Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

Carnaval no Bonde
Anália nem abre os olhos. Não vai além do esgar, querendo ter sido um sorriso, esboçado na saudação à moça que viera, conforme escala famíliar, para lhe fazer companhia naquela tarde. Deitada há muito tempo deixara de ser dona dos seus movimentos. Virada e revirada pelas acompanhantes que lhe arrumavam as sondas e davam, uma vez por dia, banho de pano úmido. Também de tempos em tempos a viravam e reviravam para lá e para cá, lambuzando-a de óleo na tentativa de livrá-la das escaras que se esforçavam para abrir as peles cada dia mais finas.

Vó, sou eu quem vai ficar aqui com você hoje e é carnaval, viu? A moça gritava ao seu ouvido, como se fosse surda, acordando-a de vez, mas, teimosa que era não abriria os olhos. Para todos os efeitos, continuava adormecida. Daqui saio direto para o desfile do bloco, ela continuava. Veja a fantasia. Está quase pronta. Olha, faça um sinalzinho se precisar de algo. Vou deixar você dormindo. Vejo que está melhor do que há duas semanas, da última vez que estive aqui. Que bom. Enquanto isto, vou fazendo esses arremates na camiseta do bloco. Sua neta vai desfilar bem bonitona.

Acordada como há muito tempo não estivera, a mente visita o passado. Vai rumo a uma viagem pelos trilhos do bonde, até aquele carnaval da adolescência. A foto do homem morto ao lado da linha do bonde, na primeira página do jornal de quarta-feira de cinzas revisita, depois de tantos anos, a memória. Parecia ter os olhos pousados naquele jornal, tão aguardado, e que tinha sido jogado, naquele mesmo instante, pelo jornaleiro na varanda da casa.

Estavam cantando no bonde. Lembrava-se até da marchinha. Ela, sua irmã Alaíde e Inês, a prima vinda do interior para as férias na Capital, mais umas amigas da Escola Normal. Não tinha sido fácil convencer a mãe para que as deixasse ir até o Centro ver o carnaval. Agradeciam a Deus de o pai estar num retiro religioso. Caso estivesse em casa o máximo que poderiam ver do carnaval seria através do gradil sobre o muro baixo, o quase nenhum movimento daquela rua escondida dentro da Tijuca onde moravam.      

O Bonde já estava próximo à Praça da República quando ele entrou. Não estava fantasiado. Era a lança perfume na mão direita que o denunciava como folião. Vira nele o pisar leve dos bêbados, quando se aproximara para pegar o bonde e os seus olhares se cruzaram. Era bonito e no olhar dele ela pressentiu haver um quê, atrativo, de meninice e insegurança.

Ele sorriu. Ela olha para o lado e vê quê estão todas entretidas rindo alto de algum fantasiado do outro lado da rua. Responde ao sorriso dele. Da Praça da República vem o barulho de uma batucada. De pé no estribo ele aproxima o rosto do dela para beijar-lhe a boca. O empurrão é rápido e o corpo desaba num baque seco. Muda, vira o rosto para frente negando-se a olhar para trás. Pára que caiu um homem! É o que grita um passageiro às suas costas. Barulhos irritantes do metal rangendo e o bonde fica silencioso. Escuta o motorneiro falando que não teve culpa, que não havia feito nenhum movimento brusco. Bateu a cabeça na pedra e nem sentiu a morte. Que Deus o tenha. Foi o que alguém disse. Abraça Inês e choram.

Descem pelo outro lado do bonde e a volta para casa, nem meia hora havia se passado desde a saída, se dá a pé. A linha interrompida impedia que voltasse algum bonde. Não fique assim abalada, Anália, nós nem o conhecíamos. Esses homens bebem muito e depois tomam o bonde ficando em pé no estribo. Bem feito para ele que não quis se assentar. Havia muito lugar vago.    

Matara um homem. Assassina, era isto que era. Olhos ainda inchados de tanto chorar e da noite em claro, vai se confessar. Mais de meia hora ficara olhando a foto do homem estatelado no chão. Na fotografia ele não era parecido com o rapaz bonito que lhe sorrira. As mãos dele estão vazias. Na Igreja de Santo Afonso o padre, sotaque carregado, indaga-lhe dos pecados. Confessa o trivial e assusta-se com sua frieza em permanecer ocultando o assassinato que cometera no dia anterior. Na cabeça formam-se outras cenas. Numa delas o que houvera foi o simples desequilíbrio do homem após algum solavanco do bonde.  Não acontecera nenhuma abordagem. Ele nem se achegou para um beijo e se tivesse querido, até o teria dado. O moço era interessante e enfim, era carnaval.  

Nunca mais a folia a atraiu e passado um tempo o segredo estava praticamente abafado pelos acontecimentos. Namoro, casamento, filhos um atrás do outro, dificuldades financeiras, rotina, vida vazia, novelas, mudanças, casamentos da filharada, chegada dos netos, separações, morte do marido, das amigas, o derrame que a deixara daquele jeito.

Até que a neta a acorda e lá dentro chega forte a batucada. Estaria sonhando com aquela terça-feira gorda naquele bonde? A tarde em que, incapaz que era de matar uma mosca, cometera homicídio? Sente as mãos querendo ir à frente para empurrar, de novo, aquele corpo que começava a se colar ao seu, ao mesmo tempo em que tenta mantê-las quietas na barriga. Num esforço grande abre a boca para contar a verdade à neta. Não iria morrer com segredo tão terrível e a morte, sentia-o bem, de vez em quando a espreitava do outro lado da porta do quarto frio.

Eu matei um homem que tentou me beijar, foi o que fazia uma força incrível para confessar à neta, mas a voz, como também grande parte do corpo, não existia mais.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 06/05/2010
Alterado em 05/01/2016


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras