Campeão do Mundo
Levanta-se incomodado. A caminho do banheiro, inseguro, arrasta os pés. Atenção que precisa tomar a toda troca de empregada. O calombo dolorido na canela esquerda é prova da última substituição. “Culpa da vaca atual que, igual às outras, não tem nenhum cuidado em repor os móveis aos seus exatos lugares e que já a devia ter mandado pastar”. Range entre dentes, enquanto rumina a ideia de se pôr marcas no chão, com a localização correta para os pés da mobília.
No escuro da cegueira, sem a mulher por perto, que isto mais nunca haveria de querer, resigna-se. Impossível manter o apartamento sem a invasão semanal da arrumadeira, da mesma maneira que ninguém seria capaz de aguentar por um tempo, razoável que fosse, suas manias e humor do cão. A conta das que tinham passado por ali depois que ela, fatal, fora embora, era feita nas cicatrizes de pés e pernas.
Com o rojão que espoca na favela por perto, chega a lembrança da copa próxima. Não é que tinha voltado a gostar de futebol? A radical implicância com a bola aconteceu porque o esporte se tornara simples negócio. “Amor mesmo que é bom, de se jogar por prazer e paixão, esse tinha acabado fazia tempos”. Era esta a explicação que se concedia para a desilusão havida, sem negar que mesmo no passado tivesse existido um ou outro atleta mercador. Definitivo que não levava em conta a coincidência da chegada da cegueira ter ocorrido junto com o desengano com a bola.
Quem sabe não tenha sido o baque surdo dela batendo, de vez em quando, nas paredes da quadra numa escola das vizinhanças, trazendo à imaginação lances, ao ouvir a algazarra das crianças, que fez retornar o amor antigo.
A empregada, uma delas, quando repreendida, sussurrara e elas pensam que cego é surdo: “só mesmo um bruto assim para viver num lugar tão escuro e triste”. Foi o que disse e de imediato rebateu o “vai pastar, vaca prenha”. Ela bateu a porta da cozinha aos prantos, sem nem receber a última diária. “O banco de reservas está quase vazio”, era o que lhe repetia o porteiro, também agenciador de mão de obra, no alerta da dificuldade crescente de reposição, ainda mais para ele, ao ser acionado pelo interfone quando dos cartões vermelhos de cada faxineira.
Nunca fora de ataque. Era beque e os sonhos de jogar na frente ficaram perdidos nas sombras do adolescer. Mesmo com gente melhor para ser escalada, raríssimas vezes permaneceu no barranco à beira do campo. Razão de que a cobiçada "Número Cinco - Oficial", apesar de já muito sofrida pelo mau trato de tantos pés e o pó do chão, era dele. Substituí-lo era correr riscos de que se queimasse e saísse para mais além ainda do campo, indo embora para casa e deixando-os sem bola. Comitivas de atletas, aflitos por uma pelada, costumavam convocá-lo. Nesses momentos, saía rodeado feito capitão em hora de receber taça, peito estufado, sorrindo com o troféu redondo e ensebado para proteção do couro debaixo do braço.
De time mesmo, apesar de que tinha o seu de preferência, nunca curtira grandes apreços. Prazer era do jogo em si. Só importava que houvesse craques. Agora, paixão verdadeira, que fazia ferver o sangue e dar tremura no corpo, era coisa de acontecer só com a Seleção. Esteve no Maracanã, final de 50. Assistira a tudo. O título, tão sonhado se esvaindo nas lágrimas da criança desentendida de se poder acontecer desgraça tão grande. Assistira pela televisão, ainda que somente conseguisse perceber vultos, a última, a de 82. Daí em diante, ao mesmo tempo em que avançava célere, numa das pontas, a escuridão dos olhos, corria também, pela outra, a crescente descrença com os rumos tomados pelo futebol.
"Só se quer dinheiro”, tinha escutado da vaca de plantão, que ao invés de cumprir com a obrigação, ficava mugindo ao telefone com alguma outra bovina irresponsável. Ela contava ter se emocionado com o gesto do goleador novo do seu time: 'Fez o gol e beijou o escudo na camisa'. Tremendo dum mercenário. Na temporada que vem estará lambendo outro distintivo, com a mesma cara com que babujou no da equipe que lhe pagara uma baba para jogar nesse ano”.
É o que fala sozinho enquanto, automático, balança o corpo na cadeira ouvindo mais os chiados, do que os acordes do long play da coleção de música clássica. O sono foi chutado para distante e há que se aproveitar a quietude da madrugada. Em breve, hordas de bárbaros invadirão o colégio próximo. No lusco fusco da consciência, nem nota que Mozart adormecera no disco que continua rodando. Acolhendo de volta e amortecendo no peito o longo passe com a bola do sono, também dorme.
E não há véu nenhum nos olhos. Enxerga límpido como uma tarde azul de junho, faz tanto tempo. O estádio agora é só dele. Vê tudo. Bem diferente daquele domingo quando, espremido na arquibancada, só avistava de se olhar mesmo uma faixa no meio de campo e um pedaço da trave direita.
Passa Gighia correndo com a bola. Bigode que chega junto e lhe fecha o ângulo. Da linha de fundo o uruguaio cruza. A bola voa alta na área e Barbosa salta socando-a longe, como se exorcizasse para bem distante da memória a tristeza longínqua de um país inteiro. O inimigo continua no ataque, mas a defesa pátria é um bater e rebater infinitos. Barbosa, santo de altos milagres, parecendo ter doze pés e mãos na garantia do empate. O estrilo do apito fecha o jogo e da goela rouca do Maracanã de sonho, sai o berro imenso do menino e dos duzentos mil em delírio. Somos campeões do mundo.
Abre os olhos opacos e está sorrindo como há muito não era capaz de. A frase ecoa forte diante de poucas janelas iluminadas: “Põe mais uma estrela na Amarelinha, Brasil!”.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 06/05/2010
Alterado em 28/05/2018