Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Foi depois de uma grande tempestade, causadora de bastante destruição e até mortes naquele povoado, que nasceu o poço. Um velho atento à natureza que morava por ali notou aquele pouquinho de água pura brotando da terra, pegou a enxada e cavou. Ele sentia que aquela fonte era o sinal que precisava da vida que ressurgia depois da tragédia no lugar.

Concluída a obra, que ficou por sinal bem bonita, foi avisar às pessoas que viessem buscar no poço novo a água que precisavam para beber. Mas, apesar dela ser muito gostosa quase ninguém vinha até ele. E o chato da história é que esse era um poço muito amigável, que curtia o agito do movimento e a conversa sem preocupação que costuma acontecer em volta deles. Por isso sentia-se só e ficava cada dia mais triste.

Caso visitássemos as casas da aldeia perguntando por que não bebiam daquela água nos dariam muitas desculpas. “Ah, não vou porque o acesso é ruim”, diria o primeiro. Outro falaria que não conhecia as pessoas que o freqüentavam, outros que era distante, e até haveria gente que daria a explicação de que não bebia daquela água por preguiça. “A água, sabe, está muito funda e dá trabalho ser tirada”.  

Como todo poço aquele também era ligado aos seus irmãos por baixo da terra. Não havendo com quem bater papo em cima, o poço passou a procurar seus companheiros no subsolo para conversar. Mas eles, poços importantes, mais velhos e cheios de responsabilidades, viviam fazendo anotações abarrotadas de números e dados: A vazão diária, quantos litros foram tirados, o tamanho dos baldes e  não lhe prestavam atenção. “Vá brincar, menino. Não vê que estamos ocupados?”. Era o que lhe falavam.

Nosso amigo voltava mais chateado ainda e ficava olhando para o alto, esperando que chegasse alguém para beber dele. Foi num desses dias que reparou melhor naquela menina. Será que ela chorava ou eram gotas da sua água que respingaram no seu rosto? Disse um oi e não obteve resposta, ela não o ouvira e já ia embora com seu cântaro no ombro. Mas no silêncio pôde escutar um soluço descendo pelas pedras que o sustentavam.

E ficou se perguntando o dia todo o porquê daquela garota estar triste. Aquela foi uma noite mal dormida. Tivera pesadelos. Acordava assustado parecendo ter refletida na sua superfície a menina, mas o que havia nela era o brilho pequenino das estrelinhas do céu.

O dia nasceu e as horas pareciam passar bem mais lentamente do que acontece normalmente. O poço torcia muito para que a menina tivesse gostado da água e voltasse. Encontrar alguém triste como ele, lhe fazia imaginar que ela tinha um coração parecido com o seu e que poderiam se tornar bons amigos.

Todo barulho que vinha lá de fora o deixava de orelhas em pé. Pena que, ou era algum cachorro que passava, olhava para baixo e gania se lamentando por não conseguir alcançar a água, ou era alguém que caminhava na estradinha que corria ao lado assobiando uma canção conhecida.    
  
O sol dava mostras de que já estava quase indo embora quando um rosto aponta lá no alto e era ela. Há muito tempo que o poço não abria um sorriso assim tão largo. Ele estava feliz, mas a menina ainda soluçava. Percebia-se a cara inchada dela. Sem dúvidas que chorara toda noite. O balde descia preso à corda enquanto o seu “olá” subia tímido, que os poços são assim, gostam de conversas e de movimento, mas são também bem reservados.

A menina toma um susto. “O poço fala!” Foi o que gritou. A primeira reação foi largar a corda com balde e tudo. Aliviado ele viu que um nó dela ficara preso entre duas pedras ainda bem no alto. O homem que o construíra estava mais idoso ainda e não tinha agilidade suficiente para descer, com segurança, pelas suas laterais. Sua vida iria ficar bem mais complicada e solitária, pois que sem balde e corda lá em cima perderia totalmente a função e aí que ninguém mesmo viria beber dele.  

“Menina boba”, pensou e que bom que não falou. Trêmula ela o olha lá de cima. Aquele sorriso grande e que tinha ido embora depois do grito e do balde quase caindo em cima dele, foi voltando. “Quero agradecer por você ter vindo”, foi o que conseguiu dizer. Ela, que também não tinha gente para conversar e disso o poço ainda não tinha conhecimento, gostou da idéia de ter ali um companheiro.

“Pois é, gostamos muito da sua água”. Disse assim e achou interessante ter se colocado também incluída nesse gostar, eis que vivia numa casa onde a tratavam bem mal e esse detalhe também só nós conhecemos,. O poço nem imagina nada disso. “Obrigado, estou aqui para o seu servir”. Ele respostou e ficou achando que um dizer assim formal, como esse, não cabia de se dar para uma menina que a gente quer ser amigo dela.   

O vaso, que nem era tão grande, já se enchera e tempo de conversar não houve. Só trataram dessas coisas simples de se começar um assunto: seu nome, onde mora, quantos anos tem e onde estuda. Ela sorriu pela primeira vez. “Como já se viu alguém chamar Poço?” Mas como esse era o nome dele resolveu só mencioná-lo daí por diante com letras maiúsculas. “Você já vai embora? Está tão bom ficar nessa conversa com você”. Falou isso sabendo que era jeito de dizer porque conversa mesmo, já sabemos, nem tinha tido.

“Tenho que ir, se demoro eles brigam comigo”. “Eles quem?” Mas a menina não escutou esse final porque já fora o mais rápido que podia, sem que a água derramasse, para casa. Depois de um pouco de tempo Poço sentiu que não haveria resposta e foi cuidar de um pequeno vazamento que descobrira nele. Pegou-se assobiando aquela música que o homem passava cantarolando, todo dia de manhã e de tarde e que ele no princípio achara sem graça, mas agora já gostava e até decorara.

No dia seguinte, naquela hora em que devia buscar água, ela saiu correndo. Precisava ganhar tempo para permanecer mais com o novo amigo. A partir daí foi que teve conversa. Falavam das alegrias poucas que tiveram na vida e das tristezas tantas que tinham experimentado. Ela, que não tinha pais e que era criada por uma família que não gostava dela e ele lhe explicando ser a terceira geração de poços que nascia ali. Seu avô e seu pai tinham sido poços de grande serventia no passado para aquele povo, mas o desmatamento fizera com que secassem e havia sido muito triste a morte deles.

Também que viera ao mundo na mesma época em que se deu a tal chuvarada doida que matou muita gente e ele pôde vir à tona. “É”, ela constata, “até de coisas bem ruins pode vir algo muito bom”. “Não sabe que é isso mesmo? Ele assentiu, “se não houvesse tido toda aquela tragédia não seríamos amigos aqui hoje”.

E ela, que via as coisas do lado de fora, começou a lhe contar do quanto as pessoas tinham se tornado solidárias após a catástrofe  acontecida. “Até igrejas que nem se falavam ficaram amigas para ajudar melhor as pessoas! Todo mundo arrumou jeito de auxiliar. Inclusive minha patroa e as filhas dela trabalharam nos postos fazendo comida para os desabrigados!” E Poço que criara certa antipatia daquele povo por saber do que tinham feito à menina, reviu seus conceitos sobre o que é na humanidade ser bom e ser ruim.

O tempo passava. A menina agora era linda mulher e o cântaro no qual buscava água, há muito tinha se tornado objeto de decoração. Depois de terem vivenciado toda aquela desgraça a família vira que não valia de nada o orgulho, nem o se sentir melhor ou maior do que os outros. Tornaram-se amigos. Poço agora recebia muitas visitas. A menina e as pessoas da casa fizeram, desde aquele tempo, propaganda das suas águas e as pessoas vinham saborear dele e gostavam muito disso. 
 
Houve um tempo, há dois anos, que a amizade entre os dois deu uma estremecida. A menina que arrumara um namorado veio contar, toda alegrinha, ao amigo a novidade. Ele fez uma tromba maior do que aquela de elefante. Ficou amuado e por três dias nem conversou nada. Só falou um oba e dois olás.

A menina, que agora a gente passa a chamar de moça, pegou no quarto dia Poço de jeito e então disse para ele quão descabido era aquele ciúme. Que devia ficar feliz porque iriam se casar e os filhos, que seriam seus sobrinhos, beberiam da sua água e mais do que isto, ela naquela hora lhe prometia, que iriam todos ser batizados na sua água.

Pensam que acabou aí e que foi só o que ela lhe falou? Teve mais. Contou também que estava escolhido o lugar de morar. Seria ali bem pertinho. Assim continuariam a se ver fizesse chuva ou sol. Ele chorava de alegria, coisa que poço algum pode fazer, pois que salga a água. Então se recompôs depressa e voltou para dentro da sua alegria e foi aí, nesse exato momento, que se deu conta de que devia cuidar mais de si mesmo.  

Sinais de que estava sendo visto com outros olhos esses havia muitos, mas como se acostumara a só mirar para cima de aonde vinha a menina que agora era moça, não tinha reparado neles. É que na mesma enchente em que tinha brotado, nascera também uma encantadora Cisterna. Ela tinha um carinho todo especial por Poço e se lastimava porque não recebia dele nenhuma atenção.

Daí até o começo do namoro nem se passaram duas luas. Casaram-se na mesma época da moça e de seu noivo, que poços e cisternas não têm desses costumes de namoro comprido e nem de noivado. A felicidade deles era tamanha que suas águas, nem bem tinha chegado a estação das chuvas, começaram a transbordar.

Não sei se por capricho do destino, ou se foi um arranjo secreto entre o velho, Poço e Cisterna, que o regato que deles nasceu passasse exato na porta da casa da moça. Ela nem precisava mais ir até ele para buscar água. Poço e Cisterna iam até ela e as conversas, agora dos quatro, continuavam ainda mais animadas entrando noite adentro. Conta-se naquelas bandas que, altas horas, quem passar por ali é capaz de escutar o barulho das risadas deles.    

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Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 23/02/2011
Alterado em 23/02/2011


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