrigatório e o coronel passara orientação expressa ao capitão: Segurasse de toda maneira aquele soldado especial. Mas nada que pudessem lhe oferecer seria capaz de convencê-lo a assentar praça. Um tenente veterinário atendia também equinos de criadores ricos. Contara a eles da extrema habilidade daquele rapaz esquisito e tão calado.

O mais poderoso deles lhe mandara recado. Pagaria cinco vezes o que ganhava no quartel. E isto fora quarto para morar, comida e roupa lavada. Alimento precisava demais, mas lugar de dormir havia de ser qualquer um, mesmo junto à cavalhada lhe servia. Roupa limpa também não era artigo de primeira necessidade. Não curtia sair. Trocava calças e camisas quando endurecidas, parecendo querer estar, por si mesmas, de pé.

Foi assim que chegou ao Haras Arcanjos do Senhor. Se os cavalos do Exército eram elegantes, vistosos e bonitos, esses eram estupendos, elegantes e orgulhosos. Ao contrário do general e oficiais de alta patente que só apareciam nas estrebarias para ordenar a preparação de animais para montaria, o velho proprietário era presença constante junto aos bichos. Preferia seu cheiro ao de gente, não o incomodando de forma alguma o odor bruto exalado pelo novo tratador.

Essa presença diária reforçou a certeza da excelente aquisição feita. Nunca conhecera alguém que entendesse tanto de cavalos. Trabalhava sem descanso, jamais cobrava horas extras, abstêmio, nunca faltava e nem era mulherengo. E mais ainda, fazia questão da presença nas horas importantes dos partos das matrizes. O empregado ideal alardeava.

O faro refinadíssimo deu-lhe fama de bruxo. Um pouco de observação, quando se punha no meio da bicharada e, diziam, conversas aos pés das orelhas deles e separava os potros em quatro grupos:
1 – equitação e saltos. ´
2 – velocidade.
3 – exposição.
4 – lazer de crianças e velhos ricos.
 
Essa habilidade incrível fazia chover dinheiro no Haras. Tornava ainda mais milionário o patrão já tão rico. Do salário, diga-se de passagem, aumentado algumas vezes, não gastava praticamente nada. Tudo guardado para libertar dromedários, mas mesmo ganhando bem, naquele ritmo só cumpriria a façanha já idoso.

Necessitava participar daquela lucratividade fantástica, trazendo para mais perto a missão. Passou a fazer o que sabia muito bem, fechar a boca. Quarenta e sete  potros vieram ao mundo no trimestre nada de falar quais eram os de cabedal, para qual, ou tal mister. Cabedal era a expressão que usava ao apontar, orgulhoso, para o chefe as competências dos animais. Dentre esses mostrava aqueles com  excelente cabedal para os três primeiros grupos da seleção. O dono preocupado com aquele mutismo a atrasar negócios, veio ter conversa séria com ele. “Mas que houve, meu rapaz? Cadê de me contar os nossos cabedais?”.

“Tenho andado meio esquecido, patrão. Olho e reolho para os bichos e não consigo me decidir. Daí que fico com receio de indicar ao senhor investimentos ruins”. O velho entendeu logo. Por dentro soltou um palavrão, mas por fora haveria de cuidar da sua galinha dos ovos de ouro.

“Eu acho que se a gente combinar um percentual modesto de trinta por cento sobre o lucro que o senhor auferir, eu consigo me recordar do jeito de descobrir os que são bons mesmo para cada coisa”. O dono dos Arcanjos não se conteve: “Mas trinta por cento é um assalto! E eu que pago tão bem, dou comida, cama, vestuário e até médico quando de precisão. Como as pessoas costumam ser ingratas!”

“Falando em médico, o senhor poderia me indicar algum para a memória? Por aqui, consulta só tenho tido de veterinários e lhe digo que me servem” Aperta de cá, puxa de lá e nada de avanço. O bom senso imperou e o chefe viu que ficar com setenta por cento dos lucros era fantástico, considerando a situação. Até porque suas criações “de cabedal” nem eram mais investimento, como o cronista de turfe, o mais respeitado da região, escreveu. “Cavalo do Arcanjos é igual dinheiro do governo. Totalmente garantido, não tem erro”.

Combinação feita e no dia seguinte já se lembrara de tudo. Estavam apontados naquele lote a divisão dos quatro grupos e dentre esses, quais potros deveriam ser olhados mais de perto, por possuirem cabedal diferenciado. De lavador e garçom de cavalos passara a ser sócio de um dos maiores haras das Américas em pouco menos de vinte anos. Seus amigos dromedários sentiriam orgulho do seu sucesso.

Ganhava dinheiro demais e sem saber direito como lidar com investimentos, optou por comprar terras perto das do sócio. Serviriam à missão. Com seu olho clínico absurdo e absoluto, começou a visitar outros haras adquirindo animais de altíssimo cabedal. Não mais cuidava dos cavalos. Para fazer o que era preciso bastava um pouco de tempo entre os bichos. Andava limpo e bem vestido a fazer negócios. Só que daquele cheiro profundo de estábulo não havia perfume ou sabão que dessem conta.

Tanta coisa mudara. Só três permaneciam definitivas: a paixão pelos dromedários do mundo, o amor por Dario e Andrômeda em particular e o mutismo com as pessoas em geral.

Quando o sócio faleceu a proposta de compra feita aos familiares, que quase nada entendiam do negócio e só ansiavam por botar a mão em dinheiro vivo foi irrecusável.
 
A Missão
 
Adquiriu então as duas fazendas que separavam o haras de suas propriedades. Transformou aquilo tudo em única e imensa área a qual nomeou como Recanto dos Dromedários. Juntou a cavalhada de luxo em umas estrebarias contíguas na lateral esquerda e deixou imensos pastos para o nada, segundo seus empregados entre golos de pinga, nos sábados à tarde, costumavam dizer.

“O homem é sistemático, mas sabe como ninguém fazer brotar dinheiro. Deixa esse lugarzão todo vazio é porque, com seu tino, irá ainda ganhar mais grana no futuro com ele. Afinal ninguém compra fazendas assim, tão imensas, tira o gado, deixa morrer as plantações e consente do mato tomar conta dos pastos para coisa alguma”.

Queria porque queria levar Dario e Andrômeda para inaugurar o criatório da liberdade. Considerou-se pronto para o cumprimento da missão. Viajou para conversar com o Diretor do Zoológico. Aquele de vinte anos atrás. Acostumado a não gastar palavras, sendo direto tal a seta lançada pelo guerreiro, disse:

“Estou aqui para comprar o casal de dromedários”. “Mas não estão à venda”. Retrucou também, de chofre, o Diretor. Verdade era que se sentiam ludibriados pelo Jardim Zoológico que lhes fornecera, em troca de animais capazes de reproduzir, aquele macho estéril.

Rápido reformulou a proposta: “qual bicho vocês estão precisando aí para trocar pelos dromedários?” “Se os perdermos precisaremos de outros. Que tal o senhor nos arrumar novo casal, agora em condições de reprodução?” “Topo discutir a respeito de qualquer bicho. Exceto dromedários”.

O diretor viu que estava diante de um sistemático, conforme os insanos eram conhecidos por lá e que aquela conversa de troca de dromedários por outras espécies, era papo para bicho dormir. Por modo de encerrar pediu altíssimo: “Tigre siberiano e elefante africano machos, fêmea gorila. Os três ainda no primeiro terço do tempo previsto de vida”. “Não sei o quanto custam esses bichos, mas negócio fechado. O senhor me diga onde estão que mandarei comprá-los”.

Estivesse de pé o diretor teria caído do tremendo susto. Qualquer um daqueles valia bem mais que Dario e Andrômeda. Completou, depois de se refazer, dizendo estarem aqueles bichos já sondados e que aguardasse dois dias e iria lhe dizer, exato, onde buscar o trio. Adiantou-lhe que cada um vivia em país diferente.

Poderia ter dado de imediato as direções, mas quando a esmola é muita o santo desconfia e aquela ali era demais. Desejava investigar seu interlocutor. “Aliás, esses dois dias o senhor nem precisará me buscar distante. Estarei por aqui nos horários de expediente admirando os animais. Bem ali naquela região do cercado dos dromedários”.

“É ele! Certeza absoluta de que é o maluco dos dromedários que conversa com o Diretor”. Os mais antigos arrumaram jeito de ficar por ali na espreita. Pretendiam checar se seria mesmo o doido que no passado vivia a conversar com Dario e Andrômeda que tinha retornado.

E era mesmo. Só que trajando bonito terno de tecido importado. Saiu da diretoria e lá estava de papo com seus amigos. E eles, que nesses anos todos, nunca mais haviam frequentado aquele canto, para lá correram e pareciam atentos a escutá-lo e, quem sabe mesmo, dando respostas ao antigo companheiro.

O Diretor não precisou pesquisar muito. Em cinco minutos soube ter estado diante do homem mais bem sucedido na criação de equinos, uma das dez maiores fortunas do país. O Haras Recanto dos Dromedários era figurinha mais que constante nos grandes eventos de cavalos em em todo o mundo.

A secretária do diretor, nova por ali, veio lhe trazer a fofoca que corria entre a turma.”Tratava-se do mesmo pirado que ficava de cochichos com os dromedários”. “Bem que vi que aquele maluco não me era desconhecido...” Foi o que disse intrigado e entre dentes.

O reencontro tinha sido mais que emocionante. Com louvor, havia vencido a primeira parte do plano. Era senhor de muitos dinheiros. A missão seguia adiante, agora tudo se faria realidade. Partiria, a partir desse momento com o casal real, para nova etapa da missão: salvar da prisão os dromedários.

Muitas lágrimas rolaram pelo rosto e poderia dizer que discretas, como eram seus amigos, gotas também escaparam dos olhos de Dario e Andrômeda. Havia tanto a relatar de ambas as partes. Milhões de fatos acontecidos naqueles anos todos e que era necessário serem partilhados.

Só lamentava não estar do lado de dentro do cercado para se tocarem à vontade. Além disso, a novidade atrapalhava. O alambrado fora reformado, tornando impossível uma maior aproximação.

Era preciso falar alto para ser compreendido e isto o incomodava. Ouvidos inadequados e curiosos poderiam tomá-lo por desmiolado. Mesmo assim, deixassem e ficaria lá por toda a noite. Assunto com certeza era o que mais havia entre eles.

Dia seguinte bem cedo, nas vizinhanças da área dos dromedários, o Diretor lhe passou os preços e vendedores dos bichos almejados. Balançou a cabeça afirmativamente. Tirou o celular do bolso, afastou-se uns quinze passos e ligou para alguém.

Permaneceu por ali aquele dia todo e no seguinte também. Vez em quando seu telefone tocava e se afastava dos bichos para atender. Ao final da tarde veio até a Administração para uma  palavrinha com o Diretor.

Este não estava mais. Então falou para a secretária que iria viajar imediatamente e que relatasse ao chefe o seguinte: “As coisas caminham céleres. Em poucos dias terá novidades alvissareiras”. Nem acabara de atravessar a porta e entraram todos, curiosos de saber o que o maluco tinha falado. “Meu Deus, como ele cheira a bicho!” Foi o que conseguiu dizer a eles.

Por um desses lances providenciais da vida, num leilão de cavalos sentara-se à mesa com um veterinário árabe. Os cumprimentos de costume, as trocas de cartão e, lá pelas tantas - após ter arrematado uma matriz prenha cheia de cabedal - deixou, como quem não quer nada, escapar para o sírio seu interesse em investir nos dromedários.

“O que o senhor acha disto sendo o nosso país tão diferente?” O árabe abriu sorriso e lhe contou terem sido os dromedários que o animaram a estudar veterinária. Por incontáveis gerações sua família os possuíra. “Era adolescente quando o último, bem idoso, morreu nos meus braços”. Além disto, podia afiançar que viviam, e adaptados, em várias partes do globo.

A pesca dava resultados. O peso da vara era mostra de haver um peixão fisgado, pronto a ser embarcado. “E depois disso, digo na faculdade ou já formado. O senhor teve contato com eles?” “Após haver me formado não, mas ainda estagiário, tomei parte de um programa governamental para cuidar dos camelos e dromedários”. “Precisamos conversar mais. O senhor se importaria em sairmos daqui desse lugar barulhento?”

Foi assim que em poucos minutos dromedários os haviam tornado amigos. Fez proposta irrecusável para que deixasse sua terra e viesse ser seu empregado. No futuro, lhe prometia, haveria bastantes dromedários também para serem cuidados. “Mas para que mesmo o senhor irá criar dromedários por aqui?” “Para cumprir um sonho lindo!” Foi só o que respondeu.

A viagem foi para a Tríplice Fronteira. Nas lides de importar e exportar carga viva, preciosa e por isto cara, cuidados nunca são em demasia. Por necessitar desses serviços, foi que se aproximou, desde vários anos, daquele homem naquelas bandas. Competente para aglilizar e facilitar os trâmites para rápidas entradas e saídas de cavalos entre esses países. Era perito nesses tipos de legislação e dizem que também em outras, essas tratadas em voz mais baixa. Nunca conhecera ser humano tão prático. Para ele inexistiam problemas. Melhor de tudo é que jamais indagava os porquês de se querer aquilo que lhe solicitavam. “Os bichos estavam a caminho. O tigre, último a ser resolvido, tinha sido adquirido em Medellín. Tigre colombiano, elefante do Canadá e gorila de Cingapura viajavam”.

Ficara feliz e por isto nem se importou com a continuação da conversa. Esta tratava de valores. Uma fortuna a aquisição e os variados gastos com o transporte dos animais. E isto sem contar a justa comissão de direito. Daria ordem para a transferência imediata do dinheiro. Só esperasse um contato com o Zoo para confirmar se estavam prontos para recebê-los e, aí residia o que importava, passar-lhe Dario e Andrômeda.
 
O Céu
Tiveram início as obras na imensa área reservada ao casal real e seus súditos. Nem necessitou de engenheiros, como quando das construções, ampliações e reformas nos espaços dos equinos. Na verdade tudo era muito simples. Ao invés de cuidar das cercas repondo mourões podres ou queimados e acertando as seis linhas de arame farpado, a ordem era para que fosse tudo retirado.

Haveria cercado apenas nos limites com o seu haras e, dos outros lados, nas divisas com a vizinhança. Os empregados, acostumados àquelas doideiras, ficavam intrigados, mas eram conscientes de que nem valia a pena perguntar motivos, eis que jamais haveria resposta.

Bem no centro do terreno ergueu-se, num círculo, uma série de cabanas altas. Bem protegidas das chuvas, ventos e frios nas laterais. Que se constituíssem em famílias, aspirava. Lá no meio ordenou a construção de um quarto. O nome que os empregados deram foi aquário redondo. Todo envidraçado e com uma cama. Ali residiria daí em diante.

A grande casa na região do Haras, que ficasse para acolher visitas e fazer negócios. No fundo desejava e isto era inútil, que achassem estar nela seu dormitório, poupando-lhe das perguntas inconvenientes por parte de quem não o conhecia bem.

Vontade mesmo era de dormir na choupana maior que reservara para o casal real. Lamentava não ser coberto de pelos duros, resistentes às intempéries, como seus companheiros.

Mandara preparar um caminhão todo especial para o transporte de Dario e Andrômedra. Depois serviria também para trazer aqueles que fossem sendo libertos. Laterais macias para que se encostassem. Base de areia para o conforto dos pés. Cocho e sistema de bebedouro que não deixava vazar água, deixando molhada a cobertura arenosa do piso.

Ao contrário da chegada, a subida no caminhão, agora desde o início sob sua supervisão, não ofereceu problemas. Surpresa foi quando ordenou ao motorista que fechasse a porta e seguisse viagem. “Mas o senhor permanecerá na carroceria?” Só balançou a cabeça afirmativamente. Pergunta além de insolente mais do que sem sentido, ruminou.

O casal real iria se assustar com as dimensões dos seus domínios. Aquela seria uma surpresa para eles, ia refletindo. Não iriam encontrar um ambiente desértico, mas os pastos abandonados naquela região mais seca fazia com que, aos poucos, fosse brotando a vegetação original de cerrado. Seus queridos não iriam se sentir mal ali, estava convicto. Ainda mais que se transformavam, novamente, em seres livres.

O desembarque foi junto às choupanas. Havia todo tipo de guloseimas capaz de satisfazer a um dromedário. Desceu com eles e por lá ficou até que fosse noite alta. Quando se sentavam para dormir foi que se despediu caminhando até seus aposentos vizinhos.

Não deixara instalar cortinas. Era para que pudessem se observar, sem restrições, através das grandes janelas. Preparou-se para dormir a primeira vez ali. Depois de alguns minutos a rolar na cama, sentiu um aperto dolorido no peito. A emoção daquele dia era grande demais. A pressão se dava porque não cumprira tudo. Faltava estar plenamente junto com seus queridos. Com eles não haveria aquela dor forte. Levantou-se.

Rei e rainha, lado a lado. Os dois encostados, arriados no chão. Cansados da longa e estressante viagem seus olhos já tinham se fechado. Beijou-os e foi criando espaço empurrando e se enfiando entre eles. Agia tal criança buscando o calor dos pais adormecidos. Esgueirou-se até que quase nada do seu corpo podia ser vista de fora, ou de cima. Colado e bem oculto entre os dromedários permaneceu na noite.


O sol estava alto e ele não aparecia. Pelos vidros viram a cama vazia. Os dromedários podiam ser observados lá adiante. De certo que exploravam o ambiente. Entraram e o encontraram, ainda dormindo, no chão de serragem e areia da cabana mais ampla.

Além de não ser seu costume, havia tarefas importantes a cumprir e o chamavam.  Não obtendo resposta foram se aproximando, até que constaram estar morto. Lá no alto, além do branco das nuvens e do imenso azul, o céu dos dromedários estava em festa.

  
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 13/02/2013
Alterado em 03/02/2016


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras