O homem que foi embora voando
A existência simples de Anselmo se fazia em um círculo. Não que tivesse buscado isto. É que a existência o foi levando, aos pouquinhos, a viver dentro dessa forma geométrica. Eram fáceis de identificar na roda cinco pontos base:
- A casa onde convivia pessimamente com a mulher e muito mal com o casal de filhos.
- O trabalho rotineiro e chato que o deixava catatônico pelo tempo em que lá permanecia.
- O boteco onde tomava seus goles à noite contando e ouvindo mentiras.
- O futebol que era jogado nas manhãs de sábado e que passara a ser uma espécie de técnico e roupeiro depois de ter estourado os meniscos.
- Glória, mulher mais velha e amante. Agora, mais do que com sexo, ela lhe dava o carinho da presença silenciosa a lhe curar bebedeiras e mau humor.
Um sábado depois do jogo andava devagar em direção à casa da velha. Observou numa laje o menino que soltava pipa. Viu bem quando o vento forte arrebentou a linha levando o brinquedo céu afora. Nessa hora sentiu a respiração se tornar curta, como se algo apertasse seu pescoço. Ao findar-se a sensação, Anselmo percebeu que algo tinha se modificado dentro dele.
Deliberou que aquele círculo estava terminado. Não o manteria nem por mais um dia. Dali por diante seria igual a um papagaio a voar nos ares. Não como um desses domesticados, a bailar sob o comando dos garotos. Seria uma pipa selvagem, atenta para jamais voltar à prisão do círculo. Estaria sempre instigando a ventania, provocando-a para que lhe tosasse a linha. Sem a amarra, sairia livre num vôo sem rumo e sem volta.
Largou a trouxa de camisas sujas ao lado da primeira lata de lixo, jogou a carteira funcional num bueiro, rasgou em pedacinhos a foto da família guardada na carteira e arrancou do peito a medalhinha de ouro de Nossa Senhora da Abadia, primeiro presente de Glória, encaixando-a num buraquinho do muro.
Meses depois ainda era possível de se encontrar, nos postes do bairro, as folhas de Xerox coladas com a foto manchada e dois telefones para contato, o da casa e o de Glória. O vento nunca que trouxe notícias de Anselmo.
www.genteplena.com.br
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 07/07/2011
Alterado em 12/01/2016