Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


 
LESMA LENTA

Seriam alguns espetinhos batendo compassadamente no chão? Tem horas que tocam mais rápido, algumas vezes o barulhinho se torna lento. Não tanto como eu, que sou câmera parada, mas numa tranquila e agradável câmera lenta. De vez em quando o som muda.

Os palitos param e a impressão é a de alguma coisa arrancando pedacinhos de finas folhas de papel. Um delicado moedor de algo que não fazia parte da memória. Barulho novo, jamais escutado e catalogado. Quando surgiu era impossível saber o que poderia significar.

Alguém mais o percebia? Não saberei responder a esta pergunta, mas tudo leva a crer que não. Seria necessário possuir ouvido por demais aguçado para captar tais ruídos. A vida de paralisado cerebral levada na cama
cego, movimentando-me por espasmos e com controle apenas sobre os dedos indicador e mindinho da mão esquerda, me comunicando por parcos grunhidos fez com que ouvidos e olfato se tornassem sentinelas poderosas.

Orelhas que são potentes radares. Tremendos, capazes de escutar ínfimas vibrações sonoras, imperceptíveis à audição normal. As narinas sagazes percebem qualquer cheiro novo e reconhecem os antigos. Não esse tão óbvio e que empesteia o ambiente. Recordo-me dos perfumes de mamãe e de suas amigas. Do cheiro gostoso, que vêm de fora, da terra após a primeira chuva. Do aroma da sopa de legumes com carne vinda do fogão e me fazendo babar a insistente saliva.

Depois a velha gorda foi se fechando. Tornou-se ainda mais amarga na medida em que as agressões se intensificavam e ficaram, como se isso fosse plausível, ainda mais perversas e sutis. Porradas dadas por luvas, delicadas como a expressão “meu filho” dita entre dentes cerrados. Namorados e amigas foram sumindo. De vez em quando também ela desaparecia. Deixava a mangueirinha ligada a uma vasilha de água ao alcance dos meus dedos inteligentes e batia asas.

Na volta o abraço regulamentar e os cheiros diferentes. Imagino que fossem de cigarros, bebidas, odores de outras peles, perfumes misturados, suores. Comida? A barriga que aprendesse a se controlar melhor. Como sempre me alimentei pouco, passei a considerar os roncos do estômago como mais uma maneira de me comunicar, assertivamente, com o mundo. Será que ela entendia o chamado da fome física? A fome de afeto do filho, óbvio, estava bem distante de sua compreensão.


“Lesma Lenta” trata-se do meu nome. Assim mamãe me chamava quando criança. Acho que no início pensava ser “Lesma Lenta” elogio.
Algo que soasse como “filhinho querido”, “meu amorzinho” ou qualquer expressão do gênero. Depois, mais crescido e entendedor das coisas, passei a criticar a palavra lenta. Estaria aí o negativo e lesma seria bonita, tal qual dizem ser borboletas e beija-flores?

Foi assim até que saquei estar diante de uma idiota redundância. Lesma jamais será ágil. Todas são bem lentas. Meu nome, descobri então, é um triste pleonasmo. Enfim, custei a entender que as duas palavras eram depreciativas e que, somadas, tornavam-se mais duras ainda de serem pronunciadas e ouvidas.

Mamãe me despreza. Tem muita raiva de mim. Não me perdoa por ter brotado no mundo, do seu ventre, desse jeito complicado, um ser esdrúxulo mesmo. Então, me agredindo, só faz crescer a própria culpa de não ter dado ouvidos aos gritos do corpo, quando me desesperava por nascer. Segurou-me, pavor da dor do parto, até que me faltou a irrigação na cabeça. Comecei a morrer ali pelo cérebro com suas áreas defuntas. Meus cemitérios interiores, gosto de pensar. Era culpada
 e por isto me lançava a culpa.

Dos tempos de que me recordo, quantas vezes a “Lesma Lenta” ficou suja, molhada, fedorenta na cama? Frio e calor não sou muito de sentir, eis que a sensibilidade do corpo é diminuta. Mas sede e fome lembro-me bem. Se era assim, quando já tinham se passado alguns anos e o ódio do coração havia 
se dissipado na constante raiva, faço ideia do quanto estive exposto às mazelas da velha, quando bebê.

Doeu-me demais aquele dia em que sussurrava, ao namorado novo, entre gemidos e arrulhos de amor, captados por minhas antenas possantes, pensando não serem por mim percebidos, que “o pior cego não é aquele que não quer ver”, mas aquele que se mantém preso à cama dando trabalho para ela, que tanto queria viver, curtir o prazer da existência e tinha que permanecer, diuturnamente, ao pé do leito do seu aleijão.

Minha maior dúvida, ao contrário de muita gente, conforme escuto no rádio, na TV, que mesmo agora permanece ligada, e nos papos das pessoas, naqueles tempos em que vinham visitá-la, não é nada existencial do tipo acreditar ou não em Deus, crer na vida eterna, avaliar reencarnações ou coisas do gênero.

O que me intriga é por que, podendo ter, sutil e delicadamente, me eliminado, sem que fosse levantada a menor suspeita, optou por me castigar, me deixando existir. Punir-me por causa de Deus não foi, eis que tantas vezes a vi amaldiçoá-lo por ter deixado que assim, desse jeito “Lesma Lenta”, adorava frisar, eu viesse ao mundo.

Ao mesmo tempo em que o maldizia, a velha xingava grossos palavrões, gritando não acreditar nele. Como pode uma mulher praguejar contra alguém em quem não acredita? Coisa de maluca beleza, como canta aquela música de que gosto tanto, apesar de que ela está mais para maluca escabrosa. 
Casa de malucos. Mãe e filho maluquinhos da silva. A dona “Louca Rápida”. Eu “Louca Lesma Lenta”. O “3L” há trinta e quatro anos fazendo parte da vida dela.

Como é um sorriso? Sinto que deva ser algo relaxado e bonito. Que o rosto fique leve e que seja gostoso de se ver. Sinto muito, mas este não é o meu caso. Quando ouço minhas músicas prediletas tento sorrir demais. Mas ela, a tal senhorinha da casa, gosta de dizer que sou só caretas. Que tenho semblante assustador, pleno de esgares. Mas semblante não seria suave, gostoso de se admirar? Interessante que de mim nunca falou que possuo rosto. Esta palavra só a vi usar para outras pessoas.

Vem de novo o barulhinho. Cada vez que retorna chega mais forte, se intensifica. No começo eram poucos palitinhos a tamborilar o chão. Agora são tantos. Também a máquina de moer cresceu demais. São dezenas, centenas mesmo de maquininhas de triturar a tratar desse mal cheiro aqui do quarto. Aquela que me pariu morreu há uns dois dias e eu não durarei muito tempo. Benditos ratos. Após se empanturrarem dela, serei eu, “Lesma Lenta”, a sobremesa.

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 29/06/2015
Alterado em 04/11/2016


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