Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O segredo das Pedras   

Duas pedrinhas, dessas bem simples, tão encontradiças em leitos de rios existiam, desde há muitas eras, uma ao lado da outra. Tal proximidade fez com que se tornassem amigas e o tempo, todos sabem, tem o dom de tornar as amizades ainda mais ricas.

Mesmo tendo nascido em rochas bem distintas e distantes uma da outra, consideravam-se verdadeiras irmãs. Companheiras desde os tempos em que os humanos ainda nem eram gente, muito menos haviam sentido o desejo de descer do alto das árvores, onde viviam.

De vez em quando os rios se tornam nervosos e se enchem. É como se experimentassem uma revolução. Querem mudar tudo de lugar. Quando acontece isto as duas fazem de tudo para se manterem unidas, o que é algo complicadíssimo.

Faltam-lhes mãos, dedos e unhas para se segurarem uma à outra, mas ocorre que desenvolveram criativa técnica quando das tempestades. Isto propiciava que se mantivessem, mesmo em meio a tanto rebuliço, coladas uma a outra.

A vida seguia assim, tranquila no mais das vezes e em alguns outros períodos , mais raros, turbulenta. Num desses tempos revoltosos e conturbados, em meio a descomunal enchente, o fundo do rio foi por demais remexido pela fúria das águas.

Acabou que as duas personagens, mesmo sem terem se separado completamente, surpreenderam-se com a presença de estranhíssima pedra, horrenda mesmo, interpondo-se entre elas.

Não se ignore que no início de tudo, conviver intimamente com aquela pedrinha monstro, lhes tenha gerado raiva. O bom é que a necessidade costuma falar mais alto. É que as pedras sussurram tão delicadamente que nenhum de nós é capaz de ouvi-las.

Expressando-se assim, tão baixo, só conversam se a interlocutora estiver postada junto ao seu corpo. Desse jeito, como poderiam manter o diálogo em dia, sem a colaboração daquele seixo esquisito enfiado no meio delas?

O bom é que a feia não reclamava do trabalho de pombo correio. Só que o custo do serviço era caro. Ela era mestra em enriquecer os diálogos. Na medida em que as palavras passavam por dentro dos seus ouvidos, iam sendo mudadas, cortadas e até mesmo acrescentadas outras. Aquilo dela entrar no papo era demais. O cúmulo da ousadia.

Isto fez com que rolasse, mais do que a irritação já sabida, desconforto por conta da cara de pau da palpiteira. Tinham assuntos que, tudo bem, eram parte do conhecimento público, mas havia outros bastante íntimos.

Uma pedra educada agiria de modo diverso. Da mesma maneira que um fio telefônico, só passaria adiante o que recebia, sem tirar nem por e, isto é importante, fazendo questão de esquecer o conteúdo do que se falava, logo em seguida.

Rápido superaram as arestas. Facilitou tudo o fato do rio ser lugar calmo. Agradável de se bem conviver. A dinâmica das águas e aquele quase silêncio nas profundezas, vão tornando os habitantes mais pacientes. Ajuda na aceitação das diferenças e indevidas intromissões, como nesse caso.

Alguém por lá já disse que isto se dá, por conta do poder purificador das águas, capaz de limpar tudo, enquanto passa célere rumo ao mar. Esquecer, ou desconsiderar esses detalhes causadores de chateação, não deixam de ser jeitos de se lavar o coração.

Acresce a isto o fato de que a nova amiga xereta se sentia carente. Necessitava de consolo e apoio, pois se considerava verdadeira ET no meio daquelas pedrinhas todas. Nenhuma se parecia, ao menos um pouco, com ela.

Não que houvesse grandes semelhanças entre as demais. Acaso fossem bichos diria-se que eram de distintas raças. Existiam em diferentes formatos, cores, durezas e texturas.

Havia as arredondadas e as parecidas com um cone. Umas outras bem que tinham a aparência de um submarino. Ocorriam também aquelas que mais tinham jeito de pastilhas gostosas, dessas que se deixam derreter na boca.

A fofoqueira era deveras exótica. Dura demais, chegava a ferir as outras que, depois de passadas as enchentes, descobriam-se encostadas nela. Enquanto de um lado apresentava-se bem rombuda, do outro era dona de ponta finíssima. Com certeza perigosa, uma verdadeira arma.

Não havia entre elas e, mais ainda, nem se lembravam de um dia terem visto, alguma colega daquele jeito. Seixos com tal desenho eram totalmente desconhecidos naqueles fundos de rio.

Acaso se recordassem do início de suas infâncias saberiam que também nasceram assim. Na verdade, quando ainda bem crianças, vários deles tinham sido parecidos com a nova companheira.

Em que época havia se dado isto? Há milhões de anos. Mas quanto a essas contagens de tempo, tão amplas, não devem causar surpresas. É que vida de pedra se conta de forma distinta da de pessoa. O que seria para o ser humano um mero dia, para elas seria o equivalente a algumas dezenas de anos. Mineral é assim mesmo. Vive bem devagar.

O encontro entre as duas, tendo a nova companheira enfiada ao meio, tinha acontecido durante uma baita tempestade. Ainda no escuro das águas barreadas, só sentiam as dores das espetadas nos corpos. Quando tudo se acalmou e o rio se fez transparente, souberam o que as machucava, bem como também que um calhau preto, dos mais gigantes, se tornara suas camas.

Vivera, desde que se entendia por enorme seixo, ali oculto no meio da terra. Enquanto dormia, quase eternamente, a água nas ânsias de formar seu caminho ia erodindo, lentamente, aquele chão.

Provocava a transformação constante de terra em lama e desta em areia. Num trabalho incessante chegara enfim ao seu esconderijo. Mesmo sendo constituído de material dos mais resistentes, tinha perdido, nos últimos milhões de anos, em que mudara de terrestre para aquático, alguns centímetros no lombo. Fruto do esfregar ininterrupto das águas por sobre seu corpo.

Dizem os peixes que ficar parado, além de criar limo, gera burrice. Ao contrário, mover-se daqui para lá e de acolá para cá, cria sabedoria. Neste caso aquele imenso bloco, configurava-se exceção à regra comum.

Nunca viajara, mas a observação de tudo o que acontecia no seguimento da correnteza, bem como também do que se falava em cima dele, o tinham ensinado bastante.

Algo que tomou ciência foi que os seixos, quanto mais permanecem submersos, mais se alisam. Escutando as lamúrias da pedra do meio e a incapacidade das vizinhas em lhe dar alento decidiu, o que acontecia poucas vezes em mil anos, dar um pitaco naquela conversa.

Condoída do sofrimento dela, por se descobrir tão diferente das demais, disse-lhe que não se preocupasse. Era só se largar na corrente, deixando que o andar da natureza cumprisse o seu trabalho. Em breve, o que queria dizer milhares e milhares de anos lá nos marcadores dos relógios delas, iria ficar tão bonita quanto as demais colegas.

Ouvindo tal coisa ela se animou toda. Pôs-se mais atenta e a cada vez que sentia o aumento da velocidade da água, prenúncio de cheia, se colocava oferecida, toda disponível, para ser rolada.

Não tinham se passado nem quatro séculos e tal disposição fez com que tivesse se movimentado bastante. Tais andanças causaram a perda total de vista das confidentes. Nem notícias das duas lhe chegavam.

Um tanto de milênios após e vivia escondida, sob uma pilha de seixos, em meio a agitada corredeira. Mergulhada debaixo de infinitas pedrinhas, ao contrário das vizinhas que se sentiam incomodadas com suas estocadas, ela se sentia satisfeita.

O que menos desejava era que fosse reconhecida por alguém, muito menos pelas antigas amiguinhas, tão conhecedoras do seu drama. É que aquilo que o seixo gigantesco tinha afirmado, a respeito da sua futura transformação, não se dera nem um pouco. Ao contrário, havia se tornado mais pontuda. O que aquela pedra possuía de tamanho, possuía também de mentirosa, refletia com raiva.

A existência ia ocorrendo desse jeito sem graça, oculta e triste, quando de repente o rio ficou em polvorosa. Uma imensa chuva o enchera muito mais do que costumava acontecer nas cheias normais de todo ano.

A cabeça dágua descia roncando feito louca, não respeitava nada, nem tamanho e muito menos peso das pedras. Levava-as, furiosas, como se quisesse afogá-las no mar. Arrasava as margens, carregava animais e casas. Nada que estivesse perto dos seus caminhos, conseguia permanecer imune ao seu tremendo poder. Tudo em volta cobrira-se de paus, detritos, lama e água.

Como tudo na vida tem começo meio e fim, ela foi arrefecendo seu ímpeto. Algum tempo depois e já havia cessado a sua passagem. Foi então que, naquele silêncio que sempre vem depois dos eventos mais grandiosos, reconheceu vozes. O que experimentou podia ser bem definido como um misto de alegria e tristeza.

Regozijou-se por ter ouvido as velhas amigas. Ao mesmo tempo ficou chateada por não querer, de jeito algum, que a vissem assim, sem ter se transfigurado nem um pouco.

A melancolia bateu demais. Soluçava com tanta força que as pedras em volta se condoeram. Volveram os olhares para ver quem chorava assim tão intensamente. Só que ao invés de se entristecerem com tamanho desespero, elas se encantaram com a visão que tinham.

As águas que a foram lavando e o cascalho sobre o qual se punha, lhe serviram de bucha. Retiraram dela os restos de areia e terra que cobriam sua superfície. Agora ela se mostrava tal qual era originalmente.

Linda! Os raios de sol que conseguiam passar por aquelas rápidas águas borbulhantes, sentiam-se privilegiados. A forma de agradecimento que adotavam, diante de tamanha formosura, era torná-la ainda mais maravilhosa. Aquela não era, definitivamente, uma pedra comum.

Ali junto daquela multidão quase infinita de singelos seixos lisos, de formas abauladas e arredondadas, existia um preciosíssimo diamante. A notícia, numa velocidade bem maior do que a usual das pedras, espalhou-se pelas vizinhanças.

Na camaradagem natural delas, iam dando jeitinhos para que as outras, não tão próximas, pudessem também compartilhar de tão graciosa visão. Estabeleceram critérios. Cada seixo poderia ficar perto dela uma ninharia de uns dez anos no saborear de tamanha beleza.

Só que a nossa linda pedra não se via nem um pouco assim. Considerava-se estranha, chocha, sem graça. Tão feia e desinteressante que só podiam estar zoando, nessa história de passar um tempinho a observá-la.

Deviam estar rindo das suas pontas, de sua feiura e transparência a deixarem expostas as entranhas. Quando chegou o tempo das suas amigas se posicionarem, a fim de curtir a pedra mais linda de todas, sentia-se ainda mais envergonhada. O alívio foi grande ao reparar que não a haviam reconhecido.

Mas elas, boquiabertas diante de tanta beleza, não entendiam por que jóia assim, tão preciosa, lutava bravamente para se esconder. As duas eram, já o sabemos, bem faladoras e, dessa forma, todo dia puxavam assunto com ela.

De maneira nenhuma respondia àqueles assuntamentos. Achava, e isto lhe trazia ainda maiores sofrimentos, que, por serem boas, a tratavam daquele jeito, com mil elogios à sua beleza e brilho, devido à simples compaixão.

Não estava aguentando mais que se mantivessem ali vizinhas. Por mais que tentasse se segurar, chegou uma hora em que não houve jeito de se conter. Explodiu, sussurrando em grande grito, ao mesmo tempo para a da esquerda e a da direita, que a deixassem só.

Ao ouvirem sua voz estremeceram. Que susto imenso era aquele! A pedra tão maravilhosa e que a todos tanto encantava, era a amiga que séculos atrás haviam conhecido e até tinham se tornado amigas, rio acima.

A alegria das duas foi crescendo na mesma proporção em que também aumentava, a vergonha e a tristeza do pedregulho pontudo e feio (era assim que se nomeava), por ter sido enfim reconhecido. Aquela noite as águas do rio aumentaram um pouquinho de tamanho por conta das suas lágrimas.

Mas pedra é ser paciente demais. Solicitaram às líderes da fila para se admirar a jóia, mais dez anos de permanência ao lado dela. Tal tempo extra lhes foi concedido. Afinal, todas haviam provado do sabor salgado do choro noturno derramado nas águas.

Pouco a pouco foram dando provas da sinceridade na qual estavam imbuídas. Era verdade que se encantavam com tamanha beleza e formosura. A vida no rio lhes dera, não aquela sabedoria estável da pedrona que, como todo mineral, também se engana, mas as tinha preenchido com bastante conhecimento.

Sabiam do quanto pedras assim eram valorizadas. Os seres que viviam próximos aos cursos dágua as buscavam dia e noite. Gastavam a vida a procurá-las. Faziam isto com o uso de uma espécie de prato. As duas mesmas, por mais de uma vez, haviam sido apanhadas neles, mas como não tinham valia para aquelas figuras estranhas, largaram-nas de novo, juntas, no leito.

Contaram para as mais novas desses desejos por pedrinhas que brilham assim, por parte daqueles que andam de pé, são impacientes e falam alto. Preocupadas com o que lhe poderia acontecer, tomaram a resolução de proteger o brilhante.

A notícia daquele cuidado dos seixos foi se espalhando e, pouco a pouco, sendo assumido nos pequeninos riachos, córregos e rios. Por causa disto eles se tornaram tão raros.

Não que sejam poucos. A razão é que as outras pedras, aquelas lisas e arredondadas que vivem, aos milhões, nos fundos dos rios, estão sempre prontas a protegê-los, escondendo-os, o máximo que podem, das bateias dos garimpeiros.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 22/07/2013
Alterado em 22/03/2017


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