Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Os cadernos da falecida 

O avião corta o céu da noite há mais de cinco horas. Concluíra ser impossível dormir. Pela janela Solange observa o clarão dos raios. Espocam bem abaixo da altitude de cruzeiro, na qual o grande pássaro metálico segue seu rumo. No bojo do monstro retorna para casa.

Entre o embarque e a chegada em São Paulo não se passariam nem quatro dias. Meio século sem ter cometido nenhum desatino até que acontecera a noite passada. Oculta no escuro daquele ventre, sorri consigo mesma e reflete. Tem consciência de que aquela tinha sido uma experiência irrepetível, única. Mesmo assim gosta de se ter feito a piada: “Quando comemorar cem anos farei novamente”.

Apesar do cansaço mantem-se elétrica. Aliás este fora um verbo cuja ação pouco tinha se dado nela nesses dias. Permanece acesa como imenso círio que nem os fortes ventos seriam capazes de apagar.

A loucura vivida teve longa gestação. Ela se prende, por fios finos e delicados, à infância. Será lá e não nos austeros tempos vividos desde o final da adolescência até a madurez dos cinquenta anos que respostas deverão ser buscadas. Lá longe, escondidos na memória da menina, residem motivações pelas quais fora capaz de cometer tamanha insanidade.

Recorda-se, até aonde conseguem correr seus pensamentos, daqueles tempos infantis. As lembranças lhe mostram, desde todo o sempre, além da indigência da situação econômica, provocadora de mudanças de residência praticamente a cada ano, uma família dividida em três partes distintas.

De um lado a mãe raivosa e impaciente, se sentindo amargurada e triste por não conseguir cumprir seus desejos, carregados de viagens e muitas festas. Vez ou outra, naquelas horas em que estava sozinha com a filharada, lhes recontava histórias ouvidas de uma sua tia, “uma doidivanas” - segundo palavras de quem compõe a segunda parte da família, o pai - a respeito de bailes e noitadas em salões esplêndidos onde todos se vestiam mais que impecáveis. Usavam trajes de gala, capazes de embelezar qualquer um, mesmo o mais feio e inadequado ser. Lugares de sonhos, castelos cheios só de gente fina. Passava a impressão de não haver conhecido nada no mundo além de diversão e riqueza.

Da outra parte se punha o pai. Homem rígido e do qual só se conseguia ver os dentes em três situações: quando bocejava; nas horas em que mordia puxando, selvagemente, a carne do garfo e naqueles momentos em que, mantendo preso à boca o cigarro, tinha necessidade de o ajeitar por conta do incômodo da fumaça nos olhos. Pessoa de pouquíssimas palavras e nenhuma resposta à mulher e filhos. Causava tamanho desconforto a sua presença, que mesmo estando ali ao lado, a família fazia de tudo para ignorá-lo, como se bem distante estivesse.

Largados embaixo deles postava-se a terceira parte composta pela criançada. Sete ao todo. Dois meninos e cinco meninas, fora Saul que morrera ao nascer. Estes jamais se alinhavam com o brutamontes do pai. Até que tentavam se aliar compor com a mãe, mas esta, quando não se punha irritada, vivia num mundo distante e bem diverso daquele do qual eram parte. Um reino povoado só de alegrias e comemorações. Somente ela, relembra, conseguia romper a casca. Por isto, quando um precisava de algo, a usava como meio. “Mamãe sempre me atendia”.

Houve uma época em que o caminhão de mudanças sumira. Moravam então num dos locais mais degradados da cidade, lugar onde os aluguéis eram possíveis de serem pagos por gente como eles, vivendo à beira da malfadada ladeira escorregadia, capaz de a qualquer momento arremessá-los nas favelas. Sem dúvidas a melhor casa na qual residiram.

Não porque fosse mais confortável ou espaçosa, mas porque ao seu lado as festas pareciam nunca ter fim. E ela, por mais séria que pudesse para os demais parecer, as adorava. Era talvez a única, entre os irmãos, que havia herdado da mãe suas duas características principais: a irritação constante, com praticamente todos e tudo, mais essa ânsia gostosa pela diversão.

Viviam cercados pelos cabarés. E de lá vinham os sons dos brindes, as constantes risadas e aquela música alta a lhes embalar as noites, até que o sono enfim resolvesse dar as caras. Ela e os manos sabiam de cor e salteado as letras cantadas. Um dia seu irmão, um ano e pouco mais novo, cantava displicente uns desses versos, bastante imorais diga-se de passagem, quando a mão pesada e cheirando a fumo do pai lhe veio forte à boca. Chegou a bambear um dente.

Foi a primeira vez que teve clareza da raiva. Ela devia já existir, mas àquela hora aflorou com tanta força que chegou a temê-la. Irrompeu tal qual vulcão que explode desvairado, expelindo lavas por todos os lados de suas ribanceiras. Mais que aquela ira, o que sentiu foi verdadeiro ódio de si mesma por ter se omitido. Deixara apanhar sem que houvesse, mesmo sabendo que teria sido surrada em dobro, defendido o pequeno. Curtia a raiva da covardia por ter-se mantido quieta.

Aquele foi um dos momentos marcantes em sua vida. Tomara consciência de duas realidades. Da raiva rude que a dominava internamente e de que aquelas músicas que escutavam, vindas da vizinhança, definitivamente não eram para ser cantadas perto do pai e, por segurança, até mesmo dos demais adultos.

Em momentos os mais insólitos pegara-se também cantarolando, algumas daquelas canções proibidas. Tal fato costumava ocorrer quando rezava na capela, imediatamente após ter recebido algum pai ou mãe, daqueles que ninguém aguenta por reclamarem de tudo e mesmo em meio aos hinos litúrgicos na procissão de Corpus Christi. A música funcionava como sinal de que o silvo da panela de pressão tinha aumentado tanto, que só poderia ser abafado por tais versos indecorosos. “Perdão, Senhor!” Repetia então em milhares de jaculatórias.

Aquelas letras para lá de sensuais, tratando de amores conquistados violentamente e depois perdidos em meio a brigas e traições, compostas de versos jocosos, plenas de rimas das mais indecentes e impregnadas de humor sensual,  eram capazes de exercer tremenda atração sobre ela. 

Num retiro teve certeza da vocação religiosa e resolveu assumi-la. Naquela oportunidade, em meio a uma confissão mais profunda, declarara ao padre haver tido desses pecados de cantar canções de putas e cafetões e de ser uma pessoa das mais irritadas e irritadiças da face da terra. Irritadi não, Irada seria a palavra mais correta para exprimir o que sentia e desejava relatar ao sacerdote.

Não foram poucos os esforços feitos para riscar da memória aquilo tudo, mas esta façanha, sem dúvidas que estava bem além das suas forças. Era algo impossível e somente com o apoio da fé seria capaz de superar tal comportamento. Aquelas lembranças sempre voltavam, o que a fazia ainda mais irritada. Fosse sentir-se assim somente para ela, tudo bem, mas o problema era que sabia-se incapaz de conter dentro de si tal sentimento.

Ele sempre, de alguma ou outra forma, aflorava e fazia com que, além de se ver descoberta, nua em sua raiva pelos demais, ela que era sempre tão perfeita, acabava por tornar-se para eles chata e implicante. Alguém que se deseja, como ocorria com seu pai, manter segura distância.

Como, da mesma maneira que a raiva, não dava para matar e sepultar as canções de cabaré optou, num rasgo de sensatez, por educá-las. Mudava então as palavras e assim ia criando novas histórias, agora bem edificantes, no lugar daquelas chulas lá da infância. Aprendeu a fazer de cantigas tremendamente profanas, músicas profundamente cristãs.

A humanidade crente, sempre que trata de Deus tende a colocá-lo bem no alto. Com o demônio ocorre exatamente o contrário. Este está sempre posto bem escondido, nas profundezas do seu reino de trevas. “Como Ele vive nas alturas, no avião estou mais perto dele”. Imagina Solange. “Aqui, mais próxima, posso lhe pedir perdão por tudo que fiz nestes dias”.

“Mas cumprir a vontade de um morto é se sentir necessitada de absolvição? E se não houvesse atendido àqueles desejos tão claramente expressos? Aí é que estaria precisada do perdão do Pai sempre bom?” E assim vai rezando: “Senhor, peço perdão por ter feito, do mesmo jeito que o estaria solicitando, caso não tivesse feito as últimas vontades da mamãe”.

As imagens dos derradeiros dias da velha lhe pousam de uma vez, intensos. Havia sido convocada pela família um mês antes. “O estado de mamãe é irreversível, venha logo”. Dizia suscinto o email enviado pelo caçula. Era tempo de matrículas na escola e como diretora não havia como abandonar o barco. Nas orações pedia para que Deus desse vida à doente por mais alguns dias, até que enfim pudesse estar junto dela.

Chegou a tempo de ficar com a moribunda por pouco mais de três dias. O tempo dessa viagem insensata, pensa agora. Não havendo mais nada a ser feito no hospital, a famlía optara por aguardar a chegada da morte em casa. Despachada como era, a primeira ação que tomou foi dispensar a irmã que, dia e noite, cuidava da doente há vários dias. Dali daquele leito vizinho só se afastaria para ir ao banheiro, estava decidida. Sentia certa dose de arrependimento por não ter dado jeito de vir antes. Do rosto magro da enferma grossas lágrimas escorriam enquanto lhe sorria, falando baixinho:

“Tinha pensado que não viria ficar comigo. Que bom que está aqui. Há algo que não podia pedir aos seus irmãos. Além de não me entenderem nem um pouco, ao lerem o que tenho escrito pela vida afora, muito menos sentirão vontade de me satisfazerem as últimas vontades. Você, freira, conhece mais da natureza humana e olhará com compaixão o que nos meus cadernos está registrado. É que neles trato dos meus sonhos e só a gente mesma, mais ninguém, é que sabe do que é capaz a própria mente”.

Segurou com força as mãos, ossos puros praticamente, da mãe e só balançou positivamente a cabeça. Tais escritos, os diários, a mãe lhe explicava, fatalmente iriam ser descobertos após sua morte e tudo na vida que desejava é que não fossem devassados por olhos indiscretos.

Ensinou como chegar até eles. Guardados sob o fundo falso do baú, no qual ficavam armazenadas roupas de cama de finíssima cambraia, jamais usadas, na expectativa de que tempos de bonança chegariam e que enfim teriam uma bela casa, com bonitas camas, capazes de acolher tais peças do enxoval feito com tamanho carinho e sacrifício pelos pobres avós de Solange.

“Minha filha”, continuava agora a lhe falar, talvez com receios de que a morte chegasse sem que tivesse dito tudo o que era necessário. “Será necessário e para isto você está autorizada, a ler o que está guardado. Mas depois me prometa que fará uma grande fogueira e queimará tudo. Desde bem pequeninha sempre a vi tão igual a mim. Sinto que se não fosse quem sou, seria alguém exatamente como você.”

“Aliás, nem tão igual assim porque esse negócio de ser freira, você o sabe muito bem, jamais que entraria pela minha cabeça. E você lembra também o baque que tive quando me contou que iria embora de casa não para se casar, mas para se tornar religiosa. Vivi então uma crise de identidade, sabe? Via-me tanto tal qual você e aquela que me era tão parecida, toma uma decisão que nada tem a ver comigo.”

Mãe e filha agora sorriam solidárias e cúmplices uma para a outra. Os olhos cinzas e embaçados, com tão pouca luz, a mirar aqueles outros ainda cheios de vida e que estavam bem bonitos molhados, assim como se almejassem transbordar a água que estava a lhes cobrir. O olhar esmaecido e triste se cerrou e parecia estar adormecido.

Por sentir que aqueles temas eram mesmos tão caros à mãe e por achar que ela não dormira, tentou puxar o assunto mantendo-o aceso. Fez isto também naqueles vários tempos em que se encontravam sozinhas no quarto, mas nada mais ela lhe disse sobre esses segredos. A piora veio a galope e à medida em que chegava obrigava não somente a ela, mas a todos na casa e eventuamente a enfermeiras contratadas, a redobrarem cuidados e atenção com a paciente.

Em meio ao agito acabou se esquecendo do que ouvira naquela confissão materna, assim que chegara. Foi naquela hora esquisita, na qual se sente forte, pela primeira vez, o vazio da perda e que acontece um pouco após se ter retornado do cemitério, que os tais cadernos lhe retornaram à mente. Esse momento vem depois, parece que por força do hábito, de todos terem passado pela casa da mãe. E como mãe lá mais não havia, cada um foi dando um jeito de se ir embora para o próprio canto. Por lá agora só os tais cadernos secretos e a filha freira.

Imaginando que depois de escarafunchar o baú não teria mais ânimo e muito menos cabeça para tal, optou por primeiro cumprir com as obrigações. Pegou o Breviário na bolsa e o rezou. Acaso lhe perguntassem o que tinha orado não saberia responder, tal era o tamanho da vontade de conhecer as memórias maternas.

Cheiro de guardado, odor forte de naftalina preenchia o quarto. Na cama da mãe aquele mar de roupas brancas e da melhor qualidade, cheias de bordado. Quando o móvel parecia vazio bateu com os dedos e pôde perceber haver ainda algum espaço até o seu final. Olhando melhor os cantos, reparou que aquilo que parecia ser o fundo nada mais era do que fina tábua.

Precisava de algo pontudo para levantar aquela madeira. Foi em passos rápidos à cozinha e de lá trouxe a faca. Enfiada no pequenino espaço existente entre a tábua e as laterais do baú, fez a alavanca para que se levantasse. Agora chegara ao fim. Nos fundos respousavam, numerados de um a onze, grossos cadernos espirais.

As mãos tremiam ao segurá-los. Levou a pilha até a mesa de jantar e passou a noite lendo e relendo, a letra miúda e cuidadosa da mãe. Contavam da sua infância, da pobreza e dificuldades. Da raiva imensa que, por todos os santos e santas de Deus, sempre tentara em vão esconder e que acabavam a denunciando. Relatavam também como se davam as exigências familiares e de como se sentia frustrada em casa.

Falavam dos pais e sua rigidez, das amigas e, principalmente, das festas. Estas pareciam ter sido todas sensacionais. Qualquer quermesse, aniversário ou casamento, tomava ares, ali naqueles textos, de coisas imensas, grandiosas a mais não poder. Eventos que jamais poderiam ter acontecido numa cidade tão pobre e com gente tão miserável como era a família da sua mãe.

Festas, que em definitivo, pareciam ter sido além de brilhantes. Alguém desavisado a ler aquilo, teria a impressão de que cada uma delas  ocorrera por no mínimo uma semana. E como tudo era colorido, como a beleza estava em todos os detalhes. Como as músicas eram cheias de pompa, como as danças se tornavam envolventes e a bebida deixava a todos mais leves, alegres e animados. A comida, sempre em grande quantidade e alta qualidade, os mantinha com toda a energia para permanecerem se divertindo.

Tratava dos primeiros namoricos, contava das paixões adolescentes e do encontro com o futuro marido, seu pai. Jamais o amara, estava escrito, mais de uma vez, com todas as letras. Dele apenas gostava. Sua paixão era outra, mas este rapaz nunca tivera para com ela o menor olhar. Casara mais para sair da miséria do lar, do que para qualquer outra coisa. Seus pais, coitados, se endividaram a mais não poder para lhe oferecer, como de praxe, àquela época, um enxoval de princesa.

Aquele gostar, na medida em que a leitura prosseguia, ia se transmudando em indiferença, daí para raiva e ao final era ódio pleno, total e irrrefreável. A mesma ira que ela sentia vida afora a sua mãe alimentara contra o pai. E Solange, mais da metade da existência já vivida, ia tomando consciência do quão parecida com a mãe era.

Num dos cadernos ela falava do único tempo em que realmente se sentiu feliz. Não que a pobreza houvesse diminuido, ou que descobrira algum novo amor. A fidelidade do corpo ao pai tinha sido absoluta. Era aquele mesmo tempo no qual moraram nas vizinhanças dos cabarés. Arrepiou-se toda ao ler isto. Também a mãe apreciava as alegrias que vazavam daquelas casas e escorriam por onde moravam.

Mais que dizer das músicas, foi escrevendo as letras, uma a uma. Sem mudar, como Solange havia feito quando arrumara uma forma de as domesticar, nem uma palavra ou vírgula. Pegou-se cantando, sem pudor e muito menos medo de que fosse ouvida nas vizinhanças, uma das mais alegres e devassas entre todas. Antes de chegar ao último verso, bateu-lhe a dura censura interna e então bateu três vezes a mão no peito pedindo perdão a Deus por mais este pecado, chegado agora lá de dentro do seio materno recém sepultado.

E a mãe a se perguntar, pelos cadernos afora, o que realmente havia daqueles lados? Como se davam aquelas entregas, o que era que lá provocava tantos cantos de alegria, tantos brindes, aquele excesso de música parecendo nunca ter fim e que lhe velavam as noites na solidão do marido odiado, roncando ao lado no leito nupcial.

Confidenciava haver feito um buraco no muro por onde conseguia ver a janela de um dos quartos. Dava raiva perceber que ela era sempre fechada, quando algum casal dentro dele entrava. Mas os suspiros, gemidos e até mesmo os gritos de algumas mais ousadas, isto era totalmente audível, sempre.

Dizia, sem guardar o menor recato, de seus desejos secretos de passar uma noite oculta num daqueles aposentos, sem que fosse possível alguém vê-la, para viver, nem que fosse como mera espectadora, das alegrias e prazeres que naquela casa de pecados se podia experimentar.

Falava de Veneza, dos seus carnavais luxuosos e longos, festas que duravam desde depois do Natal até a véspera da quarta-feira de cinzas. Uma daquelas lindas máscaras, acaso as possuisse, bem que poderia auxiliá-la nessa aspiração de se fazer incógnita na casa das mulheres damas.

Os sentimentos intercambiavam-se a cada instante da leitura em seu coração. Solange ria desbragadamente umas horas. Em outras soluçava desesperada, mais parecendo criança pequena a quem lhe roubaram a mamadeira. Não conseguia parar de ler e algumas partes necessitavam ser, mais de uma vez, relidas para serem melhor compreendidas. Principalmente aquelas mais carregadas de emoção.

Conhecia então, em seus detalhes e nuances, a história de uma mulher sofrida. A vida da mãe estava ali relatada em toda a crueza e profundidade que uma existência é capaz de possuir. Gostos e desgostos, alegrias e tristezas, dias e noites, gozos e sofrimentos... Desses todos muito mais estavam estampados os segundos: os desgostos, tristezas, escuridões e sofrimentos.

Chegara enfim ao último caderno e este apresentava-se praticamente novo. Somente tinham sido usadas pouquíssimas páginas. Solange viu então que sua mãe parara de registrar a vida ao final do décimo caderno. O que tinha de ter contado relatara até ali.

Para completar tudo só faltava ela lhe fazer seu último pedido. E sem dúvidas que quem os deveria cumprir era aquela que, sentada naquela mesa de jantar, estava lendo aqueles relatos e cuja promessa feita era a de queimá-los, numa fogueira grande, assim que fosse possível. As derradeiras páginas eram uma carta.

“Minha querida Solange.

Chamo-a assim, eis que você para nós sempre foi, é e será Solange. Irmã Angélica que seja somente o seu nome lá no convento, ou no colégio que me contaram você, cheia de importância, dirige. Como somos tão iguais, tenho certeza de que não queimou meus escritos antes de os ler. Mas que quis, autorizada por mim e curiosa como só nós duas somos, conhecer.

Não sei se devo dizer azar o seu, ou que bom que chegou até aqui.  Não há mais retorno e lhe relatarei meu pedido. Farei isto com todo o empenho que é possível haver nesse meu coração doído. Agora você conhecerá o que gostaria que fizesse por mim. Acho que desejo isto desde o seu nascimento, mas lhe confesso que lamentei profundamente quando da sua ida para o Convento.

É que a partir daí, por uns três anos, imaginei ser impossível lhe fazer essa solicitação ousada de mãe quando estivesse quase morta. Pouco a pouco fui me dando conta da bobagem que era esse sentimento. Além de continuar minha filha, pude notar, você não mudara o suficiente se tornando diferente de mim. A freira que faz tanto bem às pessoas e a mãe que adora cantorias das prostitutas permaneciam por demais semelhantes.

Lembra-se, querida filha, quando lhes contava das festas intermináveis trazidas por sua tia, lá em castelos plenos de alegria, nos quais as pessoas se divertiam a noite toda, cantando, dançando, jogando, fumando, bebendo e namorando? Pois o desejo de ir a um lugar assim jamais consegui esquecer. Claro que sublimei este sonho e fiz isto porque me animava a certeza de que alguém (você) haveria de, algum dia, cumpri-lo para mim.

Hoje tenho muita clareza de qual é que seja este lugar. Há alguns mundo afora e em filmes de Hollywood pude visitar vários deles. Cada qual mais lindo que o outro. Trata-se você já deve ter percebido, de um cassino. Num deles, que já escolhi, quero que você se divirta durante uma noite por mim. Aproveite muito, sabedora de que se eu não fosse quem sou, uma velha falecida, estaria me esbaldando, a curtir, deslumbrada, aqueles salões.

Bem, você deve estar se perguntando com que dinheiro poderá cumprir tal estravagância, considerando que mesmo não sendo mais tão pobre, Irmã Angélica tem voto de pobreza. Ela o possui, mas para Solange deixei os meios suficientes, para que possa realizar este meu destino, voar até o cassino e retornar segura para casa.

Organizada como somos, parece que estou vendo que você tirou, um a um e dobrados, os panos do meu enxoval. Pois agora, antes de os guardar novamente, eis que os onze cadernos já se encontram em mão seguras para serem brevemente incendiados, fará o seguinte:

Abra cada lençol e no meio deles verá que guardei dólares. Há mais do que suficientes para a viagem, a estadia, a aquisição de um lindo vestido de baile e o que sobrar quero que experimente a sorte na roleta. Dizem que palpite de gente morta tem poderes especiais. Portanto jogue nos números 5, 11, 16 e 8. Esperta como é já notou serem os dias do seu e do meu aniversário. Tudo que ganhar use em suas obras de caridade.

Receba a minha bênção especial e jamais conte isto aos seus irmãos. Isto só nos arrumará confusão. Acho que devo ampliar este derradeiro conselho materno. Nunca diga nada sobre o assunto a ninguém. Aliás, conte somente ao seu confessor. O dinheiro que irá ganhar em Las Vegas? Bem, sempre poderá dizer que foi uma doação e que o benemérito teima em permanecer no anonimato.

Com carinho e desde já agradecida,  

Yone.”


O dia estava claro quando chegara a este ponto. Não havia a menor dúvida sobre nada. A mãe louca e que acabara de falecer a solicitar à filha, religiosa, que lhe fizesse uma vontade ainda mais maluca. Uma freira passando a noite na jogatina de um cassino. E se tal desatino ainda fosse pouco, além do mais lhe sugerindo que ganharia muito dinheiro nessa tal noite.

Claro que não dá para se fazer nada disto. Tratarei de queimar logo esses diários e levarei o dinheiro para as nossas obras tão precisadas. Direi, como mamãe mesmo sugeriu, que um doador, que insistiu demais comigo para permanecer incógnito, o doou.

Voando a mais de dez mil metros de altura Solange repara não ter feito nem uma coisa e nem outra. Vivera uma louca noite no Venetian Casino de Las Vegas e retorna agora para São Paulo. Traz três vezes mais dinheiro do que aquele original que encontrara, entre as finas cambraias. A parte da explicação sobre um hipotético doador anônimo estava mantida e sua sorte fora tanta que, não é que ele triplicara a generosidade? Pensa essas coisas tomando cuidado para não rir alto.

Adquirira, usando o nome de família, as passagens para a América. São Paulo - Dallas, Dallas - Las Vegas e vice-versa. O vestido comprara-o contando uma mentira, a ser também perdoada quando da confissão a ser em breve agendada. Depois de passar várias vezes, como quem não quer nada, pela rua Oscar Freire, com seu grande número de boutiques, se encantara por um vermelho.

À vendedora que, desconfiada, mostrava a peça para  a irmã de hábito marron, disse ser presente para uma sobrinha que logo adiante seria madrinha de casamento e perdera o emprego. Sentia-se assim angustiada por não ter como se apresentar bem vestida. Fez inchar a mentira dizendo ser a tal moça, de corpo por demais semelhante ao seu, o que portanto fazia com que pudesse experimentar, para ela, a vistosa e um tanto decotada, veste.

Numa outra loja comprou roupa mais esporte. Chegada ao Aeroporto de Dallas correu ao banheiro e a vestiu, deixando na mala as vestes religiosas. Irmã Angélica ali se transfigurava em Solange. A transformação contrária não aconteceu assim de forma tão brusca. Trocou de roupa novamente no banheiro do aeroporto, mas foi aos poucos e já ali dentro do avião, passadas mais de sete horas de voo, que Solange ia de novo se tornando Irmã Angélica. Na verdade seria incapaz de precisar tal momento.

Depois de dias tão intensos, enfim caíra no sono, nem tendo reparado quando serviram o café da manhã. Acorda com o leve toque da aeromoça em seu ombro, a pedir que endireitasse a cadeira e verificando se o cinto estava afivelado. E foi como se nas pontas daqueles dedos estivessem guardadas todas as raivas que não sentira desde a morte da mãe.

Irritada então, passa a imaginar sua chegada em casa. Tomaria o frescão até o Centro da cidade e de lá o metrô para o convento. Antes dessa segunda condução, deixaria com alguma mendiga a sacola de mão, contendo o vestido vermelho e a roupa esporte usada nos Estados Unidos. Nos bolsos da calça jeans deixara, como se as estivesse esquecido, duas notas de cem dólares.

Sorrira, com raiva, ao pensar na exigência da prudência, assim que largasse em mãos da pobre tal presente. Melhor que saísse rápido e desaparecesse na multidão sonolenta, a caminhar rápida para o trabalho. Já pensou se ela abre rápido a bolsa e sai correndo atrás dela com o vestido vermelho nas mãos, a chamá-la gritando, pensando ter havido algum engano?

Quando as rodas do avião batem enfim na pista e saem rolando, os prováveis problemas da escola nascidos nesses poucos dias de ausência e as necessárias ações a serem tomadas, tinham invadido totalmente a mente de Irmã Diretora. Como se nada houvesse acontecido nesses dias, pelo menos umas cinco coisas estavam já a lhe causar irritação. Lá no alto Solange permanecera voando. Mantinha-se perto de Deus, assim como Irmã Angélica pousara plenamente em sua terra.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 15/04/2013
Alterado em 22/03/2017


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