Três tipos de gente. A escalada
Olhos fechados, imóvel no silêncio da rangedora cadeira de balanço, o corpo quase escondido pelo grosso cobertor azul que teimava em ir se escorregando pelas pernas rumo ao chão. O movimento quase imperceptível dos dedos deixando também escorregar entre eles as contas do terço, era a prova de que não adormecera.
Os meninos sabiam que a hora estava bem perto. Escurecia e ele era definitivo nessas coisas: Quem conta história de dia cria rabo feito cotia Não que de imediato, após a reza do terço, Ly Tsu estivesse disponível para o programa tão esperado. Carecia ainda de rezar a ladainha de Nossa Senhora para dar por encerrada a oração vespertina, nesses tempos em que, já impotente para caminhar, tinha as devoções todas feitas em casa. Desde a missa participada diariamente pela TV, passando pelas devoções marianas, até a comunhão trazida todo domingo pelo seu Antônio.
Tem as pálpebras pesadas, cansadas de carregar tudo que já fora registrado pela visão. Abre devagar os olhos sabendo que, em questão de segundos, após ouvirem esse primeiro ranger da cadeira, todos estarão a postos à sua volta, atentos para não perderem uma palavra que seja da história. Ao longe, ainda se percebe a silhueta da montanha e é olhando para ela, no lusco fusco de claridade que insiste em permanecer acesa, que o velho rememora a narrativa eis que eles já chegarão, ávidos, com fome e sede das palavras mágicas que os transportarão para paisagens exóticas e distantes.
Ficarão surpresos, é o que diz para si mesmo, num discreto sorriso matreiro. A história de hoje não vai levá-los para longe. É importante que ela, ao invés de fazê-los sair, os faça voltar-se para dentro do coração. É lá no interior de cada um que a história faz sentido.
Todos sentados formam um meio círculo à sua frente. Ly Tsu começa, nesse dia sem o tradicional ‘era uma vez’, pois era importante que todos sentissem desde agora que a história era de outro tipo. Bastante diferente de todas que lhes tinha narrado. Mira com força os contornos da montanha e vem-lhe à memória a lembrança daquela noite, ainda na sua terra, lá do outro lado do mundo, em Pequim, tempo em que ainda era forte e jovem e que, convidado pelo sacerdote que o preparava para o batismo, foi com ele a uma conferencia de um tal Padre Chardin. O Padre, para falar sobre a felicidade, contara, e isto o marcou profundamente, sobre um passeio numa montanha e era esta a hora de falar aos meninos sobre ela...
“Um grupo de jovens tomou a decisão de fazer uma expedição até o cume da montanha que compunha o horizonte da cidade onde moravam. A semana toda havia sido pequena para a faina dos preparativos para que no domingo, junto ao cantar do primeiro galo, eles já estivessem prontos para o passo inicial na trilha que os levaria ao sopé da serra a ser escalada. Saíram todos animados. Iam cantando muitos cantos. Desses que se vão completando as frases do tipo ‘a árvore da montanha oiê iaô’. Passada a temporada das músicas, contaram piadas, recordaram histórias vividas em comum, riram muito dos casos que cada um ia lembrando, até que teve início a subida.
Aí, devagarzinho, o silêncio foi se fazendo, pois que as ações de vencer o morro e de conversar, pouco combinavam. Já havia sol e a subida fazia com que, pouco a pouco, alguns do grupo ficassem para trás. Os líderes, aqueles que iam adiante puxando a fila e dando ritmo a ela, logo repararam que havia gente retardatária. Numa curva do caminho encontraram uma bela e frondosa arvore e foi ali, na sua sombra, que resolveram parar para esperar a chegada dos atrasados.
Arrastando os pés, eles chegavam extenuados. Falando aos borbotões, tinham uma sugestão a fazer: que fizessem dali o destino final do passeio. Que se acomodassem e lanchassem porque não viam como necessário subir mais, eis que dali onde estavam, já se avistava a cidade. Para que então seria preciso ir mais alto se tinham uma vista ampla e interessante da região?
Sem dar ouvidos às sugestões e mesmo às queixas de cansaço que se seguiram e concluindo que da meta de caminhar até o topo nada seria capaz de demovê-los, eis que retomam a caminhada, despedindo-se daqueles que já consideravam como cumprida a escalada e que rápido, agora pois que desciam, desapareciam na curva da estrada.
Continua a subida, o sol bate forte e as camisas empapadas de suor. Estão bem alto tendo atingido mais da metade da trilha que os leva até o objetivo. Descortina-se uma vista muito bonita, as cidades em volta e, bem pequeno, aquele que até a pouco era o imenso lago onde costumavam nadar. O grupo pára novamente, alguns ficaram para trás. Hora então de descansar, beber água, comer umas frutas e recompor as forças para o tiro final rumo ao cume. E é aí que se faz ouvir a voz de uma parte daquele time de amigos. Uns deles que até a pouco estavam convictos de que iriam até o fim, agora sugerem que não valeria a pena cansar-se mais ainda. - Para que subir mais se a vista daqui é tão bela? Se daqui já se avista tanta coisa bonita? Vamos estender o forro sobre aquela pedra lisa. Hora de lancharmos, tocarmos um pouco de violão e voltarmos para as nossas casas. Besteira ir mais à frente. E o grupo ficou menor. Esses arrancharam por ali mesmo, comiam, bebiam e muitos metros acima, aqueles que seguiram adiante eram ainda capazes de ouvir a musica que tocavam nos seus pandeiros e violões antes que fossem de volta pra casa.
O sol alto queima muito. A vegetação praticamente acabara, as pedras ou são muito lisas causando inevitáveis escorregões, ou estão soltas trazendo a perda do equilíbrio e os tropeções. Resfolegando, as mãos feridas sendo usadas como apoio, o sangue dos joelhos misturado à poeira, lá se foram aqueles poucos que continuam a escalada. Podem já ver próximo o cume da montanha. Acima deles só o azul mais belo do céu, pois que as nuvens todas, quem sabe devido à audácia daqueles jovens, tinham se afastado como se eles merecessem esta homenagem do límpido céu. Lá no topo eles se revezavam no alto da pedra mais alta que parecia apontar para o infinito. Estão ainda ofegantes. Esgotados, as suas pernas doem e os pés, de tão inchados, parecem não caber mais nos tênis. Mas muito mais que fatigados pela íngreme aventura, eles estão felizes. Atingiram o cume. Superaram o cansaço e as dificuldades. “Conquistaram o grande objetivo e agora eles o sabem: têm competência para irem muito além, muito mais alto.”
Três tipos de felicidade, minhas crianças. A primeira é a felicidade dos cansados e pessimistas, dos que se negam a enfrentar os desafios e se contentam com o quase nada se sentindo felizes assim. A segunda é a felicidade dos hedonistas. Os que querem somente gozar a vida. Para que subir mais se daqui já se tem uma bela vista? Paremos e aproveitemos. Contentam-se com um pouco mais, mas não querem grandes conquistas, basta-lhes o prazer fácil. Vivem para serem vagões apenas. E esses, os terceiros, os ardentes. Os que lideram que se superam e que chegam ao alto da montanha. Os que vão à frente enfrentando as correntezas e as tempestades. São os que vivem a felicidade da conquista, da completude. Aqueles que têm ordenados os afetos e que se sabem senhores das suas vidas. “Os que seguem o ideal maior, sabendo que este está posto em Deus.”
Os olhos de Ly Tsu, que miravam durante a narração na direção da montanha que pela escuridão da noite já não pode ser vista, voltam-se de supetão para os netos e enxergam, no fundo dos olhos brilhantes do molhado da emoção pelo que ouviram, a certeza de que poderia em breve descansar em paz, pois que eles buscariam o topo da montanha. Sempre mais. Sempre Magis.
Reflexões a partir da conferência “Sobre a felicidade” de Teilhard de Chardin. Pequim/1943
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 30/05/2010
Alterado em 08/12/2011