Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


BAEDD, MEU JAVALI
 
Sentia raiva quando observava o Senhor Dolesaux e os ajudantes na montagem da armadilha para os javalis. Naquele verão, em poucas noites, uma área considerável da plantação de batatas fora destruída. Os malditos fuçadores não estariam saciados enquanto houvesse algum tubérculo em minhas terras. Duro demais na negociação, só consegui do açougueiro um quinto do que auferisse com a venda da carne dos animais capturados.   
 
O escuro chegou e a tocaia não durou quase nada. Os amaldiçoados só esperavam a noite para, famintos, voltarem à comilança. Desta vez o banquete estava mais interessante e sortido: os caçadores ofertavam espigas de milho e cenouras. Foram caindo na arapuca do mesmo jeito que as ovelhinhas ingressam no redil, mas a tranquilidade deles se esvaiu em instantes e a bicharada se desesperava nas tentativas de escapulir do cercado. Deixei-os para que procedessem ao último ato.   
 
Madrugada e lá fui eu para avaliar a situação da lavoura, o grande alçapão ainda montado e o sangue misturado à terra preta. De repente uma rama se mexeu mais adiante. À luz da lua, assaltado por javalis e sob os raios do sol, pelas lebres, refleti. Aproximei-me para espantar o ladrão orelhudo e o pequenino correu. Apanhei-o na certeza de que o javardinho havia escapado por entre as grades da prisão dos pais.   
 
Imaginei cevá-lo para que o pudéssemos saborear, grande e gordo, pela virada do ano. O sacrifício do filho, pela falta dos pais, tal qual a fábula, refleti. Só precisava guardar sigilo, pois certamente que os ouvidos do rabino, sempre atentos aos balidos do rebanho, não necessitavam de uma informação assim. Sabedor do bichinho, iria pregar a respeito da situação pecaminosa da família impura se alimentando de porcos imundos. Grave sacrilégio conforme as prescrições da Torá. O negócio era criar o animal meio ocultado no cercado das galinhas.  
 
O que não contava é que Thierry, Berthe e até Martina, nem bem havia chegado, tinham se afeiçoado ao pequenino. Tina batizou-o Baedd e o filhote passou a, de forma sutil, fazer parte da família. Não dormiu nem aquela primeira noite no cercado das aves. Depois de tomar a última mamadeira do dia, minha mulher o enrolou numa manta velha deixando-o protegido num caixote ao lado do fogão. Dali saltou, em pouquíssimo tempo, para o segundo andar da casa. Mais uns dias e acordei ouvindo, de muito próximo, os grunhidos de barriga vazia do bichinho, então descobri que ele dormia na cama da nossa caçula.  
 
O que era para ser segredo, em pouco tempo se tornara o assunto preferencial da vizinhança, me gerando problemas na sinagoga. Um sábado, quando tomava umas taças de vinho no bar, um conhecido veio me falar do javardo. Sugeriu-me adestrá-lo, dizendo que um parente havia visto um porco trabalhando com um artista de rua na Polônia. Rimos daquilo e continuamos a beber, só que não mais conseguia arrancar da cabeça aquela sugestão. Porcos e javalis são primo-irmãos. Havendo um porco amestrado e Baedd, tão dócil, também estaria capacitado ao domínio de, ao menos, alguns comandos básicos.
 
Melhor ainda, eu poderia mudar de profissão, aposentar-me enfim do arriscado Globo da Morte. O acidente das motocicletas em Praga, com a consequente fratura da bacia, me havia tornado inseguro e desconfiado. O piloto audaz e confiante que encantava o público tinha desaparecido. Naqueles sete meses sem atuar se não fora pelo esforço de Martina fabricando conservas, a cara feia da fome teria nos assombrado. Em meio ao tormento da lenta recuperação, até mesmo considerei a hipótese de me tornar palhaço, mas devido à falta de jeito e severidade do semblante, constatei que jamais me tornaria um competente profissional do riso. Disto tudo, o certo é que Baedd iria ser adestrado, a decisão estava tomada.
 
Mas precisava mais e foi reparando na idade avançada do afamado mágico da cidade, que vislumbrei o ilusionismo como complemento às mudanças nas atuações artísticas. Procurei-o, mas o velho se negou a me ensinar os truques. Não me dei por vencido e com o apoio de livros e da observação, por tantos anos, desses artistas fui capaz de, em paralelo ao amestramento do jovem animal, penetrar no instigante mundo das mágicas. Tal enredo traria a condição de me tornar mais independente dos circos, atuando também por aqui mesmo e me afastando menos de  casa.        
 
Percebi, bem rápido, o quanto as virtudes da paciência e perseverança me iriam ser necessárias. Obter a atenção de Baedd era dificílimo e o pior é que a sua memória teimava em não ajudar. Nem um dia se passara e aquilo que, a duras penas, lhe fora ensinado estava esquecido. Se com o javali as coisas andavam complicadas, o ilusionismo tinha desenvolvimento acelerado. Tornei-me, se não excelente mágico, pelo menos um profissional seguro e capaz de iludir crianças e até mesmo plateias de adultos.
 
Outra ideia surgiu: Berthe e Thierry seriam interessantes complementos ao novo projeto, aumentando-me a empregabilidade e facilitando o adeus ao famigerado Globo da Morte. Nomeei-os apoiadores de tablado, os responsáveis pela eficaz atuação do nosso bicho. A resistência a ser dobrada vinha de Martina a reclamar que, mais que trabalho em circos e bares, os meninos necessitavam era de uma boa escola.
 
Baedd adulto e minimamente educado por um lado e, pelo outro, as crianças sabedoras de como me ajudar. Estávamos praticamente prontos. Só que os tempos tinham se tornado estranhos, bastante perigosos. Muito além das quedas do Globo da Morte e das hordas de javalis na pequena plantação que nos auxiliava na renda, afligia-nos o crescente antissemitismo. Ataques aos cemitérios e lojas de judeus haviam se tornado comuns, não só em nossa cidade, como também na França inteira. Rádio e jornais a nos mostrarem que aquilo que sentíamos, era só uma pequena parte de algo bem mais amplo. Desde a Alemanha o ódio ao povo hebreu ia sendo destilado para o mundo.   
 
O medo cresceu naquela manhã em que a estrela de Davi amanheceu na nossa porta. Mais uns dias e Thierry chegou sujo e machucado: um grupo de garotos o espancou na volta da escola e aquela não tinha sido só uma briga entre escolares. Ao buscar auxílio junto a um casal passante, obteve como resposta sorrisos sarcásticos, os dois a lhe dizerem que os judeus precisavam mesmo tomar umas surras. As amiguinhas francesas de Berthe nem mais escondiam que a evitavam e Tina ganhou nova atividade tendo que lavar, quase que diariamente, a frente da casa por conta das fezes com as quais nos agrediam. Quando meu amigo, o solitário Moshe, teve a loja de antiguidades e apartamento saqueados e destruídos, tivemos a certeza de que o perigo se avizinhara demais.
 
Vendemos as coisas de valor e com o pouco arrecadado despachei a família para Cardiff, cidade de uns parentes de Martina, nas bandas de lá do Canal da Mancha. Resisti, idiota e bravamente, aos rogos para que também partisse. Permaneci para cobrar de Sigfried, austríaco sovina que me devia por vários trabalhos e porque desejava vender nossa residência e a propriedade rural. Resultado zero, pois que ele jamais me pagou e comprador de casa e terreno judaicos  não havia um que fosse. Pior de tudo foi que para me manter acabei gastando o dinheiro reservado para escapar da França.     
 
Chegara à cidade um circo italiano e me agarrei a ele como náufrago à última tábua no mar. Corri até lá me oferecendo ao dono como atração barata. Não teria que me bancar alimentação e hospedagem e, melhor ainda, aceitava trabalhar por bem menos do que era usual que se pagasse a um artista do meu padrão. Ter como salário o dinheiro da passagem para o País de Gales me era o suficiente.    
 
Tentei me vender como um mágico diferente de todos que até então ele conhecera. Um ilusionista possuidor de um javali atuante como assistente de picadeiro. O homem desacreditava de javardos amestrados e não consegui convencê-lo de jeito algum. Contratou-me na função antiga que era o que ele mais necessitava. Por razões óbvias aceitei mesmo sendo sabedor de que, ainda mais com parceiros desconhecidos, o pavor iria bater pesado ao me deparar, de novo, com a ameaçadora esfera iluminada. Esperança foi que mudaria de ideia logo que reparasse no meu potencial para a mágica, ainda mais tendo Baedd do meu lado a fazer gracinhas.
 
Determinado em levar o javali, mais a mala carregada com as magias e animado pela boa expectativa de arrumar um jeito de me mostrar ao patrão, escovei meu ajudante e partimos bem mais cedo, madrugada ainda, para o primeiro dia de função. Sob a lona pude constatar que nada do que mentalmente havia programado ocorreu. Hora de atuar e o pânico me paralisou diante das motocicletas dos dois alemães a me fuzilarem com olhares de ódio. Fui incapaz de dar partida à máquina. O público em silêncio e nada acontecia. Foi então que o mestre de cerimônias anunciou ao microfone: “Distinto público, peço um minuto de paciência. Estamos tendo problemas com o motociclista judeu.” O povo urrou em uníssono. A vaia estrondosa me feriu a alma e desabei de vez.
 
Demitido e escorraçado, fui apanhar os apetrechos mágicos e Baedd. Meu bichinho deixado preso junto ao elefante e cavalos dançarinos. Estava agitadíssimo como jamais o vira, mais um pouco e teria se livrado do toco de madeira. Não era boa ideia retornar com ele daquele jeito, a corrente bem o sabia, seria mero objeto de decoração se resolvesse testar suas forças. Abracei-o dando leves batidas em suas costas para que se acalmasse.
 
O frio estava intenso e o vento soprava forte. Caminhos vazios prenunciando a primeira nevasca do inverno. Só o meu bichinho não resmungava contra aquele clima hostil e trotava grunhindo de satisfação. Decidi usar os óculos de motociclista para proteger os olhos e assim seguimos buscando cortar distâncias pela mata. Solfejava, bem baixinho, canções infantis que Berthe gostava de cantar para o nosso companheiro. A hora de partir se aproximava e a derradeira tarefa seria a libertação de Baedd, no mesmo local onde fora capturado. Seria insanidade absoluta aguardar a mais que previsível chegada do exército nazista.    
 
Mais perto de casa nos deparamos com muita fumaça e gritos. Ao contrário dos lugares pelos quais passáramos, no meu bairro os moradores pareciam não temer frio e vento. Duas quadras antes e pude observar horrorizado as casas judias ardendo. Foi então que me apontaram. Na ânsia de sair dali dei meia volta e então senti um soco me lançando violentamente para frente. Cambaleante deixei cair a mala levando a mão ao peito. O sangue vazava por onde a bala escapara. Meu amigo, inocente, não foi capaz de reparar no perigo deitando-se ao meu lado. Arranquei sua corrente e lhe ordenei que fugisse. Tudo inútil e o que desconhecia é que javalis não conseguem olhar para o céu. Baedd era incapaz de enxergar o fuzil a lhe mirar a testa.  



 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 25/06/2017


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