Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


A alma do violoncelo

Deliberação definitiva: estudaria música. Aposentado, chegara a hora de tornar realidade o sonho do violoncelo que, devido à pobreza de uma vida toda, não pudera realizar. Pretensioso, tinha planos de, no futuro, até participar de um quinteto de cordas, ou alguma outra formação clássica.

Foi assim que explicou aos filhos o porquê de estar ali, tomando espaço na sala já tão apertada, o estojo com o instrumento de pé, parecendo montar guarda à televisão. Ao saberem do preço dele quase caíram para trás. O pai havia comprado violoncelo antigo e de grande valor. Pertencera a músico de alguma fama, falecido há tempos. Ele o adquirira dos netos, jóia constante do testamento.

Para a mulher não falou nada. Com ela fazia vários anos que inexistia palavra que não versasse sobre o que estivesse fora da estrita rotina do que se iria comer, gastar ou limpar. Três verbos que não significavam paz ou calma. Quando conjugados eram em tons variando entre a crítica ferina, ao ódio mais que declarado.

Enquanto aquilo ficava lá parado ainda dava para suportar, mesmo sentindo que o trambolho tivesse invadido o espaço doméstico, do qual fora dona desde sempre. Problema mesmo começou quando o homem tentou tirar dele os primeiros acordes.

O desafino total de principiante sem talento, provocava na esposa o mesmo tipo de gastura, que sentia quando se raspava fundo de panela de alumínio com colher ou, por acidente, se arranhava a pintura da parede com as unhas. A tortura durava uns três meses e apesar de o músico avaliar que avançava nos estudos, a mulher era capaz de jurar que regredia.

Aquele seria o primeiro aniversário como aposentado. Irmãos, cunhados, sobrinhos, além dos filhos, noras e netos, aqueles de sempre, viriam para um lanche de fim de tarde. Ele que nunca cuidara de nada que dissesse respeito ao cuidado da casa e muito menos à decoração, naquele domingo tirou da caixa o violoncelo. Armou o tripé deixando-o à vista, em lugar nobre segundo pensava e atrapalhando o movimento das pessoas, conforme o diagnóstico da mulher. Queria que os convidados apreciassem sua jóia.

Foi aí que nasceu a idéia. O plano incluía o uso da cadeira de jacarandá com os pés praticamente soltos e que era usada ao lado da cama de casal somente como cabide. Sala cheia e faltando lugar para que se acomodassem, foi até o quarto, pôs sobre a cama o paletó azul do marido, virou-a e fez alavanca em dois dos quatro pés da cadeira. Ao mesmo tempo em que buscava a certeza de que estariam bambos, tomava o cuidado para que os pés manipulados não se soltassem antes da hora. Cuidadosa carregou a cadeira instalando-a praticamente encostada no violoncelo.

Saiu como se fosse buscar algo na cozinha. O marido falava animado sobre os novos estudos. Na expectativa do ruído que não chegava ia imaginando quem se assentaria na armadilha. Tomara que fosse algum dos de corpo, como o dela, mais avantajado. Lavou as mãos, tomou água, inspecionou o bolo no forno, tirou uma garrafa de refrigerante da geladeira e nenhum estrondo. Retornou e tentando ao máximo manter-se relaxada para não se machucar, soltou de uma vez o corpo.

Noventa quilos desabando sobre o instrumento. Muito mais do que o barulho das madeiras se quebrando, seus ouvidos captavam angelical melodia. O marido a fuzilava com aquele olhar insano dos quase assassinos. As lágrimas de péssima atriz e uma voz de falsete, que a ninguém convencia, a dizer “meu Deus, não é possível que isto tenha acontecido” ecoava por uma sala em estado de choque. No estalar da madeira ainda rachando sob os movimentos do seu corpo, deleitava-se com a afinadíssima ascensão aos céus da alma do violoncelo.


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Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 13/07/2011
Alterado em 12/01/2016


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