Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O bispo e a casa de Sinhana

Debaixo desses matos tem história, homem de Deus. Vosmecê que agora vê isso aqui dessa forma, parecendo nada, só pasto de vaca comer e capoeira de cerrado pra boi coçar, nem imagina os sucedidos dessas bandas. Mira comigo mais lá embaixo. Vê o córrego molhando as pedras? Pois o senhor fique sabendo que lá foi garimpo afamado. De dar diamante a farta. Até daqueles de ofuscar o sol.

Tinha demais deles e garimpeiro é bicho com faro de cachorro narigudo. Vem de longe e a notícia ainda nem tinha ficado bem ouvida e isso aqui fervilhava de gente. Em pouco tempo o que o senhor olha era um amontoado de casas até lá em riba. De coisa nenhuma passou direto a ser lugar grande. Muvuca de parecer Curvelo na Praça do Mercado dum sábado na manhãzinha.

A riqueza chegava fácil vinda das águas. Muita gente bamburrada aí. Quem achava pedra grande e conseguia manter o siso, ia logo embora porque pedra enfeitiça mais que mulher dama de muita boniteza. Esses eram de se contar em poucos dedos.

A maioria ficava até perder o último quilate do achado pra de novo batear cascalho, na esperança renovada de se encontrar riqueza. Vinha brilhante outra por modo agraciar a eles? Caso com certeza acontecido de duas safras de pedra grande na mesma bateia só soube de um. Pra não dizer que conto lorota boto o nome do santo: Atanásio de Souza esse foi o homem.

Os outros? Esses perdiam tudo por aí mesmo. Aliás, por aí mesmo não, mas na casa de Sinhana. Dona poderosa da qual nunca que se tenha relatado de algum que houvesse falado alto com ela. Mulher dama respeitada mesmo o senhor já ouviu alguma vez se falar? Pois essa, a dona da casa das moças da alegria na Vila, era. A homaiada chegava tirando o chapéu no abaixar do beija mão para o ganhame de parte dela da benção de Nosso Senhor.

Pra se ver a força dela. Festa de São Gonçalo durava três dias e ai de quem garimpasse neles. Proibido mesmo. De lei só falada, que em escrito nenhum se vai achar algo nessa linha. Acabada aquela uma hora da procissão e reza, havia só música e dança. Nas barracas comida e bebida era livre para todos. Vinha gente de longe. Chegaram a contar pra mais de sessenta carros de boi aí na baixada.

Os festeiros para custear essa bizarrice toda? Só ela que era. Não admitia mais ninguém. Quem quisesse cumprir sua devoção com o santo investindo em algo, que procurasse outra freguesia. Ali a festa tinha dona rainha. “Tenho pecado demais nas costas e a arrumação da festa me dá crédito no purgatório”. Ela falava em risadas gostosas.

Bebida ela não punha um pingo na boca, mas pitar era com ela mesma. De Goiás vinha tropeiro de confiança trazendo os fumos mais cheirosos. Tolendal, homem negociante e sempre sério,  enrolava os pitos fazendo laço com palha de milho, que outro igual nunca presenciei ninguém dar.

Das Europas chegavam em baús de couro os panos de seda coloridos dos vestidos, sapatos de verniz de salto alto e os perfumes com odores que por ali jamais se tinha cheirado. Ninguém que pudesse imaginar, que nesse fim de mundo houvesse mulher mais bonita e bem vestida.

Diz por aí que Sinhana tinha trato de judeu. Que ela agiotava em altos juros e que era haver atraso de pagamentos e as pedrinhas guardadas em costuras na ceroula do pobre serem tomadas. Outros contam que era nada disso. Que só com o dinheiro do movimento da casa é que conseguiu alcançar fortuna.

O que se sabe é que em seu quarto, sempre debaixo de muita chave, debaixo da cama, morava uma caixa de jacarandá e dentro dela, alguns puderam apreciar, a garrafa de litro cheia dos mais puros diamantes. Diz quem viu que se de noite a deixasse do lado de fora, podia-se apagar a lamparina que haveria, só com o reflexo da lua e das estrelas, o bonito espocar de uns tantos mil brilhinhos. 

Que ela agiotasse mesmo, ou se isso era fififi de conversa em porta de boteco, e Sinhana comprara tudo aquilo, nunca se haverá de saber. Quem podia contar está enterrado lá na outra banda onde ficava o cemitério, que pra se saber exato onde fica, há que se dar umas boas cavadas de uns sete palmos por lá, até encontrar ossos. Que garimpeiro era bicho de se morrer bastante.

Mas isto não vem ao caso. O senhor me faz a pergunta do como é que é de uma Vila assim, tão viçosa, ter se findado? Então é o que estou relatando desses jeitos aqui do sertão de se contar as histórias. Na cidade se quer que se diga reto. Não sabemos prosear assim. Conversa precisa subir morro por modo de engrossar as canelas e ganhar sustança.

O sucedido foi que o bispo, bem no quase se chegando, mandou mensageiro dizendo que vinha na estrada e que desejava descansar na Vila. Queria aproveitar também para as desobrigas dos sacramentos, que por ali padre era remédio que no caso de se sofrer da necessidade deles, melhor seria encomendar o caixão e as carpideiras para o canto das excelenças. Dar avisos na vila só podia ser tarefa para a chefa e foi lá na Sinhana que o recadeiro bateu.

“Essas noites não pode ter bispo”, foi o que sentenciou devolvendo, no mesmo galope, o rapaz que trouxera o aviso dessa primeira visita, que batina de bispo por aquela freguesia, ninguém nunca tinha nem ouvido falar. O moço que possuía ouvidos virgens de jamais haver escutado um não senhor assim para tamanha autoridade, o dom bispo, deu meia volta até meio desnorteado.

Conto então os porquês. É que Coronel Cesar estava no bem bom da casa. Era só ele apontar na porta e tudo passar a girar em torno dele. Sinhana não ia deixar que bispo nenhum chegasse e atrapalhasse o folguedo do seu melhor cliente.

Sucede que ele mentira em casa. Falou com a mulher que iria ao Papagaio comprar boi magro e o que fez foi ficar por ali mesmo, menos de trinta léguas de casa, nas benesses de bastante cama e lençol florido.

Todo mundo sabe que se com homem vestido de saia preta já não se faz desfeita, imagine com os chefões deles, aqueles raríssimos de saia vermelha. Deus pune sério demais quem manda uma resposta dessas ao seu apóstolo. Daí que o Coronel curtia ainda as férias com Sinhana e suas amigas, quando as galinhas começaram a rodar igualzinho ao tropeiro Didiu, dançando bêbado na festa do santo. Giravam até cair e milho que ave assim não costuma rejeitar, elas em definitivo comiam. 

Primeiro morreram os pintinhos e desses ninguém contou ter visto à roda como suas mamães. O galo finou-se depois, tonto de tanto rodar deve de ter sido. A galinhada foi ficando sem forças para aqueles rodopios. Emagreciam e todo dia morriam algumas. Em duas semanas não havia franga nem pra canja de resguardo.

Assustados e preocupados com a peste do galinheiro, não repararam que as vacas estavam mais babentas. Uma tal de febre afurtosa era o que o veterinário falou. Leite não havia mais. As bocas feridas não deixavam entrar o capim. Elas foram virando fiapo até dobrarem os joelhos, que bicho boi que se ajoelha reza até se deitar de vez. 

Carne só salgada pois que tinha que vir de longe e ovos ou uma coxinha de frango que fosse, nem valia a pena alguma grávida deles ter desejo. Criança de mulher assim, por não se atender ao pedido, ia ter que nascer de boca aberta.

Fosse só isso, louvado seja Deus. Mas aquilo que os antigos contavam e ninguém quase que não acreditava começou a se dar ali. Diamante, quando se sente afrontado se esconde e não é que pedra nenhuma mais que se achou no córrego? Brilhante é jóia da coroa de Nossa Senhora e fazer descaso com o bispo, representante do filho dela aqui na terra, é deixar as pedrinhas injuriadas.

O que até aquela ocasião era ainda desconhecido é que a desfeita, igual doença dos bichos, contagia e sai pegando em toda vizinhança. O que é que os garimpeiros, ou os fazendeirozinhos dali tinham com as artes da casa de Sinhana? Nadica de nada de coisinha nenhuma. Tinha deles que nem no passeio da casa nunca que tinham pisado. Mas não é que todos pagavam pelo feito?

Garimpo que não encontra mais pedra sente aflição de cigano e essa agonia faz com que todo mundo parta. Mulher alegre, de lugar que fica assim, segue na poeira dos garimpeiros. Possuir criação em lugar de praga, menos que se deixe passar um tanto de nove luas cheias, é querer que ela não vingue e aí que ninguém criava seus bichos. Ficou por lá quem era dono de algum plantamezinho de milho e feijão da serventia de casa até realizar a colheita.

Quem pensou que Sinhana iria embora, grande que se enganou. Permaneceu dura e firme na moradia dos muitos quartos agora vazios. As empregadas que cuidavam da casa e que moravam nos fundos ficaram com ela, agora assumindo cada uma delas um dos aposentos de cortinas coloridas.

Mato fica de butuca, atento, esperando gente ir embora pra poder crescer. Foi o povo sair e ele tomar conta das casas abandonadas. Rapidamente elas se tornavam refúgio de bichos. Barulheira de gente que havia no lugar dera lugar a canto de passarinho, pio de seriema e, de noite, o grito triste daquele pássaro de nome macoã, agourando ainda mais aquela situação tão triste.

Calendário não para e era chegado o tempo das tormentas. Na verdade começou a chover bem antes do que se esperava. Ela foi chegando neblina. Bem levezinha daquele jeito de molhar bobo, até que os céus souberam do causo sucedido e desabaram. Tempestades que Deus mandava sem descanso e que fizeram com que o córrego desaguasse por suas beiras.

O resto do casario abandonado, que resistia à correnteza, tinha água pelos telhados. Sinhana, na sua casa mais alta, olhava aquele mundaréu de água de riba de um caixote, que a água já passava de palmo nos chãos e ia em ligeireza subinte.

“Lugar amaldiçoado”, foi o que disse entre dentes. E chamando a criadagem que chorava e tremia com os dedos calejados de infindáveis rosários, já nos cochichos de se fugir dali que a dona endoidou e que Deus também as castigava, mandou que arriassem os cavalos e armassem as carroças.

“Tem cavalo mais nenhum não, Dona Sinhana. Os currais inundados e os bichos fugidos pelos buracos da cerca que ninguém mais pra tapar tinha". Sinhana praguejou uns tantos palavrões, abafados que foram pelos trovões da tempestade que não tinha mais fim.

A primeira coisa buscada obviamente que foi a garrafa sob a cama, naquela pequena arca que já começava a ter vontade de boiar. Iam apanhando o que dava pra carregar. Era notável que se levava mais coisas do que seria razoável, daquele grupo de mulheres, umas mais velhas, outras gordas, saírem com elas em meio àquela enxurrada do demo.

Poucos passos dados além da porta e notaram que seria impossível conciliar sombrinhas e tralhas. Largaram-nas em meio à ventania e iam em ave marias e salve rainhas na procura da trilha que as levaria à estrada. Pisando macio experimentavam o barro do chão, afundando-se nele em quase-quases escorregões.

A Dona, com a garrafa pesada dentro do embornal, seguia de líder. Naquele lugar em que não deveria de estar. Parece que queria dar coragem ao grupo, mas abrir a fila sem se ter nenhum costume de andar a pé por aqueles mundos, o senhor há de concordar comigo que era bem arriscado.

Água pela cintura da mulherada quando Inácia, a derradeira na fila, gritou “me acode meu são Gonçalo”. O que se viu foi que a mão dela se arrancou da de Mercês e descia solta parecendo pau na enchente. Cara e corpo dela em segundos nenhuma que conseguiu mais ver.

“Madrinha”, acho que o caminho é mais pra baixo”. Foi o que gemeu chorando Maria Magra. “Se você acha, para de tremer, toma coragem e passa à frente”. Ela respostou. A faina de trocar de lugar, segurar mão e cuidar de embornal não podia dar certo.

Ele se solta e a garrafa some nas espumas daquela água amarela. Sinhana, num vrum só, larga Maria e afunda que aquilo era prenda de jamais poder que fosse embora. Houve um tanto de gritos, mas nem duraram. No cada uma por si não se manteve ninguém de pé. Correnteza carregava todo mundo.

O tanto exato de gente morta naquele dia não se sabe. Que havia mais de uma dúzia com certeza que tinha. Encontraram os corpos das mulheres? De nenhuma se achou nem que fosse brinco de orelha, ou a cruz de pescoço.

Da garrafa? O que se conta é que as pedrinhas, na felicidade de se verem dentro d’água, bailavam tanto que ela acabou batendo em pontuda pedra. Os diamantes livres saíram nadando na alegria lá deles, na volta pra casa. Cada um escolheu lugar ainda mais escondido pra bem viver e jamais ser pego de novo. Vez em quando ainda aparece garimpeiro, mas pedra que é bom mesmo houve nenhuma que tenha sido achada.

O povo da religião diz que elas foram todas pra os adornos de Nossa Senhora no céu. Eu acho que não devem de ter ido. O senhor imagina que aqueles brilhantes estão mesmo com a santa? Que foram ter com ela depois de terem escutado e até apreciado, aquelas safadezas todas em cima da cama onde moravam? Eu acho mesmo é que as pedras da garrafa se tornaram encantadas.


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Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 07/04/2011
Alterado em 12/01/2016


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