Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


 
ANDARILHO

Os pés ardiam. Sensação de pisar em brasas. As pernas, teimosas, desobedeciam aos comandos do cérebro negando-se a responder, se levantando, diante dos pequenos obstáculos das calçadas. O andar agora mais se assemelhava ao de um idoso se arrastando pelas ruas.

Mas Alfredo negava-se a parar. Não havia rumo definido, lugar a ser visitado, alguém a ser encontrado. Importava andar pela cidade grande, qual cachorro que vai identificando imperceptíveis odores e os persegue em imponderáveis e ziguezagueantes rotas. Perambula pelos bairros da cidade grande, onde morava há exatos dezoito anos sem conhecer dela praticamente nada.  

Na mão o saco de plástico cinza com os pertences. A calça jeans e a camisa amarela usada naquele dia estavam no seu corpo. Roupas que tinham sido bem lavadas, mas que o longo tempo de guardado fez com que adquirissem desagradável cheiro de mofo. Ainda lhe serviam, mesmo que um tanto apertadas nos ombros, barriga e coxas. Engordara pelo menos uns cinco quilos, constatou.

Devolveram-lhe e carregava na sacola a jaqueta azul marinho e o boné do time querido. O relógio com a bateria descarregada, a carteira de dinheiro com a foto das filhas e da mulher, o documento de identidade, o cartão de crédito há tanto tempo vencido, CPF e a carteira de motorista também desatualizada. Até os R$34,80 que estavam na carteira e dos quais nem se recordava, lhe foram devolvidos. 

Começava a escurecer. Caminhara por mais de oito horas. Sem conhecer ninguém, como parar para descansar, a quem pedir guarida? Os trinta e quatro e oitenta tinham se transformado em menos de quinze, com a comida no botequim de beira da favela e a cerveja degustada até a última gota.

Se aguentasse continuaria caminhando, curtindo a chegada da noite, o varar da madrugada, até poder celebrar, livre, a vinda triunfal do sol, mas o cansaço era imenso. Por mais exercícios que pudesse ter feito e foram muitos, o corpo desacostumara do andar e, mais que reclamar, exigia descanso.

Não havia regras definidas naquele peregrinar. Aliás, estipulara uma norma sim. Sempre que se visse diante de dois caminhos, seria escolhido aquele que lhe passasse a impressão de ser mais longo, de levá-lo ao mais distante.

Transpôs, mais de uma vez, as fronteiras da cidade. Circulou pelas periferias. Conheceu até aquele estágio no qual a metrópole vive a suave transição de, sem deixar de ser urbana, ir se tornando rural com galinhas, porcos e bois, vez ou outra, a circular pelas ruas. Saiu e entrou na região de bairros pobres, conheceu os de gente da classe média, visitou um tanto de favelas e agora adentrava novamente uma área mais exclusiva de ricos.

Uma impressão estranha lhe invadiu o corpo, como se já houvesse transitado por aquelas belas alamedas. “Estive em tantos lugares que nem me dei conta de que tinha passado por aqui”. Foi o que, entre dentes, ruminou sem maiores reflexões.

Na praça, lá adiante, a cruz o fazia reconhecer uma pequena igreja. As portas abertas eram convite a que desse uma parada. A que descansasse um pouco pelo menos. Apertou, na medida em que os joelhos aguentavam, os passos e se viu protegido pela aconchegante nave abaulada do templo. Desde menino nunca mais entrara numa igreja. Sentou-se no último banco. Uns poucos fieis, a maioria mulheres, rezavam o terço lá adiante.

Aquelas palavras repetitivas, algumas vezes mais lentas, em outros momentos expressas com rapidez, somadas ao cansaço tremendo, apressaram o sono. O rosto protegido pelos braços apoiava-se no encosto do banco em frente. Como se cristão contrito estivesse orando, adormeceu pesado.

No sonho que teve as mãos da mãe que nem conhecera bem, tendo morrido atropelada ainda antes que entrasse na escola, o levavam a um lugar estranho, mas sem dúvidas lindo e agradável. Um rio corria e suas águas eram douradas. A grama rubra brilhava sob um sol azul e o céu, este era branco como as paredes do muro diante da sua janelinha naqueles anos todos.

Estava com seu irmão, que nunca existira, filho único que era, e brincavam alegres com uns coelhos zebrados e de asas que até aceitavam a proximidade e o toque, mas que voavam nas tentativas de agarrá-los, quando se tentava pô-los no colo.

O rosto escondido impediu a mulher que o acordava de ver que sorria. “Senhor, senhor”, ela o chamava cutucando levemente seu ombro. “Desculpas, mas estou fechando a Igreja e você não vai querer continuar dormindo nesse banco duro, não é mesmo? Levante-se que já é hora de ir para casa, moço.”

E ele, sorrindo não somente pelo sonho, mas mais ainda por achar que aquela dona era semelhante ao aspecto que imaginava possuir sua mãe, acaso estivesse viva, replicou: “Mas dona, eu não tenho para onde ir e como sou filho de Deus, queria dormir aqui na casa dele e que também deve ser minha, não é?”

A senhora não tinha argumentos para retrucar aquelas palavras e foi assim balançando a cabeça, que empurrou a porta pela qual ele tinha entrado e, segurando nas mãos as chaves do templo, decidiu se assentar ao lado daquele desconhecido.

“Você quer que reze com você?” Perguntou-lhe mudando a forma do tratamento. “Não, dona, não sei orar, mas até acho que a minha presença aqui não deixa de ser um tipo de reza. Sofri demais nesses dezoito anos nos quais moro na cidade. Daí que sinto que Deus já me perdoou os tantos pecados que, também aqui, cometi”.

“Mas como reside na cidade há tanto tempo e me diz que não tem para onde ir? Em que bairro fica a sua casa? Moro aqui pertinho e se for comigo até lá posso pegar o carro e levá-lo, caso queira”. Foi o que disse, cheia de uma estranha confiança que, até ali, lhe era totalmente desconhecida.

“É que nesses anos todos jamais conversei com uma mulher e agora lhe pergunto se a senhora não tem medo de mim? Eu, um completo estranho e só nós dois, homem e mulher, aqui nessa Igreja, à meia luz?”

“Reconheci nos seus olhos que estou diante de uma pessoa boa, moço. Não sinto medo algum e lhe digo até que estarmos aqui, nós dois juntos, é algo que, inexplicavelmente, me traz grande paz.”

“Pois se a senhora soubesse da minha história, dona, tenho certeza de que não estaria batendo papo comigo. Até já teria chamado padre, sacristão, seguranças e mesmo a polícia para me levar.”

A mulher, balançando negativamente a cabeça, retruca: “Mesmo sem poder dormir na Igreja, fique à vontade,  jamais convocaria aquelas pessoas, muito menos a polícia, afinal você não é para mim nenhuma ameaça. E como já sei que não deseja rezar, não insistirei. Mas, se quiser me contar sua história, cá estou eu, toda ouvidos, para lhe escutar.”

“Além de ser muito triste, ela é por demais longa, dona. Coisa mais de se confessar a um padre, do que a uma mulher”. “Pois se quiser falar, digo mais uma vez, sinta-se livre para me contar o que quiser, não gosto de novelas na TV, o que significa que temos tempo.” e a senhora continuava, “essa sua presença aqui, alguém que chega misterioso e que fica dormindo no banco, após todo mundo ter ido embora, me deixa bem curiosa. Então, meu filho, sou eu agora quem lhe pede para que me conte a sua vida”.

E de supetão o baú de memórias foi escancarado ali, aberto sem haver censura e respeito humano. Com todas as letras e detalhes. O andarilho botando os pingos nos is diante daquela senhora e de Deus, posto adiante cruz e presente, conforme ela acreditava, no sacrário atrás da luzinha bruxuleante no canto direito.

Contou-lhe dos dois companheiros que eram daquela cidade e que o convidaram a vir até ela com a meta de assaltar um banco. A princípio riu da ideia maluca dos dois, posta numa mesa de bar, mas a tentação é tinhosa, vai cutucando, se inserindo no corpo e uma hora a gente, mesmo sendo pessoa de bem, cede. E lá estava ele metido em planos de viajar até o lugar distante, no qual jamais havia estado, para cometer tão condenável delito.

As dívidas, que eram tantas, foram justificativas que apresentou à consciência para aceitar parceria numa loucura daquelas. Raciocinou que só seria aquele crime. Com o dinheiro arrecadado os débitos estariam pagos, que teria então um dinheiro separado para a educação das filhas e a compra de uma casinha simples para sair, definitivamente, daquele ambiente da favela, lugar terrível para se criar as três meninas, A mais velha já quase chegando à adolescência.

Disse dos planejamentos que eram de sequestrar o gerente da agência em casa, ainda de madrugada, para que pudesse abrir o banco e o cofre. Confiou-lhe que havia a certeza de que ninguém ficaria ferido na ação. Tanto que estavam usando armas de plástico, daquelas de espoleta vendidas para as crianças uns anos atrás.

Tudo corria às mil maravilhas. O gerente com eles e o segurança que lá dentro da agência dormia a sono solto e que só os viu chegar, quando já estavam lhe tomando a arma, esta real, e o levavam para trancafiá-lo no banheiro.

Alfredo, um pouco pela vergonha de estar relatando ter sido assaltante e assassino, outro tanto para ganhar coragem, mirava uma santa de olhos brilhantes. A imagem , ele sentia, o olhava cheia de compaixão.  

De repente estava claro porque se sentia atraída por aquele homem. Agora sabia o porquê de Deus o haver mandado naquele banco da igreja, exato no dia em que o sacristão tivera que levar a mulher ao médico e lhe solicitara que fechasse o templo após o terço das mulheres.

“Dona, me escuta, ou dorme? Está cansada da minha história, ou continuo? Faz-me bem conversar com a senhora, sabe? Com isto que fiz perdi filhas, mulher me abandonou, deixei de ter razão para viver. Hoje só me cabe caminhar sem rumo pelo mundo, o que iniciei a fazer hoje.”

Os ombros de Alfredo, encurvados para frente, eram um convite a serem acolhidos e ela estendeu o braço direito sobre eles. Balbuciante, tentando esconder o soluço lhe respondeu: “Sim, meu filho, estou escutando tudo”.

E então lhe relatou que o demônio, que desde o início se fizera presente de forma escondida, agora dera as caras e a partir dali, tinha assumido efetivamente o comando. Tudo começou a dar errado. O alarme, de alguma maneira acionado pelo gerente, tocara na delegacia e em minutos, quando ainda estava no cofre com o bancário, a polícia chegou. Entrou atirando mandando para o inferno os dois companheiros. Desesperado para fugir correu para pegar o revolver do segurança deixado sobre uma mesa.

O gerente tivera a mesma ideia e lançaram-se juntos à arma. “Tive o azar de chegar um segundo antes, dona”. Atracaram-se e então, arma em punho, deu-lhe um tiro na barriga, de baixo para cima. Quando a polícia chegou estava chorando abraçado ao moço agonizante. “A senhora acredita, dona, matei o rapaz. Fiz o que nunca quis fazer e por isto fiquei preso pagando o meu crime por esses longos anos.” “Sim, meu filho, creio demais em tudo que me relata. 

Dia clareando e Porfírio, o sacristão, vem abrir a igreja para a missa das seis. Estranha que dona Estela tenha deixado a porta principal só encostada e esquecido as luzes laterais acesas.

Ao entrar se surpreende ao ver dormindo, semblantes de paz, abraçados no último banco, a mãe do filho assassinado no assalto ao banco e o filho da mãe atropelada quando ainda era só uma criança, segurando o saco plástico com os seus pertences.

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 24/03/2014
Alterado em 02/08/2016


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