Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O menino e a jabuticabeira

-Tonico, pega esse cesto de jabuticabas e jogue-as no lixo lá no fundo do quintal. Veja, garoto, que estão já passadas. Seu pai, exagerado como ele é, as trouxe lá da fazenda em Santa Rita, numa quantidade muito maior do que a capacidade dos meninos de as saborearem. Estão todos enfastiados de tanta fruta e os meninos menores com os intestinos agarrados.

- Estão azedas não, mãe. Veja, ainda são gostosas, docinhas. Vou tirar somente essas que estão arroxeadas e moles que quase todas se aproveitam. Menino obedeça a sua mãe. Leva logo o cesto que esse cheiro está me enjoando. Não agüento mais tanta jabuticaba e depois, quem vai ter que ficar fazendo massagem na barriga das crianças, dando colheradas de azeite pra eles sou eu.

E lá vai Tonico, que argumentos para não ir ele não tinha mais, com a vasilha grande e incômoda de carregar, pra despejar as frutas onde se jogava o lixo da casa. Vendo o menino com o cesto, as galinhas, seus pintinhos, os porcos, patos e demais bichos, com exceção da cachorrada, ali residentes, iniciavam barulhenta procissão, na esperança de que dali daquela cesta viesse algo bem saboroso pra todos.

Por pouco tempo os bichos se aproveitaram da comida diferente. Aquele não era um petisco pra o paladar deles e, pouco a pouco, lá foram saindo em busca de outro alimento mais interessante. Voltariam às frutinhas pretas e que agora estavam bem espalhadas e quase todas elas amassadas, acaso não encontrassem no grande terreiro, outras coisas que saciassem suas intermináveis fomes. Não voltaram que o quintal era lugar de se haver muita comida pra fauna caseira e lá ficaram naquele canto do terreno. Misturavam-se já com as terras soltas dos infinitos ciscares das galinhas, as jabuticabas amassadas do balaio de Tonico.

Tempo é coisa de não ficar parado e, mesmo que as crianças reclamem que ele nem anda, passa rápido. No ano seguinte, num daqueles dias em que a meninada fica perdida nos quintais pesquisando formigas, besouros e minhocas, Tonico, seguindo a trilha limpinha das cortadeiras, repara um tanto de brotos com folhinhas diferentes das outras plantas viventes naquele lugar. Reconhece ali mudas de jabuticabeira e então se lembra daquele dia em que havia entornado naquela região, o tal cesto de vime, ainda pelo meio, das jabuticabas trazidas da fazenda. Foi só uma lembrança rápida e a passagem de umas dez formigas depois, já estava ele esquecido da novidade dessa brotação acontecida.

Meninos crescem rápido feito abóbora, diziam desde àquela época os mais antigos. Jabuticabeiras, bem mais lentamente se desenvolvem e, esquecidas naqueles fundões, elas se tornaram árvores. Tonico não era nenhuma exceção. Tem o seu esticão, encomprida, vira adolescente e logo depois, é rapaz que aprecia as festas nas fazendas e gosta muito de andar a cavalo. Deixa a escola e arruma o primeiro emprego, que o pai, aquele que lhes trazia as jabuticabas, tinha se encantado. faltava.

Fazenda não havia mais e carecia de botar dinheiro em casa e daquelas mudas nascidas no quintal, ninguém nem que se lembrou mais dia nenhum. Até porque gente pra se recordar mesmo disso, nem que havia mais nenhum por lá. Mãe também já falecida. E a casa ficara com uma irmã,que nela continuaria a morar criando, com o marido, a penca das suas muitas crianças. E tem que se contar também que tinha havido nesse entremeio, aquele dia especial em que Tonico avistara a moça e com convicção, enchera a boca e falara.

- É esta que vai ser pra minha vida.

Com ela se casa numa manhã de muitas flores, as angélicas, cheirosas. Vão chegando os filhos e a cidade do interior torna-se pequena para os sonhos de Tonico.

- Há que se ir pra capital, lugar maior onde se pode ganhar mais e sustentar a família.

Era o que lhe dizia o sogro. E Tonico acreditou nessas palavras, juntou os trens, que nem eram tantos assim e foi. Saiu da sua Curvelo e foi morar na cidade grande. Lá em Belo Horizonte.


Mas se pensam que só cidade tornada capital é que cresce, moderniza-se e tem precisão de abrir novas avenidas, estão bem enganados. Lá um dia, Tonico é avisado de que os homens da Prefeitura da sua Curvelo queriam muito falar com os herdeiros da tal casa das jabuticabas. É que a cidade queria, bem como acontece com os meninos, também crescer e nos fundos da casa, naquele lugar onde foram lançadas as jabuticabas, iria passar nova avenida levando o progresso a nascentes bairros da comunidade.

Para que os trâmites da desapropriação seguissem, ele é chamado a assinar uns documentos. Dia bem-vindo foi aquele e que serviu de ótima desculpa pra deixar por dois dias os afazeres na Capital e voltar ao lugar da meninice e é assim que Tonico vai de bom grado assinar a papelada. Antes de ir cuidar das coisas legais, atende primeiro as mais gostosas, as do coração, e lá na casa da infância. 

Foi visitar a irmã, marido e filharada. Conversa que vai e vem macia na cozinha e os sobrinhos chamam o tio para levá-lo até onde passará a nova estrada. Pisar de novo aquelas terras fez com que ele fosse arrancando lá de dentro das folhas da memória as histórias dos tempos passados e quando o sobrinho mais velho lhe aponta, que exato naquela moita de jabuticabeiras será cortado o terreno pra construção da nova via, já não estava mais ali o homem. Havia sim o menino com um grande cesto nas mãos.

Tonico se fez criança ao recordar, há tanto tempo, a ordem de Chiquinha a lhe mandar jogar fora aquelas frutinhas pretas. Sim, eram elas, as jabuticabas da sua infância que ali tinham se transformado em frondosas árvores, que em tamanho até rivalizavam com a casa construída bem na frente do vasto terreno.

Abraça um dos troncos lisos e, todo esquecido que não é mais menino, toma aquela decisão, que sem sombra de dúvidas será levada aos engenheiros da Prefeitura. Tudo bem que assina os documentos, que concorda com os valores, que é justo que aconteça a desapropriação, que não tem nenhum problema quanto a isto e que tudo está dentro dos conformes da lei e coisa e tal. E no mais ainda que é certo e bem posto que progresso é algo que ninguém, em sã consciência, seja capaz de emperrar. Só que ele tinha um porém antes de dar tudo por finalizado.

O menino queria que os engenheiros se responsabilizassem por levar aquela touceira de árvores, numa viagem de quase duzentos quilômetros, até sua casa em Belo Horizonte, onde, no meio do quintal, ele já deixaria providenciado buraco suficiente pra que fosse lá replantada. Engenheiro que olha paa o colega e deve de ter pensado, sem saber que Tonico estava com cabeça de menino, que esse homem era doido.

Mas como de prazos estavam todos apertados, eleição quase ali na esquina e a obra carecia de estar pronta, antes que os votos caíssem dentro das urnas, depois de um silêncio desses de dar calor, que era para os da prefeitura poderem ver se o homem, que eles não sabiam que era menino, estava mesmo de decisão tomada dentro daquele pedido maluco dele, foi que os engenheiros balançaram positivamente a cabeça e disseram que podia preparar a cova que em no máximo uma semana as jabuticabeiras, colhidas em seu grande e natural torrão de terra, estariam no seu terreno.

Que deixasse o endereço, as referências do como chegar melhor, essas arrumações enfim de se mandar algo importante a lugar onde nunca ainda se foi. Tonico vê nos olhos do engenheiro que esse era gente de palavra e que nele poderia confiar. Voltado então à condição de homem adulto assina, convicto, mão firme, os papéis postos à frente.

A viagem de volta é feliz e aquele ônibus chato de haver em seu trajeto tantas paradas, de parecer que não se chegaria nunca, se fez agradável das várias lembranças que lhe chegavam e que faziam, vez ou outra, saltarem gotas de saudades dos seus olhos. Maria, aquela que escolhera pra sua vida, só acreditou de verdade mesmo na história contada, na hora em que viu estacionado à porta da casa o grande caminhão azul com uma árvore sobrando pelos lados da carroceria.

Os meninos que não tinham entendido o porquê de ter havido, depois da chegada da viagem do pai, aqueles homens contratados pra fazerem um buracão no meio do quintal, mas que da obra deles bastante tinham apreciado, por poderem usá-lo nas suas brincadeiras de se sujar toda a roupa, queriam saber para que serviria aquele pedaço de pano velho já todo descolorido, amarrado num galho da tal misteriosa árvore, que ninguém tinha idéia de como faria para passar com ela ao redor da casa, com aquele buquê imenso de verdes galhos, até chegar sem nenhum machucão no seu novo quintal.

E naquele buraco, pano descolorido virado para o nascente, com o carinho que a operação exigia daquelas mãos acostumadas ao trabalho rude, foi lançado por Tonico, agora não mais sozinho porque dá para vocês imaginarem o tamanho de umas árvores daquelas, já com mais de quarenta anos de vida. Frutos daquelas sementes de tantos anos antes. E para este replantio, a homaiada, contratada na rua, quem sabe não fosse entre os curiosos que passavam sem entender de aonde vinha e para aonde ia aquela árvore posta em cima do caminhão azul.

Ajudavam naquela faina também o motorista e seu ajudante, que esses dois tinham a ordem vinda desde lá do interior, de que auxiliassem até o final, para que tudo fosse a contento e a árvore vingasse, por conta de que se ela tivesse problemas e morresse, era bem capaz daquele homem voltar até Curvelo para lhes exigir o envio de outra jabuticabeira igual.

Eles lá nos cuidados com as coisas de gente grande, não conseguiam perceber a impossibilidade de existirem, mesmo que fossem irmãs gêmeas, dessas capazes de enganar mãe, duas árvores iguais e que mesmo que num milagre elas fossem criadas, nunca seriam capazes de substituir a jabuticabeira da infância de Tonico.
 
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Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 09/02/2011
Alterado em 05/02/2016


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