Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


São Jorge e a noiva

Floripes batera perna o dia todo. Procurava o sapato branco que combinasse com o vestido do casamento. Encontrou-o, não se sabe bem se por conta do cansaço a diminuir o nível de exigência, ou se era mesmo aquele que imaginara, enfim o achou. Aliviada, caixa dentro da sacola de plástico numa mão, viu em frente a porta aberta. Lá se foi templo adentro. Não tinha sido para rezar que estava na Igreja de São Jorge. Nem mesmo para que o pedido de que a protejesse no casamento, eis que aquele não era santo especializado nesse tipo de demanda.

Foi aí que se deu o inesperado. Escutou uma voz, a chamavam. Olhou para frente e ali só havia a grande imagem do padroeiro. Estava na primeira fila, no altar não havia ninguém. A porta da sacristia fechada. Só podia ser alguém atrás. Virou-se e descobriu estar sozinha no templo. Aí ouviu de novo a voz. “É com você mesma que eu falo”. Olhou para o santo imóvel sobre o cavalo branco. A seus pés o dragão permanecia com a bocarra aberta, mas seria impossível que dela poderia vir algum som.

“Meu são Jorge, fiquei louca”, balbuciou entre dentes. “Está doida não, moça. Sou eu Jorge da Capadócia, santo, quem lhe quer dar um alerta”. Aí ela fixou mais o olhar e via a boca da imagem se movimentando. A vontade era de sair correndo. Mas não porque os pés lhe doíam tanto, mas porque as pernas não obedeciam ao comando do cérebro, permanecia sentada. Em pânico.

“O meu aviso é que não se case com o Jonas”. Esse matrimônio não pode dar certo. Para ser feliz o matrimônio haverá de ser com alguém que tenha o meu nome. “Seu marido será Jorge e nunca Jonas”. Nada mais a imagem falou. A boca permanecia fechada, nenhum som havia na Igreja, a não ser o do arfar do seu peito envolto no pavor e na dúvida se acontecera com ela um milagre, ou se era vítima de alucinação.

Seu primeiro amor chamara-se Jorge. Namoraram por dois meses até que sumiu. Nunca mais tivera notícia dele. O que tinha ficado daquilo foi a grande mágoa do abandono. Não seria possível que aquela primeira paixão iria voltar e que o coração de novo iria se incendiar. Palavra de santo não se discute. Decidiu que terminaria o noivado. Os convites todos distribuídos e alguns presentes começavam a chegar tanto na sua casa quanto na de Jonas. Teriam que ser pagas multas para cancelar festa, aluguel de salão e várias outras coisas, além do constrangimento imenso da família, claro. 

Não se preocupava com nada disso. Nem mesmo com o que deveria falar com o noivo. Nem diria ter recebido mensagem direta de são Jorge. Isto iria dar margem a muito disse me disse. Falaria apenas que resolvera que não estava na hora de casamento. Que ele buscasse outra esposa. Com os parentes e amigos falaria que sentiu que não seria feliz. Com certeza que ficariam intrigados, eis que se mostrava entusiasmada e totalmente envolvida com os preparativos da cerimônia e da festa.

Estava calma agora. As pernas não pesavam mais e os pés pareciam ter feito parte do milagre e desinchado. Levantou-se, fez o sinal da cruz sorridente diante do santo. Agradeceu pela mensagem e saiu. Quase foi atropelada ao atravessar a rua. Sem nem notar que o motorista do ônibus a chamava de maluca, entrou na loja de calçados e devolveu a compra. Sentia-se pronta para a vida.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 13/07/2011
Alterado em 26/01/2016


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