Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Ave noturna 

Senhora sabe que nunca mais tinha chamado ninguém de meu amor? Depois de tantos anos, já para bem mais do meio da ribanceira da vida este velho lhe vem, com o coração em brasas, e lhe diz "meu amor" e me responde com um sorriso. 

Expectativa que tenho de ser correspondido é nenhuma. Depois de lhe relatar todos os sucedidos da existência, senhora estará furiosa comigo. Esconder os havidos e acontecidos de quem amo? De maneira alguma posso.

Por favor, deixe de pedir também para não a chamar de senhora. Isto jamais conseguirei. É respeito demais que tenho. Formação forte que vem de pai e mãe das antigas, de outras eras. Livrar-me disto, até que fiz tentativas, mas sem obter sucesso.

Depois de descobri-la meus olhos foram, aos poucos, se acostumando às suas formosuras. Procurei me sentar meio enviesado na Igreja, por modo de melhor a ficar admirando. Senhora diz que belezas não há mais. Que essas se acabaram com o passar dos anos. Não falo daquelas da juventude. Essas, acaso tivesse ficaria assustado, seria estranho. Falo das bonitezas da idade madura. Do rosto sereno de quem experimentou das dores mais amargas às alegrias mais esfuziantes. Dessas a senhora tem demais.

Quando meus olhos ficaram viciados em olhá-la as missas, novenas e rezas do terço se encurtaram. Arrumei jeito de descobrir onde morava a minha senhora. Dei para ficar andando num pra lá e pra cá aí adiante, na espreita de vê-la no varrer calçada, ou mesmo no buscar leite e pão na venda. Sorte tive quase nenhuma, eis que pouquíssimas vezes pude vê-la assim.

Aquela noite em que seus olhos pousaram nos meus, foi duma alegria de carreiras de fogos de artifício em meus céus. Senhora sorriu e baixou as vistas. Entendi que aquela não era a primeira vez e que me reparava desde um tempo. Pegar no sono após não houve jeito. Tentei escrever carta. Imaginei fazer poesia. Como nada disso consegui fui para a janela e contei estrelas, até que cansadas de terem que estar assim certinhas para que não perdesse, mais uma vez, as contas resolveram ir se recolhendo para dormir.

Senhora, como também o povo daqui, deve se perguntar quem é este velho forasteiro, que chegou sem ter parentalha e nem conhecer ninguém? Também não saberia lhe explicar porque escolhi vir. Será pelo nome da cidade? Sei que depois de viajar um dia, desci do ônibus lá na sua capital e nem tive ânimo de deixar a rodoviária. Quedei-me na reparação dos nomes dos lugares. Quando vi chegar o ônibus velho, sujo de barro, na demonstração de que asfalto ainda não tinha chegado e tendo nome tão sugestivo, exclamei: É para Nova Esperança do Vale que vou!

Faço rodeios assim porque tenho medo de começar o relato que vim aqui lhe fazer? Tenho dúvidas não. Senhora diz que me gosta demasiado, mas assim que souber de tudo haverá de ter três sentimentos: ódio, pavor e nojo. Balança a cabeça dizendo que jamais que não? Que nada no mundo fará com que mude de opinião a meu respeito? Acho que se engana e isto me faz sentir, mais forte, daquelas tristezas que pareço possuir desde todo o sempre. Por isto retardo o falar. Enquanto não conto, lhe sou querido.

Da sua vida sei tudo. Casada com homem sério e de respeito por quase quarenta anos, enviuvou. Filhos criados e morando noutras paragens, sente-se sozinha e me diz que sou seu oásis nesse deserto de fim da existência. Como gostaria de ser!

Mas a vida tem mares e terras. Buracos e morros. Ela nos prega peças e a senhora, meu amor, logo saberá que terá de me esquecer. Até comprei passagem para ir-me embora. Olhos da senhora se enchem d’água. Tem receios do que vai escutar, ou de minha partida? Pois desembucho então, de uma vez, este meu contar da história.

Nossa mãe morreu de parto. O primeiro e vieram gêmeos. Não dos iguaizinhos. Fomos diferentes em tudo. Pai faleceu das febres quando tínhamos vinte anos. Herdamos as duas fazendinhas. Distantes uma da outra questão de quase quatro léguas. Disputas para se escolher com qual das terras ficar não houve. Damião permaneceu onde morávamos e eu, que apreciava cuidar da outra, chamada do Brejo, fui para lá.

Trabalho de roça, senhora sabe, é árduo. Tem possibilidade de descanso quase nenhum. Sendo assim desse jeito, só nos encontrávamos nos domingos no largo da praça. Missa, futebol na baixada, almoço na Donana e um fazer nada de amigos pela tarde. Nessas horas iam nascendo os quereres. Margarida, filha da dona da pensão, tinha lá seus trejeitos para mim. Ou aqueles mimos eram oferendas ao mano?

Dúvidas assim não foram daqueles tempos. Vieram no depois que o demônio se apossou do meu ser. Senhora arregala esses olhos que tanto gosto, por eu falar nome assim explícito do encardido. Queria dizer não, mas de que maneira relatar a vida que tive sem falar dele? Como, se deixei que chegasse sorrateiro e aos pouquinhos fosse me abraçando?

Risinhos para cá, palavras soltas de quem parece não querer nada para lá e estávamos de namorico. Daí para a coisa ir ficando mais séria foi causa da passagem de algumas semanas. Meu amor, senhora faz muxoxos de quem sente ciúmes. Carece de tê-los não.

Estava apaixonado e a sogra não queria namoro encompridado. Sabia das ânsias da carne e receava ter filha grávida e solteira em casa. Em seis meses estávamos casados. A Fazenda do Brejo ganhara dona. No começo Sinhá Maria, a velha que cuidava de mim, até arriscou certos enciumados, por conta daqueles modos novos que Margarida tinha trazido do Arraial.

Depois se acertaram, até porque aquele meu amor primeiro não tinha lá suas prendas nas lides da cozinha e arrumação da casa. Melhor que deixasse de dar ordens e somente usufruísse das benesses, que a servidora da família há tantos anos, era capaz de oferecer.

O mano, além de melhor amigo, era padrinho e de vez em quando vinha provar do tempero de Sinhá. Olhar de Margarida brilhava mais quando Damião estava? Teve um dia no qual fui com vaqueiro consertar cerca na virada do morro, que se tornou passível de cisma.

Quando voltei já no bem de tarde, encontrei os dois nas risadas, vindo dos pés de frutas dos fundos da cozinha. Na hora nada maliciei e só assuntei do que riam, querendo adentrar assim o interior daquelas alegrias. Ao chegarem, tempos após, as sombras daquele que a senhora não quer que repita o nome, perdi muito sono no imaginar o que podia ali ter havido.

Antes das chuvas chegarem Margarida estava grávida. Foi ficando mais linda ainda. Sempre com largo sorriso nos lábios, que ser mãe era o que mais desejava. – Quero ter pencas de filhos. Na nossa família vai ser igual liga de São Bento. Será um para fora e um para dentro. Era o que contava, às risadas, para mim e Damião no almoço de um domingo.

Enxoval que ia se fazendo e as coisas mais bonitinhas e vistosas que a criança ganhava era o meu irmão quem trazia. Encomendava de Nacif, o turco com as riatas das mulas transbordando de trens. Mimos de deixar boquiabertas as mulheres. Queria ser padrinho de novo. Disso jamais que abriria mão. Margarida e eu fazíamos gosto demais nisto.

O menino nasceu em noite de grande trovoada. No início das coisas, com o rompimento da bolsa saí. Levava de banda o cavalinho baio e manso de Margarida, para buscar a parteira. Enquanto isto Sinhá Maria cuidava da minha amada e da criança querendo vir ao mundo. Não demoramos nem duas horas, mas antes de passar a soleira da porta, já escutávamos choro de recém-nascido. Quis esperar parteira nada e foi pelas mãos de Sinhá que meu filho veio ao mundo.

Ser pai é alegria das mais alvissareiras. Faz a gente se sentir bobo, rindo daquilo que vê todo dia e nem acha graça. Estava assim. Até me peguei tentando lembrar toadas que papai cantava quando nos punha para dormir. De alguns versos me recordei. De outros, para que a música não ficasse de pé quebrado, fiz lá meus arranjos, enfiando palavrinha aqui e outra acolá.

Nos primeiros meses houve a tal aflição das dores de barriga no menino. Era com essa tal cantiga remendada que embalei os sonos de Jorge. Foi este o nome, mesmo sem ter gente chamada assim na minha família e na dela, que Margarida escolheu.

Criança que ia crescendo rápido que nem abóbora no quintal. Bonita e tão amada. Quando completou seis meses vivia cheia de sorrisos e de gritar pedacinhos de palavras lá na língua deles e que ninguém entendia. Damião tinha marcado a data do Batizado, dois meses adiante, na festa do santo que lhe dava o nome.

Foi exato nesse tempo que tudo armou de se suceder. Senhora, quem sabe, poderia me ajudar com suas inteligências e raciocínios a definir a hora em que o excomungado adentrou na minha história. Ou será que não teve este momento e que ele vivia comigo, escondido oculto nas minhas brenhas, desde todo o sempre da existência? Sei não. Só sei que desta culpa, nem com toda a eternidade nos infernos, serei capaz de me ver livre.

Lá na cadeia companheiro de sofrimento me fez pergunta. - Acaso não havia escutado por esses tempos, naquelas noites escuras de lua, parecendo mais ponta de unha, o pio da macuã? Pois não é que ela tinha cantado e na época fora incapaz de juntar lé com cré nesses entendimentos? - Pois foi no triz do terceiro pio dessa ave de mau agouro, que o capiroto assumiu sua mente!

Foi desse jeito, sem tirar nem por, que Anselmo me deu as garantias da hora em que virei cruel. Olhos da senhora, tão bonitos sempre, querem saltar ao ouvir palavras assim como cadeia e cruel. Sim, meu amor, senhora se lembra do que lhe dizia nos começos? Que depois de saber das histórias iria me odiar e me querer o mais distante possível?

Pois aprecio demais que não me faça perguntas. Seu silêncio ajuda a que vá pondo em ordem os pensamentos. Nunca tive tanta clareza deles, como agora nesta noite aqui na qual conto tudo. O meu derradeiro dia em Nova Esperança do Vale. Passagem de amanhã cedo está no bolso da calça, lhe contei.

Só desgosto, por demais, dessa tristeza que vou trazendo. Ah, meu amor! A senhora nem imagina o quanto lhe quero bem e que só desejava lhe oferecer conversas de primaveras, assuntos de ramalhetes de flores e ovinhos pintadinhos de pássaros cantando no vigiar diário dos ninhos.

A dúvida já tomara conta. Jorge era meu filho, ou de Damião? Razões mesmas para duvidar de Margarida, tinha nenhuma não. Mulher mais dedicada e amorosa não poderia haver outra no mundo. Mas quando o coisa-ruim vira senhor, não há mais condições de se garantir certeza de algo. E aquela minhoca pequenina que ele infiltrou na minha cabeça cresceu. Aos poucos foi dando cria, que esse animal nem precisa ser casal para procriar.

Em pouco tempo tinha certeza absoluta da traição. Margarida e Damião estavam de caso e a criança, que criava como pai dedicado e amoroso, não era minha. Era seu filho. O cão me trazia argumentos assim: Agora fica explicado o porquê dele ter ofertado os melhores presentes para Jorge. De haver, praticamente sozinho, feito o enxoval do garoto. De querer porque desejava, e este ponto jamais discutiria, ser padrinho do menino.

Meu avô sempre contava caso de que tinha sido enganado pelos ciganos. Venderam para ele touro dos mais vistosos e de grande raça, mas estéril. Com esta história na cabeça decidi, por via das dúvidas, fazer exame de fertilidade.

Como precisava ir à cidade comprar vacinas e pagar os empréstimos, tirei mais um dia e segui até mais adiante. Fui para a capital. Queria tirar a limpo aquela possibilidade. Vai que eu fosse estéril... Aí a maldade da traição estaria queimando como sol de janeiro no meio dia.

Falei com Margarida que dormiria fora, pois não haveria tempo hábil para realizar tudo num dia só. Para a capital eram mais sete horas de viagem, além das três daqui até a cidade. Exame feito e solicitei que me mandassem o resultado pelo correio em carta lacrada. Quinze dias depois, na posta restante da agência no arraial, tinha chegado carta do laboratório.

Abri lá dentro mesmo e saí lendo aflito rua afora. Senhora sabe o que estava escrito? “Paciente com número de espermatozoides insuficientes, o que o torna incapaz de gerar.” Eu era estéril, meu amor. Aquele menino não era meu fruto. Tinha sido traído pelo irmão gêmeo. Imaginou dor maior do que esta? Alguma vez já?

Não dormia mais. Pensar em outra coisa qualquer, nas criações, no milho que coroava, na chuva que se atrasava, ou nas vacas que diminuíram o leite, era incapaz de. Só aquilo martelando dia e noite a consciência. A senhora acha que alguém é capaz de viver assim? Foi então, numa noite daquelas, com a ave noturna, a macuã cantando forte, que a decisão se fez ato. De tão perto vieram os pios aziagos, que defini que ela cantava exato para mim. Estava nalgum galho bem perto do quarto e piava, disso não tinha dúvidas, olhando lá do escuro, para a nossa janela.

Deliberei, ou só segui o que o todo sujo tinha decidido para mim? Sei que foi coisa simples e fácil. Margarida não tinha coragem de deixar Jorge no berço presenteado por Damião. Somente para sonos mais leves de durante o dia ela o punha lá. No comum das noites ele dormia entre nós dois. Com o sono pesadíssimo do meu amor, era eu quem acordava quando seu choramingo acontecia, pedindo peito.

Peguei a lamparina e esvaziei virando no chão do quintal o resto do querosene. Nem esperei que se apagasse. Soprei e voltei para a cama. Nas trevas, peguei o travesseiro de pluma mais macia e ajeitei em cima do bebê. Fui apertando. Suas perninhas começaram a balançar batendo na minha barriga e braços. Não precisei aumentar a força. Questão de esperar um tempo e os movimentos ficaram mais lentos. Até que pararam de vez.

Por via das dúvidas, dei um último aperto e contei até cem. Quando soltei e tirei o travesseiro vi que não respirava. No pano, no lugar da boquinha, uma manchinha de água com leite do pagãozinho. Levantei-me de novo e passei pano úmido no lugar. Retornei e, devagarzinho, fui empurrando o corpinho inerte de Jorge para junto do de Margarida. Tomei o cuidado de deixar o rostinho dele bem encostado às suas costas.

Senhora acredita que dormi? Veja o tamanho das imensidões que pode chegar, a maldade de alguém possuído pela besta fera. Acordei com o grito lancinante da traidora. - Meu Deus, que foi que fiz! Dei um pulo, como se assustado. À luz do dia Jorge parecia dormir, boquinha meio aberta. Na minha maldade fui capaz de reforçar a questão do sono pesado e de que, por conta dele, tinha se virado descuidada e sufocado nosso filho.

Mas no fundo o que mesmo pensava naqueles tempos, era que filho de um pecado, como aquela criança, tinha que morrer por conta de outro, para que se mantivesse o equilíbrio do mal existente no interior daquela situação maligna e esdrúxula.  

Tenho vergonhas das suas lágrimas. Senhora chora demais enquanto lhe conto. Não quero esquecer nada. Meu amor, milhões de desculpas, mas não tenho mesmo como cessar agora esses relatos. Depois de começado é tal e como pedra rolante do alto do morro. Jeito de parar só quando chegar aos baixios. Este foi só o começo da vingança.

Damião tinha ido ver um gado fora. Quando chegou e recebeu o aviso faltava pouco tempo para o enterro. Margarida insistia que devíamos esperar, o que só fazia com que aumentasse meu ódio. Raiva surda e fervente. Queima as entranhas. Faz remoer tudo que a gente tem dentro do corpo.

Decidi acatar e esperar. Até porque já tinha rabiscado nos desvãos das más memórias o próximo passo dessa desdita. Damião veio em galope de matar cavalo bom. Chegou e chorava por demais. Com aquele exemplo resolvi dar uns choros também. Podia bem de ser que alguém reparasse que quase nada havia lagrimado no velório.

Caixão que mais parecia uma caixinha. Naquela tarde a tradição foi quebrada. Ao invés de crianças vestidas de anjinhos, a levar o féretro até o campo santo, no meio do caminho, com a desculpa de que deviam estar cansados, meu irmão tomou deles a caixa branca com a cruz em cima e a foi transportando numa posição esquisita, em frente ao corpo, até chegar ao cemitério da fazenda, no alto do morro

Acabado tudo ele me abraçou bem forte. Lágrimas dele molharam meu ombro. No início quis fugir daquilo, mas aceitei triscando os dedos em suas costas. Na descida de volta para casa veio ao meu lado. Margarida desesperada ia sendo consolada pelas amigas.

Falei então para Damião da capelinha que tinha encontrado numa gruta. Que era um altar feito por papai e que tinha, além das imagens de um tanto de santos, várias fotos de mamãe. Isca perfeita para ele que sempre reclamara de nem saber como era o rosto dela. Convidei-o, como solução para alívio de tamanha dor, que entrássemos na vereda que ia dar nos brejos, para lhe mostrar meu achado.

Procurando vaca brava desejosa de parir no mato, tinha descoberto a tal gruta. Capelinha, vaca bravia, retratos e imagens de santo. Tudo mentira. Nada além de aranhas, cobras e miríades de morcegos haviam de possuir gosto em viver naquela escuridão úmida, a entrar para as profundezas da terra.

Curioso, Damião deu um passo á frente, enquanto fingi tentar acender umas folhas de mato bom de se fazer luzeiro, que vim ajuntando pelo caminho. Abri então o canivete e o abracei pelas costas. Espetei a lâmina três vezes em sua garganta. Na última rasguei horrendo. Sangue esguichou para todo lado. Pernas ficaram bambas e o empurrei então para os fundos. Ao sair ouvi que lá no buraco ele ainda se debatia.

No sol de final da tarde vi que a camisa branca estava suja. Tirei-a e a joguei também na gruta, que mancha assim não seria capaz de ser limpa, com o simples lavar com água da vereda. Carecia sabão, de se esfregar forte, bater na pedra e quarar ao sol para sumir de vez a marca.

Ao chegar vi que as amigas da minha mulher ainda estavam por lá. Dei a volta e no varal, por sorte, tinha uma camisa secando. Vesti-a e entrei fazendo cara de quem estava soluçando.

- Uai, você saiu com camisa branca e volta com uma cinza? Foi o que a zonza da Margarida conseguiu dizer ao me mirar, deitada que estava rodeada por suas amigas. Todas fizeram cara de riso, que rir mesmo naquela hora não se podia, inclusive a assassina. Garanti que se enganavam. Que aquela era a roupa que tinha ido. Faz sentido mudar de vestimenta assim na rua em dia tão desgraçado, tal como aquele que ali ia chegando ao seu final?

Disse que podiam ir embora, que era eu quem iria cuidar da minha mulher. Foram então se levantando e dali a pouco estávamos sós. Sinhá Maria foi a última e lhe disse que no dia seguinte não precisaria vir, eis que eu mesmo trataria de Margarida. Relutou, mas meu olhar firme fez com que acatasse tal ordem.

Senhora está com o rosto coberto pelo lenço. Tem coragem mais não de me espiar, não é mesmo? Mas, meu amor, precisa saber de tudo. E mais ainda, necessita ter a certeza de que eu a adoro para todo o sempre. Está terminando a história. Daqui a pouco tudo estará acabado. Agora só falta mais um capítulo para que possa tomar ciência das minhas perversidades neste mundo de Deus.

Não carecia ficar de rodeios. O que tinha que ser feito o seria sem mais delongas. Só uma coisa, em definitivo, não queria. Que ela fosse para os infernos sem conhecer que de tudo eu era sabedor. Fala mansa e disse que sabia não ser aquele o meu filho. A prova a tinha escrita e apresentei o resultado dos exames. Queria que lesse para se envergonhar ainda mais.

Gritava e eu nem sabia se de vergonha, de dor, ou de desespero. Jurava pela alma do nosso anjo. Ela falava nosso, mas era dela e dele. Implorava que jamais tivera o menor carinho com Damião. Que casada comigo imaginou ter agora um irmão que nunca pudera ter, eis que era filha única. E se descabelava. Ajoelhada aos meus pés jurava amor e fidelidade, me pedindo desculpas pelo acontecido, de ter adormecido sobre Jorge.

Não aguentava mais aquilo e resolvi que era chegada a hora dela. Mas desta vez sem sangue, que aquele de Damião já me deixara enojado demais. Como se fosse acariciar seu rosto, tomei seu pescoço e fui apertando. Com toda a força que o demo me proporcionava e ela era imensa. Enquanto ele afinava sua língua saia se encompridando, a fazer-me horripilante careta. Olhos imensos me fitavam parecendo querer me escalpelar. Quando não mais balançava e seu peso se pôs inteiro nos meus braços, cansados de tamanho esforço, larguei-a no chão. Um último espasmo e tudo estava consumado.

Esperei chegar meia noite. A macuã cantou e fui para fora. Não tinha viva alma nas redondezas. Deitei Margarida no couro cru do cavalo e a levei até a gruta. Foi fazer companhia a Damião. Voltei leve que nem asa de borboleta. Acha que posso dizer que dormi em paz? Pois aquela noite sonhos que tive foi de brinquedos em parques de diversões. Meu amor, senhora é capaz de ouvir uma loucura dessas, sem imaginar que está diante do de pés virados?

Sol nem tinha aparecido, quando empregado de Damião me acordava daqueles sonhos das brincadeiras. Queria saber notícias do patrão. Assuntei com ele, cheio das manhas e de sutis mentiras, que o mano tinha me afiançado que daqui do enterro partiria direto para a cidade. Por lá tinha importantes tarefas a serem cumpridas e de quais fossem ele nada me detalhara.

Passado um tempo e foi Soninha, a melhor amiga de Margarida, que apontava com bolo, flores e folhas para se produzir chá de calmarias. Ela do lado de fora e eu, sem rendimento de grandes conversas,  tentando sem sucesso dispensá-la. Disse que deixasse os trens na cozinha, pois que minha mulher dormia a sono solto e não seria bom que a acordássemos.

Fogo estava quase aceso e se fazia mesmo questão, que aprontasse a tal bebida, que daria para minha mulher quando por fim despertasse. Fiquei sentado no banco perto da porta do quarto. Vai que ela cisma de entrar lá.

Soprou as brasas e botou lenha seca e fina para queimar logo. Enquanto esperava a água ferver, de rabo de olho para as bandas do quarto, pôs-se a me falar, meio sorrindo, meio nas enviezadas ironias.
- Compadre está trancando comadre lá dentro? Reparo que a tramela está fechada. Ri por fora de jeito a esconder as raivas internas daquela curiosidade excessiva.  - É para que a gata, que cedinho fazia rodeios por aqui, não entrasse no quarto. Fechei e acabei esquecendo. Quero prender Margarida não. Eu falava enquanto desvirava a tranca.

- Quem vai fazer almoço? Não estou vendo nem sinal de Sinhá Maria e a comadre assim nessa situação de melancolia. E lá vinha ela com mais indiscrições. Pedi para Sinhá matar galinha gorda e preparar, lá mesmo na casinha dela, canja bem reforçada. Já, já estará trazendo para nós. Carece de você se preocupar não, Sônia. Disse assim, mais no social e menos nas intimidades, para que entendesse que a corda estava quase toda esticada.

Foi ela dar os bons dias e sair deixando lembranças à comadre e eu me arrancar pela outra banda. Precisava dar essas ordens que inventei já ter mandado, para Sinhá. Fui pelo caminho do mato que é mais reto. Ao chegar perto escuto conversa. Pois a senhora nem imagina o que era. Não é que aquela bisbilhoteira lá não estava num assuntar de boca miúda? Dei meia volta nas certezas de que as linhas dos meus maus feitos, não tinham mais como serem amarradas.

Peguei o garrafão de pinga, sentei de novo no banco perto da porta do quarto e entornei o chifre. Era comemoração daqueles três assassinatos cometidos? Era para me esquecer do que tinha feito nesses dois dias? Era porque o fanho bode exige que haja bebedeira de quando em vez? Sei responder à senhora não, meu amor.

Faz tempos que nem vejo mais seus olhares. Eles se esconderam de mim atrás desses lenços molhados. Meu amor, compreendo seus soluços. Apesar das aparências não sou só este ser humano a olhá-la com a maior candura. Sou também monstro maligno, que fogo nenhum nas profundezas do inferno será capaz de purificar.

Quando estava bêbado de lamber balcão, fui deitar na nossa cama. Pensei em alguma coisa? Não me recordo de nada. Só me lembro de que ao acordar era noite. Dois soldados me sacudiam perguntando por Damião. Na estrada e muito menos na cidade se tinha notícias dele. Sinhá Maria também estava e indagava aflita e em altos brados, por Margarida.

Sentei na cama, olhei bem firme nos olhos do militar mais graduado e lhe fiz, sorrindo as afirmações: Pois não é que matei Damião? Matei também seu filho Jorge e a mãe dele. A empregada deu um grito e caiu desmaiada. Os milicos, parece que acostumados às imensidões das maldades existentes no sertão, só respostaram: - Pois o senhor esteja preso. Vai conosco agora mesmo para a cadeia.

E foram me levando abrutalhados, puxando meus braços para trás, como se fosse oferecer resistência. Não sei como notícias de desgraças assim correm mais do que as pernas da gente. Pois não foi que ao passar no diante do sítio da comadre Sônia e compadre Adilson, ela já chorava, num gemer horrível, encostada na cerca. Gritou para mim: - Assassino malvado! Não aguentei calado. Passei recibo de contestação imediata. A senhora que é tão fofoqueira, que vá lá numa gruta nos baixios para encontrar sua amiga e o amante dela. Os gritos do choro da desgraçada aumentaram ainda mais de volume.

Fui levado para a capital, pois que cadeia lá é coisa simples demais e tinham receios de que o povo quisesse me matar, tal qual se extermina cachorro doido. Seria melhor que tivessem me deixado e houvessem cumprido isto. Nas imprensas do país todo saiu estampado meu retrato. Apelido que me foi dado era “o monstro do sertão”. Senhora acaso pode ter lido algo, meu amor?

Julgamento nem demorou muito a chegar. Réu confesso, corpos encontrados, mais que explicado o final de cada um, inclusive a armação montada a respeito da criancinha. Fui condenado muito mais do que à pena máxima.

Somadas as três mortes, mais os ocultamentos de cadáver, e havia as premeditações, essas coisas todas, foi para mais de século a pena a ser cumprida. Depois de 30 e qualquer coisa de anos de cela, me disseram que estava livre. Que pelas leis do país de mais nada eu era devedor.

Não tinha a menor vontade de sair da prisão. Para mim, após tudo que fiquei sabendo depois daqueles infaustos, uma vida só era pouca para pagamento de minhas iniquidades. Remorso era palavra que não existia quando comecei a pagar os crimes. Ele apareceu foi depois, com o sucedido que agora lhe conto, para terminar assim a minha narrativa e ir-me embora. Já falo há tempos e a madrugada vai alta. Logo chegará a hora do ônibus e carece de eu deixar também a senhora descansar.

Mais ou menos a cada três meses, dona Luzia, da Agência dos Correios da vila, fazia um amarradinho com as correspondências que para mim chegavam e mandava entregar na cadeia da cidade. Pois nem tinha terminado o meu terceiro ano de cela, quando dentre avisos bancários, e publicidades diversas, chegou carta com timbre do laboratório da capital, no qual realizara aquele tal exame.

Imaginando ser algum aviso de mudança de endereço, ou telefone, abri o envelope. Susto foi de matar monge. Pois não era que me comunicavam ter havido “lamentável troca de exames”? Que fruto das investigações feitas a partir das queixas de um cliente, dado por eles como fértil e que desde aquele tempo não conseguira engravidar sua esposa, deram por terrível engano. Que o resultado do teste enviado era do tal homem infértil e que ele ficara com o meu. Assim, continuavam, "depois de revistos os parâmetros de qualidade e após seguimento dos preceitos de cuidado e atenção”, afiançavam que eu era totalmente capaz de gerar filhos.

Senhora entende então o tamanho da vontade que tive de dar cabo à vida? Remorso é dor que arde de dia e de noite sem parar. Essas camisas sempre de manga comprida e jamais dobradas, mesmo que o calor seja altíssimo, são para esconder cicatrizes dos pulsos.

Tentei de todo jeito o descanso da morte, mas como nunca estava sozinho, satã dava jeito de acordar alguém para o socorro. Facas, ou outro tipo de lâminas não havia. Por anos lasquei pedras, lixei colheres, até com plástico e cacos de telha tentei me matar. Por isto as marcas eu quero mostrar à senhora. Veja, são tão rudes, meu amor.

Foi então que entrou em mim a religião. Companheiro liberto deixou de presente a Bíblia dele. Conheci a história de Abel e Caim. Irmão que mata o outro. Li atento a punição de Deus ao assassino. Ordena-o vagar pelo mundo sem poder ter o refrigério da morte. Sou novo Caim. Descansar? Sinto que jamais irei de. Mas acho algum consolo nas Igrejas. Vou a todas e nelas recebo pedacinhos de algum refrigério. 

Senhora, meu amor, com certeza pensa: Por que Deus me obrigou a esta prova? Ouvir relatório tão escabroso e horripilante. Ainda mais tétrico por se tratar da vida de alguém que imaginei construir caminho juntos, no daqui até o final.

Já estou de partida, senhora pode parar de chorar. Só queria pedir que pela última vez pudesse admirar seu rosto, seus olhares. Senhora balança a cabeça que não? Entendo e muito respeito essa decisão.

Sairei então guardando nessas sofridas e velhas retinas, a imagem sorridente daquela que me recebeu, quando ontem aqui cheguei no começar da noite. Para aonde estou indo não lhe direi. Melhor que assim seja para que possa, o mais cedo possível, se esquecer desse ser desnaturado.

Nesse meu furioso e desesperado estradar só duas mulheres, Margarida por primeiro e a senhora nesse por último foram meus amores. Ainda preciso buscar minha mala. Vou saindo assim de fininho, pisando macio. Parto do mesmo jeito leve e delicado que naquele dia na Igreja entrei na sua história. Adeus, senhora, Até nunca mais, meu amor.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 01/04/2013
Alterado em 22/03/2017


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