Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

Bonina

NASCER
 
Meu Deus, estão todas cobertas. Curiosa, entro devagar na capela barroca de Flor do Campo e constato estarem as imagens escondidas debaixo de panos roxos. Aqueles tecidos, o ambiente silencioso para a reflexão e interiorização, o cheiro de velas queimando num dos cantos, me são convidativos como as duas bandas abertas dessa porta. Evocam-me sensações, trazem-me tempos há muito passados.

A Semana Santa vivida na pequena cidade não tinha mesmo salvação. Caíra na conta de grande desastre. A chuva renitente e o péssimo humor de Rodrigo fizeram com que o programa diferente nas cachoeiras fosse literalmente por água abaixo. O ambiente era mais do que propício para quem anseia ficar só. Na igreja apenas uma velha reza o terço emitindo sons que fazem lembrar o chamamento de gatos. Melhor que ele fique lá na Pousada.

Fazia anos, muitos anos, que não visitava um templo e a sensação era bastante agradável. Plena de paz e tranquilidade. Vontade de permanecer quieta, provocando para que sentisse minha falta. Depois de um tempo, quem sabe mais umas duas horas, começaria a ficar preocupado, mais um período, uma ou duas horas além e mesmo se a chuva voltasse a cair, sairia para me buscar. Ficaria tanto tempo assim na Igreja para que tal projeto imaginado virasse realidade e Rodrigo apontasse no largo portal da pequena igrejinha?

Não, não queria isto. Ele chegaria a princípio preocupado, mas ao notar pelo meu semblante pacificado, rosto de quem está tão bem nesse lugar, com certeza explodiria numa raiva imensa e o desastre da Semana Santa teria, de imediato, a cotação aumentada para catástrofe. Se ele precisa de pelo menos umas duas horas para começar a sentir falta de mim, tenho bastante tempo para curtir aqui a tristeza antes de voltar.

Tristeza? Mas não era de paz e tranquilidade a sensação observada há pouco? E quem foi que disse que paz e tranquilidade não são perfeitamente iguais à doce melancolia que sinto e que faz com que fique em suspenso este nó na garganta, e que os olhos se tornem duas represas prendendo lágrimas, prontas para o desabamento rosto abaixo? Como é bom estar aqui. Parece que resgato um sentimento bastante profundo e que conheço há tanto tempo, que seria capaz de dizer ser do tamanho da eternidade.

-Menina, sua mão está molhada de suor. O que é isto? Está com medo? Lembrava da primeira vez em que tinha visto imagens assim, cobertas de roxo. Roxo não, de bonina. Gosto desse nome. Bo ni na. Diferente, bonito. Bonina bonito. Só eu o uso e quando o faço constato que a maioria das pessoas nem sabe o que significa. O pano é bonina, repito sorrindo e chorando com a lembrança da mão muito fina e de pele seca da avó Teresa segurando na minha e constatando o medo.

-O que fizeram com os santos, vovó? Por que estão cobertos com esse pano vermelho? 
- Vermelho não, minha filha, é mais que isso. É uma cor com propriedade, mais substantiva e encorpada. Muito bonita. A zeladora teve muito bom gosto ao comprar o tecido neste tom. O roxo simples é bastante pobre apesar de que também é belo. O bonina é que está cobrindo as imagens. Vovó Tetê também, ali veio a recordação, usava a palavra diferente. Mas podia. Era Tetê quem me levava à Igreja. Lá em casa ninguém era religioso. Ao contrário, papai, maçom, vivia falando mal dos padres e pastores.

Mamãe, tão doente, mesmo quando tinha melhoras continuava sem ter tempo para a gente. Enfurnava-se nos romances água com açúcar e ninguém conseguia adentrar seus sentimentos. Romances vulgares, vazios e que nos tomavam o afeto materno, penso agora sem dissimular a raiva.
Era bom quando mamãe se quedava deprimida na cama. Sabia que em algum próximo momento Teresa, com sua mão muito fina e seca, chegaria para levá-la a um dos seus dois programas prediletos: Visitar o túmulo de José Maria ou ir à igreja.

Não havia missa, reza, novena, benção, que não contasse com a presença de Tetê no canto direito do terceiro banco da lateral esquerda da Igreja da Conceição Imaculada. Era bom ir com vovó a estes dois locais. Não só porque me veria liberta do ambiente abafado de dentro de casa, onde não nos era permitido nem abrir as janelas, mas porque também, aos poucos fui aprendendo, aqueles lugares muito me atraiam. Tinha gosto em frequentá-los.

Mamãe ficara assim desde que papai foi embora, vovó parece que se esquecia de que já me contara a história. Era só sair de casa me rebocando para o templo, ou para o cemitério, que iniciava a ladainha. Começava por dizer que a filha tinha toda razão em estar doente. Depois de tudo que sofrera com o marido infiel e que a trocou por uma menina. Menina não, vovó sempre se corrigia, uma sirigaita.

-Com aquele rostinho angelical, veio ajudar sua mãe ao final da gravidez quando ela te esperava. Com dois meninos pequenos, enfiados um atrás do outro, porque nasceram com a diferença de apenas onze meses, engravidou de novo. Fui a Santa Bárbara e pedi a uma senhora amiga e muito necessitada, para que me emprestasse uma das filhas para vir ajudar na labuta do dia a dia da casa de mulher à beira do parto e depois dele, de moradia cheirando a neném novo. Veio Ângela, menina dos seus dezesseis anos, mas com corpo de mulher. Com menos de três meses de você nascida eu até desconfiei e tentei falar com a sua mãe para que a devolvêssemos para Sinhana lá no Brejo Frio de Santa Bárbara, mas aí já era tarde, Cecília tinha os olhos cobertos pela névoa do amor ao marido e da gratidão à mocinha que, mais que empregada, mesmo tendo decorrido tão pouco tempo, já era considerada pessoa da família e cuidava tão bem da casa, da sua mãe e de vocês, as pequenas e frágeis crianças. Deus que me perdoe, mas o demônio já tinha feito morada e a danadinha nem havia respeitado o resguardo da minha filha. Já tinha se amancebado daquele filho do cão.

Vovó ia falando e subindo o tom da voz. Cigarra. Sim, era como uma cigarra que começa a cantar baixinho e vai rapidamente aumentando o volume até que se torne o mais estridente canto, o comportamento da voz de vovó quando, dentro da narração do capítulo separação de mamãe, entrava em cena o personagem de papai. Era ódio, a mais pura e límpida raiva exposta sem nenhum pudor. Sem que houvesse nem vestígio de cuidado por estar se tratando de conversa com uma criança, gerada por este homem endemoniado que tinha abandonado sua filha. Acostumara-se com aquilo. Era como se estivesse ouvindo o relato da festa de aniversário de alguma amiguinha ou do acontecido trivial em alguma excursão escolar.

Teria sido sempre assim a reação ao ouvir Tetê falar tão mal do pai? Pai que nem conhecera. Que partira com Ângela antes que tivesse completado o primeiro ano. Para a Argentina, diziam uns. Foi não, falavam outros, saiu daqui com a mocinha que cuidava da esposa e das crianças e com ela foi trabalhar em navio de gente rica, desses que fazem cruzeiros pelos mares afora. A profissão dele, vovó contava, era crupier de cassino clandestino.

-Eu nunca achei que ele fosse alguém que valesse a pena para a sua mãe. Mas você sabe como é esse negócio de coração. Não nos escutam. Ficam parecendo surdos e aí, quando se dão conta da tragédia, ela está feita. Aí é só chorar, nada mais é possível de ser tentado. E o casal de demônios, após ter feito tantos sofrerem, devia estar vivendo bem. Ela trabalhando de dançarina e com toda certeza seduzindo pobres e inocentes homens a bordo e ele dirigindo a jogatina e fazendo com que famílias pusessem tudo fora na perdição do jogo - afiançava Tetê. - Malditos, mil vezes malditos. Falava alto agora vovó, já quase gritando, naquela hora em que parece que as cigarras vão até cair dos troncos, de tão trêmulas da vibração do seu grito.

Criada em ambiente de tanto ódio de quem tão cedo a abandonara, ira esta ainda mais reforçada por Tetê, a outra mãe, estranhamente vinha sentindo grande vontade de conhecer Feliciano. E também Ângela, por que não? Queria saber dos fatos sendo relatados pelo outro lado da história. A versão familiar, mil vezes historiada pela avó e patente no rosto e corpo materno, já tinha de cor e salteado. Faltava escutar a narração de quem havia ido embora, de quem tinha sido sedutor e também de quem fora seduzida. Como ocorrera a descoberta da paixão entre os dois? Teria sido algo tão forte, tão grande, tão avassalador que eles não conseguiram colocar razão na caminhada? Havia sido coração puro, disparado, aberto e ávido de entrega um para o outro? Como gostava de imaginar isto. Eu tinha muita atração por paixões dessas dimensões, ilimitadas, desregradas, incêndio de floresta seca em agosto de muito vento.

Mamãe só sentia a raiva e a dor do abandono. Nunca falara de nada que acontecera. Apenas chorava e continuava lendo as banalidades encadernadas. Ia ficando triste e, já era mais que sabido, acabava na cama, sem ânimo para beber água, sem forças para lutar contra a letargia que dela tomava conta. O pranto de mamãe é diferente do meu. Muito estranho. Chora, chora e continua ainda mais triste. O meu é choro que vem rasgando, absoluto, mas que chega assim desse jeito e depois passa, e fico bem. É, eu sei, não foi sempre assim.
 
VIVER
 
Também já tive lá as melancolias profundas. As - eu gosto de nomeá-las assim - ultramelancolias. Quando vinham era como se abrissem meu peito e expusessem o coração ao público, sangrando enquanto pulsava fraco da maior dor do mundo. Aí, sutilmente, vinha a visão das duas saídas possíveis. O caminho que conduzia a um belo e doce descansar do mundo e a outra estrada mostrando a vida que continuava pedindo para ser vivida. Hoje as ultras não têm vindo mais. Controlo-me, mas sei que existem. Espreitam-me. Será?

Este está com os braços abertos. Ou é o Cristo na cruz? Não, a forma é de alguém que eleva as mãos para os céus. Posição de súplica, ou seria de louvor? Imagem de santo, ou de santa? Homem ou mulher? Feliciano ou Ângela?

Queria ter a fé dessa mulher que até há pouco rezava o terço. Seu rosto, a expressão do olhar, os lábios entreabertos como se tivessem parado no “a” inicial de alguma palavra fundamental em sua existência. Aquela palavra que faria o giro. Deixaria embaixo o que está em cima e lá no alto colocaria o que hoje se despreza.

Os olhos viajam no mesmo trajeto que foi seguido pelos dela. Miram agora o pano roxo que cobre aquela imagem do lado direito. A maior do altar. Rio do pensamento inicial totalmente idiota, dou-me conta, que me passou pela mente. Imaginei que estaria procurando algum furo no tecido bonina como aquele pano lá do fundo da infância. Também a zeladora desta capela era sensível e tivera bom gosto não adquirindo peça de pano roxo fechado, afiançaria Tetê.

Qual imagem estaria ali escondida? A pergunta se fazendo de ioiô vai e volta na cabeça. Fosse quem sabe de Jesus de Nazaré ou da sua mãe Maria. Aí seria alguma escultura falseada. A imagem de semita construída dentro de padrões diferentes daqueles caracteres antropológicos da raça, porque o padrão, a matriz, deveria ser bem européia. Imagens falsas, imagens feias, imagens feitas por artistas pequenos. Imagens de mal parecer e gosto. “Fakes”, fuleiras.

Mau gosto. Argh. Faz-me sentir nojo. Como o “kitsch” me é incômodo. Mais que isto, muito mais. Causador de asco. O que falta no mundo é o bom gosto, a estética, o estilo apurado, a beleza. Como o temos tão pouco, vemos à volta os exércitos do feio tomando a ofensiva. Estão quase ganhando a guerra. O feio que é vazio, raso e falso em contraponto ao belo que é pleno, profundo e veraz. Cultores do belo, homens e mulheres de sensibilidade, uni-vos. A hora é esta. A defesa da beleza, até com as nossas próprias vidas se necessário for, urge. Esta é a batalha. Derrubemos as falsidades, as obras superficiais, o que não tenha sentido, a produção artística massificada. Ao chão as feiúras todas e que reine a nossa rainha, a beleza. A origem de tudo é o belo, é Deus. Existe algo mais lindo do que o Paraíso? Ser original é ser diferente, é ser único, é ter na alma esta nostalgia do belo radical gravado bem fundo na carne, a ferro e fogo.

Mas se nem vejo a imagem como posso afiançar que seja um belo fruto da legítima lavra de escultor barroco, ou até mais atual, mas de qualidade reconhecida por gente sofisticada e sensível, ou, ao contrário, que esteja aí oculta uma mera cópia feita em série nalguma reles oficina de fundo de quintal? Quem sabe não estejamos contemplando, eu e a senhora, e neste caso ela como frequentadora da capela, pois certamente moradora da vila, é sabedora disto e então permanece com os olhos injetados no pano bonina, a silhueta de um autêntico e mais puro Aleijadinho? Não, óbvio que não. Igrejinha paupérrima como esta não seria guarida, sob nenhuma hipótese, de imagem barroca original do grande mestre. Mesmo não sendo das mãos dele, continuaria a pertencer ao universo dos objetos de arte como beleza de primeira grandeza, caso ocorresse de ser a obra anônima de ex-aprendiz ligado à sua oficina, é bem provável que fosse, um dos seus preferidos, daqueles que muito talento já iam demonstrando.

Ah, os pés. Devo observar os pés. Escultura oriunda da escola mineira de Aleijadinho tinha necessariamente os pés tortos. Foi isto que ouvi do guia que falava decorado tal qual papagaio, quando extasiada via aquela igreja barroca belíssima. Tortos não, os pés trocados. O direito no lugar do pé esquerdo e o pé esquerdo na posição onde deveria estar o direito. Pena que o pano roxo cubra totalmente a imagem. Não há nenhuma chance de que sejam observados os pés. E caso nem pés ela tenha? E se for apenas um grande busto? Ou mesmo que tivesse pernas e pés, é até bem provável que possam estar ocultos, quem sabe, envoltos numa base de sustentação feita de flores ou de rostos de anjinhos?

Besteira pensar que aí estamos diante do mais autêntico barroco mineiro. Fosse um, na realidade, não estaria a porta da capela aberta e desguarnecida como a encontrei e continua a ficar, sem nem um segurança por perto. Convite para que se entre e concretize o roubo de encomenda da imagem para algum rico colecionador excêntrico, que haveria de pagar uma fortuna para ter na sua coleção secreta, porque não haveria de deixar que houvesse acesso do público a ela, haja vista que várias das suas peças teriam tido um certo tipo enviesado de aquisição. A porta aberta é convite para os bons e para os maus. Os que vêm para curtir o ambiente, penetrar na paz propiciada por ele e também para aqueles outros que ali naqueles bancos poderiam estar avaliando quanto irão lucrar liberando e aliviando o templo da pequena cidade de suas riquezas.

Ladrão que busca o belo é merecedor da mesma tamanha culpa? Claro que não. Às favas os escrúpulos da sociedade hipócrita. Esta é uma culpa menor. Bem pequena mesmo. Nos museus privadíssimos dos colecionadores aristocráticos das belas obras, adquiridas mesmo que por meios e processos alternativos, os quadros, esculturas, mobiliários, adereços decorativos e outras peças, estariam até bem mais protegidos dos incêndios, dos cupins e do descaso e incúria das autoridades com o patrimônio histórico do país. Protegidos também de tantos e tantos olhos incapazes de captar sua beleza. As multidões de cegos que vagueiam pelo mundo com os olhos abertos. Senhores ladrões do belo. Fosse eu sua juíza, mil anos de perdão teriam por preservarem para mulheres e homens de alta sensibilidade, aquelas pessoas especiais de todo o tempo que há de vir, a beleza construída pelo talento humano.

Os céus desabem sobre mim, pois cá estou defendendo o roubo, a usurpação, o tomar indevido das obras de arte. Não foi nada disto que Tetê me ensinou. Não eram estes os valores que me foram passados na formação familiar e também na escola que tive. Atrai-me a transgressão. Puxa-me muitas vezes para perto dele o transgressor, aquele que vem caminhando na trilha, ao lado daquela por onde vão passando os tais tantos e tantos cegos enxergantes do quase nada.

Perdão, Santo. Oh, ser bendito de Deus, ou quiçá seja este o seu próprio Filho, ou a sua Mãe que se esconde debaixo deste pano bonina, pela minha enxurrada incontrolável de pensamentos indevidos a este lugar tão sagrado e que me pacifica. Perdão por estar a defender os que vão à margem. Perdão por defender-me, porque também sou um deles. Um desses tais marginais, diferentes. Oh Santo ou Santa de Deus! Peço perdão aqui que é o local apropriado para se clamar por este pedido de misericórdia!

Tetê, mãos dadas comigo, levava-me para a confissão mensal com Monsenhor Juvenal, nas quintas-feiras anteriores às primeiras sextas-feiras de cada mês. Seguia imaginando, amedrontada, que meu rosto estivesse denunciando ao representante de Deus as faltas. Olho o confessionário, tirando a vista do pano roxo que cobre a imagem. Bonito também, mas aquele outro no qual me ajoelhava e que tinha lá dentro o confessor, era muito mais. Madeira dele era toda torneada. Este é mais simples. O belo também pode ser simples. Esta capela e a Igreja de São Francisco em Ouro Preto são belas. Esta tão despojada e aquela exuberante de riquezas. O pano na parte superior da porta, protegendo o sacerdote dos olhares dos confessantes é preto. Leve, deixa ver o interior, como também o era o confessionário do Monsenhor. Só que o tecido da frente daquele era bonina. Diáfana cor bonina. Tinha cruzinhas azuis. Devia ser para reforçar o sentido da penitência, da dor e das lágrimas pelos pecados cometidos.

Rodrigo não gosta de ópera. Ele as detesta. Chegou a dormir no segundo ato da Aída. Morri de vergonha. Tive muito medo de que percebessem à nossa volta que cochilava. E o pavor de que roncasse? Morreria de vergonha ali, em plena platéia do grande teatro. Ou não. Quem sabe fingiria que estava só e que aquele homem ao lado era um simples desconhecido. Mais ainda, que tanto quanto os demais, também estaria indignada e à beira até de um ataque apoplético com a atitude ignara do tal senhor dorminhoco.

Problema era que vivia em casa numa época de música de qualidade no que chamava ser o meu bandoneon do amor. Ou seja, tempos de se curtir uma afinadíssima relação com o marido. Isto equivalia a que mantivéssemos as mãos dadas um ao outro. Mesmo se, envergonhada, discretamente soltasse a sua mão, de imediato, de olhos fechados e dormindo, estaria Rodrigo tateando pelo meu colo buscando de novo o contato perdido. Naquela época, quando ainda insistia para que ele fosse ao Teatro Municipal e o programa era a ópera, a sua maior diversão quando não estava dormindo era ridicularizar meu pranto. Chateava-me demasiado e ficava melindrada. Vá lá que choro mais do que a média das pessoas. Afinal, sinto mais, por isto me emociono também mais. Tenho culpa de ser diferente? De ser mulher com a sensibilidade à flor da pele? E por acaso ser especial e diferente é algum aleijão? Algum defeito do qual deva me envergonhar? Óbvio que não.

Dulcinéia era companheira para teatro lírico. Afonso também não sentia nenhum prazer neste tipo de programa. Preferia futebol. Oh Deus, proteja sempre a plebe rude. Íamos juntas e chorávamos praticamente desde a leitura do programa da noite, até a saída do teatro com as palmas das mãos ainda vermelhas e quentes. A união do teatro com a música, na grandiosidade do lirismo existente na ópera, faz parte do belo do mundo. Não pode nunca terminar.

No tempo em que ia ainda com Rodrigo, fomos assistir a Flauta Mágica, obra do gênio mágico de Amadeus Mozart. Contive-me a custo para evitar os chistes dele até a entrada de Papageno, o inocente bufão caçador de pássaros, em cena. Impávida, não lagrimejei até que acontecesse este momento. Foi ele, cantando e tocando na flauta de pan invadir o palco, aos saltos, numa marcação dançada para que o nó contido e preso na garganta, se soltasse e as lágrimas, liberadas, coreografassem meu rosto borrando a maquiagem tão cuidadosamente feita para a noite e que já sabia de antemão que não permaneceria incólume ao espetáculo lírico. Acordado estava o danado. Infelizmente não cochilava nesta hora e ao ver que estava chorando em meio a uma cena alegre e sem nenhuma profundidade emocional desatou a rir. Ria alto até. Bom que confundiam que estivesse rindo da ária interpretada pelo cantor lírico, o tal Papageno. Magoei muito. Difícil para entender a insensibilidade de uns tantos. Nunca mais fomos juntos ao Municipal.

Observo em volta. La adiante o altar. Relembro as cerimônias, as missas solenes, os “Te Deum”, as procissões de que participava com Tereza. Gostava da liturgia que há nas igrejas. Os paramentos bordados, coloridos, pesados e imponentes. O incenso, ah, este era um momento especial. O perfume que ia exalando na fumaça que para os céus subia, carregando os louvores e ações de graça do povo cristão ali reunido. Onde oram os crentes que tomam de assalto os templos fora das cerimônias de Natal, Semana Santa e da Páscoa? Em que lugares se escondem? Será que se quedam rezando apenas em casa? Não aprecio isto. Cheira a fingimento, a atitudes não autênticas e que fedem. Ou se é, ou não se é. Ou se frequenta, ou se ausenta.

Nunca me esqueci de um sermão de Monsenhor Juvenal. Todo ele não. De uma frase solta que havia dentro. Não que ficasse atenta às homilias. Bem longe disso. Brincava, cofiava os cabelos, reparava a roupa dos outros, sorria do como não sabiam se vestir, se portar. Acontece que Monsenhor usou uma palavra que fez com que me postasse em estado de atenção, alerta. “Eu te vomitarei.” Ele disse alto e bom som. No susto os olhos se arregalaram ainda mais e repararam que nos cantos da sua boca dois pontinhos brancos de espuma iam se formando. E ele repetiu. “Sê quente ou frio porque se você ficar morno eu te vomitarei!” É tremendo ouvir isto. Fiéis, presumo, de presença restrita às festas marcantes do calendário eclesiástico apenas, são esses tais vomitados do sermão de Monsenhor.
A palavra conduz para a consciência o vestido todo sujo pela senhora que viajava ao meu lado. Seguiamos no ônibus que levava a Liga do Apostolado da Oração na comunidade da qual Tetê participava, a uma missa especial, ou a uma ordenação sacerdotal, o que acaba se tornando a mesma coisa, que haveria de acontecer na catedral de alguma cidade próxima. Estrada de muitas curvas, ela justificou após brear-me toda, respingando vômito também numas três ou quatro mulheres mais, dentre elas vovó. O que tornava a cena ainda mais patética e trágica era o fato de ter acontecido quando a viagem só começava e a condução lavatório nenhum tinha. A estrada cortava o lugar nenhum dos sertões brasileiros e, somente mais de duas horas depois, no que pareceu ter sido bem além do que a eternidade toda, vestido já seco, pude passar, com a ajuda de Tetê, um pano úmido na fétida roupa cheirando a azedo. E a tal senhora, provocadora de tudo e que menos se lambuzara, nem desculpas ou ajuda veio oferecer. Só dizia e repetia que eram as excessivas curvas da estrada.

O vestido era bonina, não me esquecerei nunca disso. Flores bem grandes, deviam ser dálias, estampadas nele. As dálias em tom mais escuro, dum violeta bem profundo. O vestido, que era o mais querido dentre as quase nenhumas roupas que eu tinha para vestir, ficou maculado eternamente pelo vômito da mulher,naquele passeio de ônibus daquele domingo em estrada de rodagem. Domingo que podia ter sido de tamanhas alegrias, tão bom.

Sempre gostei de escolher roupas, experimentar roupas, comprar roupas. Ganhar de presente apreciava menos. Só se fosse de alguém que sabia do que estava gostando naqueles dias. Alguém de aguçada sensibilidade que conseguisse identificar roupas especiais, diferentes, belas porque para serem usadas por alguém também diferente, especial e bela. Dulcinéia, Tetê e muito poucas outras pessoas conseguiam me presentear com peças que verdadeiramente iria amar, passando assim a compor meu guarda-roupa.

Abominadas são aquelas vestes feitas para a multidão, vendidas para elas. Roupas que nos igualam por baixo nos oprimem e reprimem. Os asquerosos uniformes. Mesmo quando, por não ter condições financeiras, tinha que me contentar com tais míseras produções industriais, havia sempre a saída criativa de inserir um detalhe que fizesse com que me diferenciasse da mesmice, que a todos enfeia e emburrece. Um só detalhe não, mais de um, em algumas ocasiões, vários deles. Rodrigo dizia que chegava a ser excessiva no modo de trajar, seja lá o que esta palavra possa ter de significado na cabeça dele. No armário o predomínio é o das tonalidades mais profundas, as mais escuras, aboninadas. Branco e todos os seus assemelhados não são bem quistos. Podem até estar por lá, mas apenas para que possam se mesclar com as colorações mais belas. Fosse uma terrorista, as primeiras bombas iriam ser lançadas nas lojas de departamento com suas infinitas araras de roupas sem viço, produção seriada no campeonato nacional da mediocridade.
 
MORRER
 
O primeiro caixão que vi era todo branco. Caixão de anjo. O filho da Silvana que havia morrido. O segundo foi do tio avô. Susto quando mais perto dele cheguei. O pano que o cobria - naquelas eras os caixões mais pobres eram cobertos por tecido - possuía a mesma estampagem da cortina que tinha diante do confessionário de Monsenhor. Diferença que havia é que era mais encorpado. Será que ainda existem os caixões de pano hoje em dia? Tranquilizei-me quando vi Monsenhor Juvenal chegando para encomendar o defunto. Dar-lhe, quem sabe, o carimbo final no passaporte para a eternidade.

Dos velórios gostava mais desses últimos momentos quando se chora mais forte e mais alto. Caia no pranto, junto com as mulheres, todas as vezes que ia a um com Tetê. A avó lá comparecia, sempre, mesmo que não conhecesse o falecido, para puxar as rezas, sabidas todas de cor. O terço recitado rápido e mecanicamente. Nunca entendi direito as palavras, apesar de que tantas vezes nos ouvidos elas entraram repetidas, mas rezava junto, da mesma forma que cantarolava as canções na língua outra, sem saber se os versos eram de paixão, de amizade apenas, ou quem sabe do mais agressivo ódio.

Fazia bem o ambiente carregado. Ficava impregnado e saturado de emoções fortes, esses sentimentos que ficam rondando os momentos da morte. A oração repetitiva recitada em forma de mantra, as vozes entrando na mesma nota e momento, sem que houvesse maestro para coibir algum pouco possível desafino. Tetê chorava também, mas de forma controlada. Um choro racional. Choro técnico, poderia muito bem nomeá-lo algum engenheiro. Havia as que choravam parecendo que também faleceriam naquele instante em que o caixão, pelos homens, estivesse fechado para que fosse levado o féretro. Tinha também o outro grupo de mulheres. As que possuíam o pranto mais contido. O tal choro técnico dos engenheiros. Desse grupo fazia parte Tetê e elas tinham, dentro da minha ótica e lógica infantil, a nobre e necessária tarefa de consolar o primeiro time. O daquelas que, caso não estivesse presente ali a equipe de Tetê, iriam também morrer, acompanhando aquele pranteado defunto até a última morada, quem sabe lançando-se sobre o caixão fechado já posto ao fundo da cova.

Os homens procediam de modo diferente das mulheres: todos eles chegavam, persignavam-se frente ao caixão, olhavam o corpo por no máximo um minuto, cumprimentavam as mulheres à volta e sumiam lá para dentro. Quando sentia necessidade de ir ao banheiro avistava que lá na cozinha bebiam e comiam. Na primeira vez em que ia me aliviar falavam baixo, na segunda, conversavam mais alto e riam. De madrugada - com Tetê eu ficava a noite inteira no velório e sono nenhum vinha - davam mesmo gargalhadas, falando bem alto, quase gritado, sem que houvesse neles a presença da menor censura. Tetê franzia o cenho e balançava negativamente a cabeça sempre que algum gargalhar mais despudorado invadia a sala onde se ia, varando a noite, naquele velar do destino fatal de todos.

Tempo da infância era este em que a morte acontecia mais próxima da gente. Era uma partida mais quente, mais viva. A de hoje é asséptica, fria e distante. É branca, acontece longe das residências e consequentemente dos familiares e amigos daquele ou daquela que daqui se foi. Fui me afastando dos velórios na medida em que passava a etapa da adolescência. Como gostava deles, como me sentia bem neles, de forma muito tranquila constato agora diante do pano bonina cobertor das imagens.

Adulta, somente duas mortes foram capazes de dilacerar os sentimentos já tão exacerbados no dia a dia da vida. A de Tetê foi uma delas. Tereza foi definhando, afinando até ter a aparência de que era totalmente seca. Sim, seca, apesar de ainda bem lúcida, viva. Era como se gota d´água alguma fizesse parte da sua composição corporal. A morte de vovó era mais que esperada ou anunciada. Difícil era a crença, contaram-me depois, de que ela, seca daquela forma, estava ainda no mundo dos viventes. Somente eu não aguardava, não via e ouvia o anúncio, não me preparava para o desenlace fatal. A sensação que veio, e já tinha vinte e dois anos, foi de terror. Estava totalmente só. Tetê tinha ido embora do mundo me deixando, mais uma vez, abandonada.

Não queria vê-la. Ódio por ter me abandonado, por ser novamente alguém que é deixada para trás. Tranquei-me no quarto e no auge do desespero chorei por três horas. Parei, mas o tremor, como se febre forte em mim houvesse e me consumisse, persistia. Por mais um tempo, do tamanho desse havido anterior ao pranto, praguejei. Todos os nomes possíveis e imagináveis. Repetidas vezes as imprecações e xingamentos. Dos mais aceitos socialmente até aqueles reservados às mais desclassificadas putas. Xinguei que xinguei. A tremura foi passando. A febre se indo embora e aí me deu grande sono. Dormi como se o mais forte sonífero me tivesse sido aplicado em dose cavalar. No despertar vim a saber que Tetê, fazia já razoável tempo, tinha partido para o seu descanso. Aí ela veio célere. Chegou como uma porrada no rosto a ultramelancolia. Sofri. Quis demais ir estar com ela. Tenho dessas vontades de partir. Arrependida profundamente de não ter ido vê-la dormindo no caixão. De ter que somente haver ouvido e não visto com os próprios olhos que ela se foi toda bela.

Dulcinéia foi a outra morte. Parecia que meu corpo tinha sido triturado numa daquelas máquinas, que dentro dos açougues moem as carnes. Mas isto não foi no imediato. Passaram-se algumas horas antes que viesse. Se na morte de Tetê, contra todas as evidências eu nada enxergava, na de Dulcinéia, para os outros nenhum aviso houve. Somente eu e talvez um ou outro, desses mais sensíveis e que captam melhor as emoções e sentimentos poderiam, dentro de algum sonho desvairado, imaginar que algo forte assim pudesse vir a acontecer. Para os normais, nem o mais sutil indício a sugerir que a morte a seguia, bem de perto, pelo caminho. Hoje vejo o quão evidentes eram o sinais. Captava-os e me negava a decodificá-los, mas que eram claríssimos, isto eram. Eu era cúmplice. Ela estava cansada do mundo, da existência, do trivial, do feijão com arroz, fatigada do “todo dia ela faz tudo sempre igual” que canta o poeta. Rodrigo, juntando os lados do bandoneon do amor, voltou quando Dulcinéia foi embora.

Quem primeiro reparou a tristeza contida nos meus olhos foi ela.
-Olhos de cavalo você tem. Grandes e escuros. Do tamanho da tristeza que lá dentro deles cabe. Ela dizia isto faz muito tempo. Ria dessas observações inusitadas da companheira, mas olhando-me no espelho sempre podia constatar que eram verdadeiras. Mesmo naqueles dias de maior alegria reinante, a tristeza constava patente no brilho e umidade do olhar. Os olhos de Dulcinéia também não eram alegres. Eram como os meus, tristes de dor sentida bem funda. Tristes de raízes de árvore velha sobrevivente solitária em campo de quase não haver chuva.

Estivesse aqui comigo agora na capela estaria chorando também. Não diria nada. Em silêncio ficaria totalmente unida a mim. Solidária nesse sentir forte dessa tarde, diante das imagens envolvidas no tecido de tom muito mais para bonina do que para o roxo. Aboninado o pano. Tinha quarenta anos quando resolveu ir embora. Com a consumação da partida houve a realização das profecias que ia semeando pela vasta trilha da nossa profunda amizade e que eu talvez até decifrasse, mas nem queria acreditar no que sentia que significavam. As brincadeiras com a dona morte, as palavras soltas, os atos falhos que de falhos não possuíam nada, o fastio, eram todos prenúncios dos seus mais inconscientes planos, ou já estariam posicionados nas esferas da consciência? Mais de uma vez me havia dito que queria morrer bonita. Na plenitude da beleza. Como argumentasse que conhecia senhoras bem idosas que haviam permanecido belas até a hora última das partidas belas, retrucava-me que algo lhe suspirava que não chegaria à terceira idade. Quando lhe falava das mulheres bastante velhas e bonitas invadia-me a mente a formosura de Tetê. Foi-se como desejava. No auge da maior beleza. Uma semana após termos comemorado, com tantos familiares e amigos, os seus quarenta anos.

Para Afonso falou que não iria ao trabalho junto com ele. Sairia uma hora mais tarde. Pegaria o metrô. Queria dar cabo em casa do relatório que teria que divulgar, na importante reunião da tarde no escritório, justificou. Zanzou pelo apartamento até que saíssem para a escola os filhos que àquela época adolesciam, Jorge Luis e Clarisse. Dar-lhes esses nomes, mesmo com a contrariedade de Afonso, foi a maior homenagem que podia ter feito aos dois escritores tão queridos porque tinham entendido sua alma. Os únicos a alcançar a façanha. A quarta sinfonia de Johannes Brahms, o maior dos românticos, executada no volume máximo da aparelhagem de som, enquanto ia acendendo pela casa o incenso com a essência que era a sua preferida: capim santo. Cerradas todas as janelas teve o cuidado de, sob as portas da sala e da cozinha do apartamento, colocar toalhas molhadas.

Mesmo assim vazava pelo corredor abafado do andar o odor característico do gás, o que fez com que o velho morador do apartamento vizinho, já incomodado que estava com toda certeza por causa da música tão alta naquela hora da manhã, veio depressa para saber o que estava ocorrendo. Como o cheiro do gás só aumentava e não havia ninguém que respondesse aos toques de campainha primeiro e depois aos murros na madeira da porta, chamou o porteiro e arrombaram a fechadura. Antes de ir à cozinha, ainda na sala, o idoso vizinho, o primeiro a entrar, como se já soubesse de tudo, com um leve toque desligou o aparelho de som. Hora que era esta de ser do respeitoso silêncio.

Na cozinha, deitada no chão e com a cabeça meio que enfiada até onde coube no forno, jazia Dulcinéia. Ela havia ido embora. Com o segundo e delicado toque o velho fechou a válvula do gás enquanto o moço da portaria rapidamente ia abrindo as janelas. Ajoelhado agora sobre o corpo o vizinho toma seu pulso. O coração fatigado das batalhas muitas dos quarenta anos da vida, já descansara. Dormia no peito inerte da amiga. Um único comentário ele fez com o empregado do condomínio. Falou-lhe do risco imenso que tinha havido duma grande explosão no prédio: deixar ligado o gás com incensos acesos pela casa toda.

Ao contrário de Tetê, do passamento de Dulcinéia participara de tudo. Fui das primeiras a saber do ocorrido. Antes até de Afonso que visitava clientes e tinha o celular desligado. Lícia, moradora do prédio e conhecida da academia, não consigo até hoje atinar o porquê, tinha meu número. Ligou de imediato, quem sabe seria por não saber para quem deveria fazê-lo, já que a força tarefa de moradores, a esta hora formada, escapava como o diabo foge das igrejas, da idéia de contactar o colégio e passar a notícia para JL, como era chamado pela família, e para Clarisse.

Morava mais ou menos perto. Para ser exata, seis quadras de distância, quatro das grandes e duas daquelas menores. Lícia falou em acidente com Dulcinéia e que viesse logo porque não estava conseguindo contato com Afonso. Não pensei na morte ao ouvir o chamado. Nem depois de ter desligado o telefone. Desde que éramos amigas, por duas vezes ela fraturara ossos. Perna ou braço quebrado em alguma faina doméstica ou num escorregão no banho, foi o que primeiro pensei. E também que devia se cuidar mais daí por diante para que fossem evitados esses tipos de acidentes que além de tão dolorosos, são transtornos garantidos para muitos dias. Já no carro, acionando o controle remoto do portão da garagem veio de supetão a verdade. Dulcinéia era morta. Temi pela reação que adviria, a partir daí, deste conhecimento e da necessidade de ter que ir dirigindo, mesmo considerando serem apenas seis quarteirões a serem percorridos, quatro grandes e dois daqueles menores, rememorei. Não carecia, mantive calma absoluta. Peguei-me até sorrindo. Tive então consciência de que para além dos limites possíveis da dor existe a paz.

O grupo reunido no hall do prédio, antevisto ao passar diante dele na busca de vaga para estacionar, era a confirmação que não necessitava receber dados para o que já era mais que sabido. Antes que tivesse tido tempo de apertar o botão para chamar o porteiro, ouvi o clic do portão sendo aberto. Empurrei-o com mais força que precisava e subi os quatros degraus, célere. Tive a impressão nítida de que me esperavam e de que me observavam silenciando à minha aproximação. Fui em frente. Chegando diante do elevador vi que Lícia, presença óbvia no grupo do hall, vinha ao lado. Cumprimento um tanto constrangido, um oi chocho e que não foi por mim respondido. Subimos juntas, silenciosas, os oito andares que pareceram estar a léguas de altura, tamanha foi a sensação de demora que aqueles ínfimos segundos causaram. Cheiro de gás já não havia. A porta de Dulcinéia toda aberta. Reparou a toalha roxa empurrada pela porta e massagada contra a parede. O velho vizinho zelava sentado na sala lendo o encarte do CD da quarta de Brahms.

-Tocava esta música clássica bem alto quando conseguimos entrar aqui. Disse mostrando a caixa do disco. Enquanto me relatava tal fato, assentia com a cabeça achando na maior tranquilidade o que considerava digno de nota, que ninguém me tivesse contado que Dulcinéia havia morrido. Não segui pelo corredor que daria nos quartos dos filhos, na suíte do casal e no banheiro social da casa. O coração determinava que eu atravessasse a copa e fosse na direção da cozinha. O vizinho tentava seguir-me. Dulcinéia estava lá. Deitada na mesma posição incômoda em que fora encontrada nem trinta minutos haviam se passado. Fiz menção de deitar no chão frio sua cabeça, mas fui impedida pela voz do velho.

-Não devemos tocar no cadáver, senhora. Apenas eu executei este procedimento na verificação do pulso, para confirmar que tivesse mesmo falecido a Dona Dulcinéia. Já acionamos a polícia e estamos no aguardo da chegada dela com seus peritos.

Nem raiva senti daquele homem com discurso parecendo decorado de filme policial americano de terceira categoria. O que veio foi a indiferença. Os olhos grandes e tristes, olhos de cavalo conforme Dulcinéia, pousaram nele e os trespassaram como se ali não houvesse ninguém.

Da bolsa tirei o celular e liguei para o primeiro nome da agenda. Tinha colocado - Dulcinéia foi quem me ensinara - um “a” diante do nome de Rodrigo, fazendo-o estar no início da listagem. Arodrigo tinha registrado. Estou no apartamento de Dulcinéia e ela precisa de você aqui. Disse isto e desliguei. Àquela época o bandoneon do amor estava arreganhado. Braços bem compridos e dedos longos seriam necessários para conseguir tocá-lo produzindo nele a música. É assim que descrevo o matrimônio. O bandoneon para que haja música vai sendo aberto e fechado por nós, seus intérpretes. Quando as coisas correm bem os foles estão cerrrados, vamos abraçados. Bandoneon aberto tem o significado de relação distante e ruim, tédio total. Tempos até de continuar vivendo na mesma casa, mas sem definitivamente estar nem um pouco de verdade juntos. Nestes espaços de bandoneon assim vem a nostalgia daqueles tempos em que vigia no amor o bandoneon do feliz casal, ou seja, o instrumento musical com as bandas unidas e na vivência de saboroso clima de idílio, de paixão.

Como é complexa a natureza humana, reflito. Tempos de bandoneon fechado e eu a desejar que se abra, nas ânsias pela liberdade; épocas de bandoneon aberto e eu a desejar que se junte, saudades da liberdade pequenina de estar sob braços protetores. Qual é o meu estilo de amor? Sinto raiva pela gangorra, por esse bandoneon louco em que vivo e lá se vão mais de dezessete anos de casados, completados em onze de maio, rememoro. Preciso criar um padrão coerente de amor. E por algum acaso existe isto? Balanço vigorosa e negativamente a cabeça ao me dar conta da razão tão racional quanto idiota, que soara imediatamente tão absurda. A expressão que cunhara instantes atrás - padrão coerente de amor - jamais ocorreu.

Em Buenos Aires, com Rodrigo e curtindo o tango gostoso do Caminito, foi onde vi ser o meu jeito de paixão semelhante àquele instrumento que deixava ainda mais completo o clima de nostalgia e de mistério desse ritmo. O bandoneon atual está no meio. Nem totalmente aberto na indiferença do deixa para lá, do foda-se mesmo, nem colado assim posicionado na mais desvairada ladeira da paixão. Desligado o telefone, permaneci de pé, celular na mão, o olhar fixo na parede de azulejos feitos dum azul violáceo, vistos além do idoso que se mantinha imóvel à minha frente e como se tivesse esquecido de que, aos meus pés, jazia fria Dulcinéia. O pequeno aparelho telefônico vibrava na mão direita. Rodrigo, surpreso, além de não ter entendido o chamado para que viesse até a casa de Dulcinéia estando o bandoneon meio frouxo. Menos ainda conseguira captar algum sentido ao escutar que Dulcinéia necessitava urgente dele.

Chegou assustado por ter se deparado, já à porta do prédio, com o trágico sucedido no apartamento do oitavo andar. Relatou-me de chofre o que disseram à sua passagem pelo hall e logo viu o quanto estava sendo bobo, eis que nada disso importava. Dulcinéia estava morta aos nossos pés. Ele, de pronto, a ajudou.

-Às favas a polícia. Foi até a sala e apanhou a almofada bonina sobre a qual estivera sentado o vizinho. Pousou então, delicadamente, sua cabeça nela. Dulcinéia dormia bela como nunca ousara ter sido algum dia em vida. Seus lábios pareciam querer sorrir. A pele ficara ainda mais branca deixando que me apercebesse da geografia feita nos seus braços, pelos rios das finas veias arroxeadas, nas quais nada mais corria.
 
RESSUSCITAR
 
Aquele gesto de cuidado e carinho com a amiga morta, foi como se um aparelho elétrico com poder imenso tivesse imantado o meu lado do bandoneon. Foi como se um tremendo puxão deixasse colados, mais uma vez, as duas bandas do aparelho musical do meu imenso amor por Rodrigo. Senti uma ternura tremenda e abracei meu amado com toda força de que era capaz. Beijei sua boca o mais longamente e forte que fosse plausível de acontecer a uma mulher loucamente apaixonada. Esquecida que estava de tudo e todos. Só havia Rodrigo e à frente, estarrecido, o velho assistia boquiaberto à inusitada cena tomado de horror, considerando-me, com certeza, mórbida. Dulcinéia teria dado aprovação se houvesse dado vazão aos meus desejos amando Rodrigo ali mesmo diante dela.

Olho ao lado e não vejo a senhora que rezava o terço. Dou-me conta então de que faz muito que não mais ouvira o chamar dos gatos nos sons escapulindo entre a língua e as metades da dentadura frouxa. Sinto que não estou só. Torno o rosto e vejo que no fundo da capela há uma velha e uma criança. Lembro, mais uma vez, de Tetê, mas a velha nem magra é e a criança é loura, numa falta de cor que raia no quase-quase de que pudesse ter sido albina. Sol no céu já não há mais. A rua, que antes era vista até lá longe no seu início e chegada da cidade, perde-se em sombras, já pela terceira ou quarta casa no bem próximo da capela.

Volto o olhar aos panos roxos - não, já sei, eu sempre soube, eles são muito mais do que roxos: tecidos boninas que se mantêm todos na proteção desses habitantes celestiais, santos e anjos, que deslocados nessa terra que já não é mais sua morada, necessitam ficar protegidos dos olhares indignos e indiscretos dos mortais, que, como bem dizia Tereza, neste vale de lágrimas seguem caminhando.

Quisera demais ter tido filhos. Pelo menos que houvesse acontecido um no meu ventre. Não no início do casamento. Aí, não desejava. Este era um tempo de se curtir a existência, de realizar-me profissionalmente. A maternidade só viria atrapalhar o bem viver que tínhamos com muitos detalhes planejado. Quando veio a ânsia de ter crianças o maldito tumor já havia feito o estrago. Tinham-me extirpado a fonte. A adoção, nem o simples cogitar nela, era admitido por Rodrigo. Agora, já chegando aos cinquenta anos, este querer maternal dormia fazia bom tempo. Auspiciosos sonhos o mantivesse daquele jeito. Com prazer grande velava este sono. Tive raiva, tive muita inveja das mulheres mães. Invejei Dulcinéia. Ali, diante dos santos todos cobertos pelos casulos boninas, confesso de peito aberto o meu pecado.

Eu pecadora me confesso a Deus, através do seu filho, neste sacrário preso em forma de pão, que tive inveja de Dulcinéia. Que tive inveja de muitas outras mulheres. De todas, independente de onde morassem, se fossem chinesas ou americanas, cariocas ou capixabas, maranhenses ou gaúchas. Bastasse que tivessem tido filhos, que houvessem cumprido o instinto maternal para que ela chegasse. Vinha a cavalo, elegante, castanho, suado, com longas crinas e negros grandes olhos tristes. Ela chegava, cavalgando rápido. A inveja.

Não era dos ricos, dos apadrinhados pela sorte que me assaltava o sentimento da cor do pano que à frente esconde as imagens. Não, a inveja vem muito mais no sentido do ser. Ser mãe, ser feliz, ser alegre, ser o que não sou nem nunca virei a ser. Percebo o absurdo do sentimento, mas tenho consciência também da sua força. Sei que ele me fascina e abraça como se me convidasse a valsar num baile de máscaras.

O choro volta agora bem forte. Desde que adentrei o templo ele veio e foi-se embora várias vezes. Se acaso me perguntarem em quais tempos ali não estivera em prantos, não saberia responder. A certeza que tinha e que a cada instante era mais corroborada pelos sentimentos, era a de que a Semana Santa chuvosa junto ao marido de péssimo humor àqueles dias, estava mais do que realizada. Estava bem paga, tinha valido a pena o programa. Totalmente recompensada pelo tempo em que na igrejinha desconhecida e vazia ia passando a limpo este balaio de coisas que tinha vivido. Mais que vivido, vou refletindo, que havia sobrevivido.

Recordo o balaio trançado que adquiri daquele casal parecendo ser de origem indígena ainda na estrada. Expostos tais quais frutos pendurados em mangueiras à beira da rodovia. Imensas cestas esverdeadas da taquara que ainda não secara. Rodrigo não queria parar o carro. Insisti até bem mais do que seria razoável, considerando já estar ele atacado àquela hora pelos vírus da impaciência e chatice. Parou. Ao abrir o carro eu ia prelibando o prazer de imaginar a composição estética que já planejava, com o balaio que havia escolhido nas galharias das árvores. Rodrigo não desceu, permanecendo com o motor do automóvel em movimento e o blues tocando no aparelho de CD. Voltei feliz para o automóvel carregando de forma desajeitada o grande cesto de fibras ainda verdes. Rodrigo grunhiu algo que me pareceu ter a tradução de que se continuasse a temporada das compras de objetos de decoração, teriam que adquirir também um reboque para que pudessem carregar tudo na volta para casa. Fingi que não ouvi. Melhor assim.

Gostava de decorar a casa. Sentia muito prazer nisso e havia a consciência de que para este mister eu tinha muito talento. Criava cenários diferentes e intimistas e neles, ouvindo música de fossa, permanecia em silêncio degustando com bastante vagar a taça de vinho, envolta na diáfana fumaça dos incensos postos com todo cuidado e delicadeza, naqueles pontos definidos quando da montagem do novo espaço criado, para ali poder ficar bem sozinha. Nestas horas deixava acionada a tecla “repeat” na música, também cuidadosamente escolhida do dia e enrodilhada nos sentimentos que evocava, deixava chegar de forma sutil e mais que delicada a doce melancolia que só aqueles seres mais sensíveis e com a devida sofisticação sabem perceber – e, mais do que perceber, têm a ousadia de liberar-se para que ela os envolva total e plenamente até a alma. E as lágrimas vêm logo em seguida e tomam conta de mim parecendo querer provocar desidratação caso estivesse faltando na mão a taça de cristal da Boêmia do bom vinho. Há pessoas até que tomam do vinho em copos comuns. Pior ainda, há os que de tão brutos chegam ao sacrilégio de sorvê-lo em copos desses de requeijão ou massa de tomate, ou mesmo, infinita heresia, algo que não pode ser nunca passível de algum perdão, em copos descartáveis de plástico.

Antes eu tinha raiva desses tão rudes representantes da humanidade. Hoje, mais curada, mais madura, o sentimento é outro, tenho dó, muita pena. Miro a imagem maior coberta do tecido bonina e na presunção de que seja de Jesus Cristo, digo à meia voz: “Perdoai-lhes Senhor, Eles não sabem o que fazem”. O rapaz sentado na outra ponta do banco e de que da sua chegada não havia me apercebido, olhava curioso. Nossos olhos se cruzaram e ele fez a pergunta: -Dona, o que foi mesmo que a senhora me disse?

Vem a vergonha. -Nada não, estou só rezando, respondo sorrindo sem graça. A vergonha é algo que costumo sentir. Tenho intimidades com ela. Vergonha de achar que não vou alcançar os objetivos, vergonha de me achar menos dotada, de não ter capacidades como as pessoas do meu círculo de amizades, vergonha de Feliciano ter ido embora me deixando ainda no berço, vergonha da mãe doente, vergonha de ter nascido assim. Vergonha também de ter deixado escapar frases em voz alta quando queria dizê-las somente no mais íntimo do meu ser, da boca diretamente para o ouvido e dele numa ligação direta para o coração sem deixar que houvesse tempo para alguma contaminação da razão que ficava residindo, longe, lá dentro do cérebro.

O rapaz levantou-se. Foi até a pilastra do lado direito do altar. Atrás dela só pode estar o interruptor porque a um seu gesto as luzes da capela se fizeram. Foram acesas ficando tudo muito mais claro. Preferia o lusco fusco de até há pouco. A porta do sacrário também tem um pano roxo. Este é roxo mesmo, legítimo. Com certeza teria ficado mais bonito se fosse também do bonina do tecido das imagens.

Aumenta pouco a pouco o movimento. Gente que entra, ajoelha-se por uns parcos minutos e retorna para a vida lá de fora. Muito poucos são aqueles que vêm e permanecem na igreja. Esses que ficam são os sensíveis, os profundos, os diferentes e que, em sendo diferentes, assemelham-se tanto comigo. Vergonha e orgulho de ser distinta, original. Sou sim, e daí, tenho vontade de dizer a Ivan quando com os outros colegas da divisão ele começa a mangar de mim. Diz que Lavínia é diferente, metida e de que para ela tudo funciona com palavras difíceis e rebuscadas: as coisas comuns viram triviais: não fica triste, tem melancolia; não faz pic-nic, curte convescote; não assiste futebol, vê ludopédio; não trabalha, labuta; não fica pensativa, mas torna-se sorumbática, ensimesmada. E riem então às barulhentas gargalhadas. Sorrio também e chego, não nego, até a achar graça nuns momentos, mas noutros tenho incômodos e desconfortos com a brincadeira. Tudo bem que goste de vestir as frases com palavras nem tão usuais ao povo comum, mas ludopédio e convescote jamais saíram ou virão a serem ditos algum dia pelos meus lábios. Não também que desgoste de dar minhas gargalhadas. Sim, gosto e era mais que plausível e factível que tal expansão de alegria ocorra, mas urge que faça parte de um todo maior. Não pode nunca estar solta e desapegada do sistema todo. Enfim, a explosão da gargalhada tem que estar inserida no contexto. Como me conhecem pouco. Como são insensíveis para perceber-me mais.

Dentro do seu devido contexto tudo pode. Nada é proibido. Ter a alegria do Brasil de carnaval, futebol e praia e a tristeza mais que profunda duma Argentina, de Gardel, Evita e do tango. Verdade seja dita. Que venha primeiro a Argentina. Seu melancólico e dramático jeito de ser é mais bem vindo do que esse modo bonachão e despreocupado, de quem está sempre na superfície, do Brasil.

Misturadas no grande balaio em que se transmutara o cérebro, as saudades de Tetê e de Rodrigo vibram com força no peito. Queria muito Tereza aqui junto de mim. Sandice estar ansiando por isto. Tetê, mais que nunca, mais que ninguém, está sentada aqui no banco, ao meu lado, aguardando o início da cerimônia que em alguma hora terá início no altar. Sussurro abrindo a mão esquerda, o lado de Tetê, e procurando sentir nela os dedos magros e secos que tanto afeto e segurança me traziam.

Saudades mais vivas ainda de Rodrigo, como se fizesse anos (o mesmo número de tempos de ausência na vida de Tetê) que não o visse, admirasse, tocasse. Vem o receio, chega o medo, toma conta o pavor de que ele não viria me buscar. Faz escuro, já se passaram umas quatro horas e ele não chega. Certeza de que foi embora. Irritação, raiva, ira, ódio mortal vão num crescendo como os cantos das cigarras.

-Vovó, o que fizeram com os santos? Por que estão todos cobertos com este pano vermelho?
-Vermelho não, minha filha, bonina.
Aquele tempo em que entrei na capela parece tão distante. 
-É porque estamos na quaresma, Lavínia, o tempo de quarenta dias em que devemos fazer penitência e nos purificar para aguardarmos a paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por causa disto, em sinal de respeito e de luto porque ele irá morrer pelos nossos pecados, as imagens presentes em todas as igrejas são cobertas por tecido roxo ou algumas poucas vezes, como nesta aqui, em panos de tons parecidos como é este lindo bonina.

O choro volta forte e traz soluços agora. Lá fora a chuva vem também com vontade. Saudades de Tetê, muita, imensa, total. Duas mãos espalmadas seguram meus ombros. Conheço este toque. Saudades de Rodrigo. Total, imensa, muita. Viro-me e ele está sorrindo. Levanto-me num pulo e chorando permaneço envolta nos seus braços fortes.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 18/05/2010
Alterado em 11/02/2016
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