Liberdade interior e Amor - Uma chave de leitura para a compreensão das Regras para sentir com a Igreja de Inácio de Loyola
Refletir sobre as Regras para sentir na Igreja (EE 352–370), como está registrado no texto autógrafo dos Exercícios, é voltar àquele mundo do final da Idade Média e começo do Renascimento no qual viveu Inácio de Loyola, mundo este que é muito diferente desse no qual estamos aqui hoje no início de Século XXI.
Inácio possuía uma percepção muito fina da alma e do comportamento dos homens e foi a partir do exame dos problemas que incomodavam e eram até causa de pecados para os cristãos daqueles tempos, que ele escreveu as Regras para sentir com a Igreja. Não existe então dúvida de que as Regras são datadas, mas cabe aqui uma pergunta. Considerando que elas tenham sido redigidas num mundo de realidades bem distantes das nossas, elas não devem mais ser por nós, gente inaciana serem consideradas?
A resposta é rápida e bem simples. Elas têm que ser levadas em consideração, pois que os sintomas dos problemas mudaram, mas nós, os homens, somos os mesmos e sem dúvida que os fatores geradores dos problemas, a raiz profunda deles e que fizeram com que o Santo escrevesse as Regras, continuam aí presentes no meio de nós. Nada mais são essas causas fundamentais do que as afeições desordenadas que nos afastam do serviço e do amor de Deus e que para ordená-las, conforme nos diz a Primeira Anotação dos Exercícios Espirituais eles foram feitos.
Considerando-as então hoje na vida diária, caberá a cada um de nós, membro da Comunidade de Vida Cristã - CVX neste tempo do Pontificado de Bento XVI, a reflexão para que possam ser trazidas à luz dos nossos exames de consciência, quais são para a minha situação específica e também para a de toda a Igreja atual, o que foram para Inácio de Loyola e seus companheiros aqueles fatores que o fizeram deixar registradas as Regras, ou seja: os alumbrados, as confusões causadas pelas idéias de Erasmo, as condutas reprováveis de gente do clero e também do povo e as questões da Reforma de Martinho Lutero.
As Regras são, portanto, necessárias à nossa espiritualidade e devem ser relidas e revistas à luz da problemática atual e vejamos que nos dias de hoje condutas reprováveis de sacerdotes continuam a gerar sofrimento e a ferir a Mãe Igreja. Ao fazer a releitura das Regras veremos que algumas delas nem têm a precisão de atualização, pois que transcendem ao tempo em que foram feitas e continuam atualíssimas e devem estar sendo por nós observadas como “membros da Igreja que trabalhamos juntos com a Hierarquia e outros líderes eclesiais”, conforme nos diz o Princípio Geral número 6.
O tamanho hoje da humanidade é incomparavelmente muito maior hoje. Vivemos uma sociedade cada dia mais global e as comunicações fazem com que vivamos os fatos imediatamente, mesmo aqueles mais distantes. Vivemos unidos a tudo e a todos na chamada “Aldeia Global”. Esta comunicação muito ampla faz com que os problemas se ampliem muito mais hoje do que nos tempos de Inácio no Século XVI. Temos hoje em dia, por causa disto, problemas muito maiores considerando a sua dimensão e diversidade. Apreciando com os olhos de 2010 esse distante mundo do Santo, temos a sensação de que aqueles vividos por lá eram problemas menores, sendo, portanto de muito mais simples solução do que são os nossos de hoje em dia que tanto nos afligem. Não é válido este tipo de comparação, pois que temos atualmente, em contrapartida, muito maiores e melhores ferramentas e mais vastos conhecimentos do que aquele povo ainda bem medieval possuía. Ao contrário daqueles dias, vivemos hoje situações impensadas para aquela gente como: o pluralismo cultural, a crise de credibilidade das instituições, a velocidade vertiginosa das mudanças a cada dia mais profundas e impactantes, as questões de alta complexidade ligadas ao avanço da biogenética, na Igreja a convivência das mais diversas eclesiologias gerando tensão da periferia para o centro, as questões angustiantes ligadas à família e por aí vai...
O fato é que vivemos em um planeta que nos é causador de constante perplexidade, dúvida e stress. Com toda certeza em dose muito maior do que aquela existente no mundo no qual os nossos irmãos, contemporâneos de Inácio, estavam inseridos. Por isto, podemos considerar que é ainda mais necessário hoje do que o foi naqueles tempos dos primórdios da Companhia de Jesus e da Congregação Mariana, a nossa atenção com o Sentir com a Igreja. .
Ao nosso jeito de ser de homens e mulheres da pós modernidade, a primeira aproximação às Regras para o sentir com a Igreja não costuma, como bem diz a propaganda de cerveja, nos “descer redondo”. A assimilação tende a ser lenta e gradual. Principalmente, e este é o nosso caso, quando as estamos vendo fora do Retiro (mesmo que ele esteja se dando na vida diária) dos Exercícios Espirituais.
As Regras para sentir com a Igreja estão colocadas dentro do livrinho de Exercícios e é dentro deles que fazem para nós todo sentido. Para isto temos que reparar em que local dentro do livro dos Exercícios elas foram inscritas pelo Santo. Lá as Regras estão guardadas exatamente no final dele e isto não pode ser visto como algo fortuito e sem um sentido maior. Estar dentro do livrinho e, ainda mais, estar no final dele tem um sentido claro e que deverá ser levado em consideração. Estar ao final dos Exercícios pressupõe que as Regras para sentir com a Igreja não são para qualquer cristão que passe pela porta dum templo e aí as apanhe ou receba sem maiores explicações, da mesma maneira com que se benze na pia de água benta ali disponível. O sujeito apto a entendê-las e vivê-las é determinado pela vivência fundante dos Exercícios Espirituais. .
As Regras são um final de etapa, colocadas sabiamente por Inácio para serem dadas somente depois que o retirante tenha passado pelo longo caminho dos Exercícios. Elas somente não causarão choque como a gota de água que bate na pedra e farão todo sentido e serão por nós recepcionadas, como a mesma gota que agora cai na esponja, para aqueles que tenham experimentado a estrada dos Exercícios Espirituais.
Para se bem entender as Regras, e mais que entender, pois que como tudo em Inácio, elas foram feitas não apenas para a inteligência mas para todos os nossos sentidos, há que se ter vivido o Princípio e Fundamento; ter-se optado pelo Rei Eterno e, sob sua bandeira, ter combatido o inimigo; tem também que haver passado pelas três peneiras dentro das quais vão ficando os tipos de homens; ter considerado a vida a partir dos três graus de humildade; até que enfim, tenha vivido a Contemplação para alcançar amor.
Eis aí os destinatários para os quais Inácio escreveu as Regras para sentir com a Igreja. Elas foram feitas e devem ser seguidas por todo aquele que tenha completado o itinerário dos Exercícios Espirituais. Somente depois de termos passado pela experiência de profunda liberdade interior dos Exercícios, estaremos prontos a entender, sentir e obedecer à nossa querida mãe, a Santa Igreja hierárquica. E quando Inácio fala em Igreja hierárquica, ao contrario do que muitos podem pensar, ele não nos quer falar apenas da hierarquia da Igreja. Para Inácio, Igreja hierárquica somos nós todos,o povo de Deus em marcha para o Pai.
Toda a vida de Inácio é um testemunho fiel e eloqüente do seu amor à Igreja. Mesmo em momentos extremamente difíceis o Santo não falta a este amor e respeito. Mas há que se tomar cuidados quanto a este ponto porque para Inácio o sentir com a Igreja nunca teve o sinônimo de se ser subserviente. Sentir com a Igreja para ele pressupõe espírito crítico, fé madura. Tem que fazer-nos estar atentos a tudo que acontece na mãe Igreja e que não é coisa do bom espírito. Da mesma maneira que as Regras precisam ser revistas para sua adequação aos problemas atuais, também o devem ser na questão do cuidado com a evolução semântica dos termos nela existentes, “pois que a expressão ‘sentir com a Igreja’ passou a ser para muitos uma submissão mecânica e total diante da autoridade eclesiástica, especialmente do Sumo Pontífice. Esta releitura superficial e redutora (...) acabou forjando uma caricatura simplista da sensibilidade eclesial de Inácio e de sua concepção de obediência, atribuída por fim a toda a Companhia de Jesus”. Como bem nos lembra o Padre França Miranda sj, em artigo sobre o tema na Revista Itaici número 13.
Lembremo-nos sempre que Inácio questionava, buscava convencer, procurava aliados, todas as vezes que na vida teve a convicção clara de que havia a necessidade de defender aquilo em que acreditava, principalmente se aí estivessem envolvidas as coisas dos Exercícios Espirituais e da Companhia de Jesus.
À tremenda liberdade interior que possuía – e que nos legou a todos que seguimos a espiritualidade dos Exercícios – Inácio trazia aliada uma quantidade imensa de amor à Igreja. Igreja que não era nenhuma entidade etérea e idealizada, mas povo de Deus em peregrinação, inserida num mundo real de muitos problemas e desmandos, como também de muita santidade. A mãe Igreja de Inácio é santa e também é pecadora, como a nossa mãe Igreja de hoje.
Não é porque a nossa mãe não é uma miss, é idosa, tem rugas, não age como gostaríamos que agisse, tem atitudes que podem até nos trazer constrangimentos, que nós a iremos amar menos. Ao contrário, Inácio nos quer mostrar que a mãe Igreja é merecedora do nosso amor não primeiramente pelos seus méritos e santidade, mas por ser nossa mãe com todas as suas limitações e seus pecados.
O amor à Igreja em nenhum momento poderá estar distante da liberdade interior, porque caso isto ocorra, poderemos tratar nossa mãe de forma menos afetuosa, pois que haverá o risco de darmos ênfase à crítica aos seus defeitos, deixando em segundo plano, ou mesmo esquecido de lado, o louvor à sua santidade.
Quem sabe não teria sido outra a história tão dolorosa, caso aquele famoso frade Agostiniano tivesse vivido em tempos posteriores a Inácio e que, pela graça de Deus, ele e os outros protagonistas da cena, tivessem tido acesso aos Exercícios Espirituais e conseqüentemente às Regras para o sentir com a Igreja ao final deles. Acho que podemos imaginar se não teria havido, nesse caso, na receita da Reforma Luterana uma melhor distribuição dos dois ingredientes tão presentes e necessários da receita de Inácio: liberdade interior e amor à Igreja. Conhecedores que somos de toda a força dos Exercícios, imagino que talvez essa experiência conjeturada nos meus sonhos, tivesse feito com que os problemas não tivessem tomado a dimensão que tomaram e o afastamento tão triste e traumático que causaram.
Passar pelos Exercícios, ou dizendo de outra forma, deixar que os Exercícios passem por nós, é viver uma experiência de profundidade impar de liberdade interior e de amor à Igreja. A partir dessa experiência fundante fica muito mais simples entender e sentir que o que é branco é preto e o que é preto é branco da mesma maneira que sentimos e entendemos que naquele pedacinho redondo de pão está o corpo do Nosso Senhor.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 06/06/2010
Alterado em 27/09/2010