Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

O ELEVADOR 

Sozinha no elevador pressiona o 5 e faz poses para o espelho, coloca-se de perfil estufando a quase inexistente barriga. Olha-se e sorri da ansiedade gostosa de reparar o crescimento da criancinha em seu ventre. Pelo vidro observa a moça correndo para alcançar a porta. Vira-se de uma vez e o indicador tem dificuldade em achar no painel o botão que a mantém aberta. Ao entrar, toda esbaforida, Lúcia lança um bom dia e um olhar que até tenta que seja agradecido, mas que não consegue esconder a irritação. Subirá até o 9º andar, à sala do advogado que cuidará do divórcio. Divide-se entre o medo da separação e a ânsia pela liberdade. Anita confere pela enésima vez o andar e a sala da Clínica na folha de receituário médico que carrega nas mãos.

O velho elevador arranca cansado. Entre o terceiro e o quarto andar ronca. Mais que isto, urra a mostrar desesperado ter superado os limites de esforço para a escalada. A máquina, como se fora um bicho acuado, começa a tremer. Estaca de repente. Recua uns centímetros e quem sabe tome fôlego para nova investida rumo ao topo. Esta não acontece, desiste. Anita dá um grito, Lúcia diz algo parecendo um palavrão. Antes da luz interna parar de piscar se apagando em definitivo, dois pares de olhos postos fixamente sobre a porta, podem ver os números 3 e 4 iluminados. Com a luz dos celulares encontram o botão de alarme. Apertam-no 1, 2, 3 vezes. Em seguida mantém-no sob pressão, mas sinal algum sai do interior dele.

A prisão dura uns 3 minutos. Do lado de fora silêncio e dentro somente o brilho das telas dos smartphones a buscar cúmplices e salvadores contatos. Prisioneiras entre o 4º e 5º andares. O fato de não haver nem um fiapo de luz vindo do alto ou por sob a porta, possivelmente apresenta 2 significados, avalia Lúcia: A primeira e mais plausível diz que a encrenca está se dando no espaço de parede entre os 2 andares. A outra mostra um sistema de vedação excelente, não deixando passar nada e nesse nada ela inclui o ar. Guarda para si as ponderações enquanto observam aterrorizadas a pane e a inutilidade dos gritos.

A angústia faz com que se procurem. Abraçam-se na tentativa de manter alguma coragem Anseiam por ligar e nada de haver rede. Socam porta e paredes até doer os punhos. O barulho surdo e metálico não alcança resposta. Ao olhar os marcadores de bateria ficam sabendo que o aparelho de Anita vive seus estertores. O de Lúcia tem 2 parcos traços. O bom senso ordena que desliguem as luzes. Quando sentem haver passado um tempo razoável ligam na esperança de que alguma rede salvadora rompera enfim aquele fosso e paredes de metal. A escuridão retorna com a sua cara mais feia.

Agarradas uma à outra choram tais crianças desesperadas. Lúcia, presa às suas conjecturas, estanca o choro. Pelo sim, pelo não, é questão de sobrevivência que queimem o mínimo de oxigênio. Acalma Anita acariciando suas costas. Age como se fossem muito amigas, quem sabe irmãs, como se houvessem combinado de chegar juntas àquele prédio. Precisa demonstrar força. Toma as rédeas da situação e balança Anita levemente solfejando uma canção de ninar. Soluçante ela se aconchega. Assentadas agora alimentam a certeza de que, mesmo que nada se ouça trata-se de edifício comercial e que a fila, devido à falta de um dos elevadores, deve estar no passeio. A possibilidade de que não houvessem reparado no problema inexiste. Lúcia sussurra para Anita, dedo apontado no escuro rumo ao lugar onde fica a câmara, que, mesmo com tanto breu, com certeza as assistem lá de fora. Trabalham para as libertar, logo estarão livres. E assim, se animando mutuamente, fazendo-se companhia uma à outra aguardam a salvação. O porquê de estarem ali é o mote que dá início à conversa.

Ao lhe relatar o iminente divórcio a voz de Lúcia embarga. Anita, solidária, a abraça mais forte. Conta-lhe que a vida caíra na rotina, mas que era uma rotina até gostosa. Cria ali o termo “rotina criativa”, fazendo rir a companheira. Tinham seus programas, curtiam-se, mantinham uma vida sexual saudável, que se não era tal qual a do tempo de recém casados, era gostosa e lhes propiciava prazer. O grande problema é que ele detestava crianças, não admitindo que engravidasse. Mas como esta questão havia sido posta ainda no início do namoro, tendo sido aceita por ela, não via por que, mesmo que o instinto maternal tenha crescido ultimamente, cobrar dele mudança. Resignara-se a ser “tia mãe”, um novo termo que ali cunhou, dos sobrinhos, inclusive dos filhos das irmãs do marido. Fosse esse o problema, mas ele se punha cada dia mais distante e as marcas das traições eram evidentes demais para serem ignoradas.

Agora é Anita quem fala dos motivos de ter vindo ao prédio. Viera para fazer mais um ultrassom da gravidez. O aparelho do seu médico quebrara e ele lhe deu o endereço da clínica, onde também atendia, na qual a estaria esperando para realizar o aguardado exame. Lamenta-se da ausência do namorado - sempre a viajar - naquela hora tão importante para o casal. Diz ser a falta de disponibilidade o grande problema dele. Mora com a mãe doente e na dependência total do filho. Por isto, até que ela morra e isto, ele disse, não demorará muito, estava impedido de se casar. Óbvio que teve e mesmo sente dificuldades com isto, inclusive porque ele ainda não a tinha levado para conhecer “mamãe sofredora”. Lembra-se de queixar também que ele insistiu demais para que abortasse, mas o que mais aspira é ser mãe. Foi dura e enfática: que se não quisesse a criança até iria sofrer muito, pois que o amava, mas que seguiria sozinha pela vida. Ele enfim aquiesceu e, diz com alegria, agora curte demais a barriga que carrega Laura Maria dentro.

Lúcia dá uma risada constatando a coincidência de o namorado de Anita e seu ainda esposo terem o mesmo nome. De vez em quando deixam de se abraçar por uns instantes. Nesses momentos Lúcia toma do celular na tentativa sempre vã da existência de, pelo menos, um restinho de rede. Colam os ouvidos à parede para ouvir os bombeiros chegando e nada. A tarde segue, são 16h. Enclausuradas há exatos 1h e 15 min. e nada de serem resgatadas, do telefone de emergência funcionar, de haver, pelo menos, algum ruído externo, por mínimo que fosse.

A narrativa entusiasmada de Anita, parecendo mesmo ter se esquecido do drama que vivem, é inicialmente bem acolhida por Lúcia. Aos poucos as asas negras da dúvida pairam sobre ela. No escuro os olhos brilham. A outra tão feliz com a gravidez que lhe foi negada e ela tão infeliz com o marido. A inveja convida a raiva para dançar e nessa música Lúcia só escutando cantar de felicidade, vai parando de falar de infelicidade. Busca conhecer maiores detalhes daquele namoro. Tudo bem que numa cidade grande há muitos homens chamados Michel, mas é intrigante que possuam a mesma idade e tenham tantos traços em comum. Abraçada à companheira de prisão Lúcia vivencia o pavor de indagar mais sobre o Michel de Anita. Não é preciso. Ela, com toda a sua motivação em falar de Maria Laura e do namorado, lhe oferece pistas. Ao saber do nome completo da criancinha, o segundo sobrenome sendo o mesmo que assumira ao se casar, sente o rosto queimando no fogo da certeza. Há um único Michel. Inveja, raiva, dúvida se juntam e Lúcia, mostrando-se dócil, sugere para Anita uma melhor posição, considerando seu estado.

Afasta-a um pouco, se ajeita novamente na quina do elevador e a puxa para que se poste de costas, entre suas pernas, utilizando seu tronco e peito como encosto. Lúcia a espera de braços abertos. Ao invés de abraçá-la pelo peito, suas mãos lhe tomam o pescoço e o apertam. As mãos de Anita tentam inutilmente se desvencilhar. Os chutes à porta vão pouco a pouco perdendo força. As unhas cravadas nas mãos de Lúcia se soltam até que os braços pendam livres. Mantém a pressão por mais um minuto e cansada empurra, com nojo, aquele corpo.
 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 23/05/2016
Alterado em 08/11/2016


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