Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O Jacaré e o Pato

Após despedir-se do ninho, a fêmea do jacaré desliza, silenciosa, nas águas do lago. Oculto em meio ao junco, sob camadas de lama e mato, estão seus ovos.

Pouco adiante a pata demonstra aflição. Contrações anunciam para breve o ovo e ela, marinheira de primeira viagem, não havia encontrado lugar seguro para construir o ninho. Corre desajeitada até pisar em lugar macio.

Nem titubeia na escolha. “Nem precisarei fazer ninho nem nada. Não é que a natureza já o preparou para mim?” Pensa lá com suas penas, enquanto com o bico cria, empurrando cuidadosamente mato e folhas, as bordas da cama.

O que deveria saber era que naquele exato lugar, há menos de meia hora, mamãe jacaré guardara seus ovinhos. Chocar patinhos não é tarefa simples. Todos os dias, bem cedo e no início da noite, é necessário revolver com o bico os ovos. Numa madrugada repara que um deles se enfiara em meio às folhas e lama ressequida.

Usando as patas e o bico cava em volta e o liberta. Acha-o no lusco fusco da manhã diferente. Não se lembrava de ter botado ovo menor e de casca mole, mas tudo bem ponderou. “Ele se tornou desse jeito porque ficou preso à terra e gravetos podres”.

Imaginou tê-lo perdido. Quaquaquacou o achado ao marido, dizendo ter ponderado lançar fora aquele estranho no ninho, mas que a consciência tinha lhe soprado um não. Mesmo achando que tivesse gorado, resolveu chocá-lo junto aos demais.

Terminou de bico, eis que seu pato a repreendeu em altos quaquaquares afirmando que tal fato havia acontecido por conta de seus descuidos. Não que fosse negligente, mas por ser jovem, até deu um pouco de crédito ao seu amor. A partir daquele dia cuidou ainda mais do ninho.

Quem sabe por ter podido se aproveitar do calor daquelas penas aconchegantes, o primeiro ovo a eclodir foi exato o esquisito. Por sermos conhecedores dos antecedentes da história, sabemos não se tratar de nascimento de pato. Nossa amiga, ao contrário, julgou ter gerado um filhinho pato mesmo. Só que pra lá de exótico.

A começar pela cor. Enquanto os demais nasciam com penugem amarela, aquele era cinza e com o corpo desprovido de qualquer coisa diferente de pele enrugada. Os bicos bem formados e pequeninos dos irmãos nem um pouco se pareciam com aquele fino e pontudo.

E a voz? Enquanto a ninhada se entendia a partir de um quaquaquar comum a todos, nenhum dos sons vindos daquela goela podia ser pela mãe e demais compreendidos.

A amorosa mamãe cuidava daquele pato esquisito, sem nem ter otoco das asas. Seus gostos estapafúrdios quase a matavam de susto. Ao invés de nadar na superfície como os demais, o pirralho cismava em mergulhar permanecendo só com os dois grandes olhos fora d’água.

Foi uma pata idosa, bastante sábia e que no mundo havia presenciado de praticamente tudo, quem detectou não se tratar nem de ave, muito menos de pato, aquele bicho estranho.

“Minha querida, você cria um filhote de jacaré”. Nem o pai e muito menos a mãe, que jamais haviam avistado tal bicho, apesar da fama de sabedoria da velhinha, acreditaram naquilo. Ao contrário, até refletiam que aquele filhinho tão exótico, era possuidor de missão grande a cumprir no mundo.

Patoré este era seu nome, mesmo tendo as dificuldades de comunicação e de movimentos, fazia de tudo para se integrar à família. Da mãe verdadeira e dos irmãos, que pela ausência de calor devem ter nascido após o dia, no qual a pata com a filharada abandonara o ninho, nenhuma notícia teve.

Como em qualquer família há sempre aqueles com os quais o entendimento e a amizade crescem mais. Patolino, que nascera um tempo após Patoré, era o companheiro de todas as jornadas e confusões nas águas e margens daquele lago.

A questão é que com o passar dos meses a complicação de manter a amizade foi aumentando. É que Patolino adorava movimentar-se, correr de um lado a outro das beiras, esconder-se no juncal e realizar pequenos mergulhos. Com Patoré era diferente. O que curtia mesmo era permanecer camuflado sob a água. Só os olhos esbugalhados e, vez por outra, a ponta do narigão, é que permaneciam à vista.

Mesmo desse jeito, podemos considerar que tudo ainda corria razoavelmente bem por lá. Isto até o dia do grande susto. Aconteceu numa tarde em que Patoré se sentia entristecido. Seus irmãos aprendiam a voar e ele, depois de umas estapafúrdias e até cômicas tentativas, se deu conta da impossibilidade daquilo. Retirou-se para um canto da lagoa e se meteu na água daquele jeito escondido que tanto apreciava.

Cansadas daquelas aulas de voo, Patamaga e Patamiga, duas das irmãs de Patoré e Patolino, resolveram nadar numa área do lado de lá dos seixos onde haviam nascido. Local mais profundo e que mamãe e papai pato não deixavam suas crianças frequentarem. Mesmo assim, lá foram as duas para explorar o novo território.

Surpresas avistaram alguns patinhos semelhantes a Patoré. Tal qual o irmão estranho, escondiam-se na água com aqueles olhos para fora a observá-las. Sorrindo com a descoberta, foram quaquaquando até eles a lhes dizer, entre sorrisos, da parecença que tinham com o mano.

Mas foi só chegarem mais perto para que aqueles patinhos esquisitos as atacassem. Não fossem as aulas odiadas aulas de voar teriam se machucado bastante, ou mesmo morrido nos dentes afiados daquela turminha.

Esbaforidas, elas retornaram, meio voando, meio no nado para perto da família num quaquaquar esganiçado e ao mesmo tempo dificultando o entendimento de todos, a agressão da qual tinham sido vítimas naquele lugar proibido.

A mãe, misturando raiva pela desobediência e alívio por não terem se ferido, recordou-se das palavras da pata sábia a lhes afirmar que estavam criando, como patinho, um filhote de jacaré. Para deixar tudo bem claro, voou na direção daquela área na qual as filhas foram atacadas. Confirmou ao ver uma multidão de jacarés, que Patoré, em definitivo, não era pato.

Abatida voltou para casa. Amavam aquele filho diferente. Gostava demais dele e até já havia se acostumado com seu jeito esquisito de ser. Resolveu duas coisas. A primeira foi manter Patoré como filhote não conversando nada sobre a descoberta com ele. A segunda foi reafirmar para todos a proibição dos passeios ao território dos jacarés.

Patoré crescia e três grandes conflitos lhe causavam sofrimento. Morria de sono durante o dia. Era só o pessoal ir dormir que lhe chegava a vontade de permanecer acordado e, pior ainda, dentro da água fria. Também aquela dieta horrível composta de sementes e pequenos frutos, não fazia nada bem ao seu estomago. Por último o drama inconfessável. É que lá no mais íntimo do coração nosso amigo sentia desejos canibais. Afastava tais vontades com raiva e nojo, mas vira e mexe elas teimavam em retornar.

Foi então que numa noite de lua cheia resolveu, seguindo pelo fundo do lago, visitar aquele lugar interditado onde diziam viver os tais jacarés. Ao chegar pôde ver aquele tanto de olhos, semelhantes aos seus, brilhando na água. Aproximando-se mais viu que conversavam e não era quaquaqualês. Era algo perfeitamente compreensível aos seus ouvidos.

Em pouco tempo reconheceu pais e irmãos. Estava em casa e aqueles conflitos não possuíam mais razão de ser. Só que nascera um novo. Este dizia respeito à maneira como iria contar que iria embora, eis que achara sua verdadeira família?

O dia estava quase nascendo quando voltou para casa. Esperou que acordassem e pediu que ninguém saísse. Tinha algo bem sério e difícil a lhes dizer. Contou-lhes da noite passada e da descoberta da parentada. Falou-lhes do quanto os amava, mas que precisava ir embora por conta de algo bastante complexo e que não saberia explicar.

Foi então que o pai abriu o bico. Disse que compreendia o que se passava, eis que procurara a velha pata mestra e ela lhe tinha dado uma aula a respeito das diferenças entre as espécies e uma tal de cadeia alimentar. Por conta do que aprendera, era realmente saudável e até mais seguro, que Patoré se afastasse.

Foi uma manhã cheia de choro e abraços de despedidas. Patomaitre fez um delicioso, para os patos, bolo de sementes que Patoré comeu fazendo focinho, que aquilo que tinha não era bico, de estar apreciando.

Patolino não iria deixar Patoré partir sozinho. Levou aquele que além de irmão era seu melhor amigo, até a fronteira entre os territórios dos patos e dos jacarés. No caminho pela última vez conversaram. No abraço da partida, os dois choravam e o jacaré lhe disse: “Meu irmão, o bom senso ordena que guardemos boa distância um do outro. Afinal, amigos, amigos, instintos a parte”.

E nas noites bonitas de luar Patolino escapa sorrateiro de casa para voar, baixinho, sobre a cidade dos jacarés. Nesses momentos mira aquela imensidão de olhos brilhando sobre a água, na expectativa da piscada identificadora do irmão e querido amigo.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 19/05/2014


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