Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Praça de Touros

A paixão chegara ao coração daquele touro. Caíra de amores pela vaca malhada duma pastagem próxima. Só conseguia vê-la de longe eis que seu pasto era o último, bem junto da floresta. Somente por um canto de cerca era possível que enxergasse a amada e isso só ocorria caso ela fosse comer por aquelas bandas.

Mugia diariamente na sua direção e sentia ser correspondido. Dinamite lhe afiançara ser apenas eco, mas Torpedo, o nome que lhe deram quando bezerro, confiava piamente em que eram respostas dela. Por isto, ao acordar, a primeira coisa que fazia era dar um longo mugido pros lados de onde sua imaginação dizia estar sua vaca querida. Exigia então silêncio para escutar a resposta. Só ele era capaz de ouvir o que de lá do outro lado vinha.

Tinha algo que a inteligência bovina era incapaz de lhe explicar: por que as vacas eram criadas com carinho e cuidado por tratadores e pelo homem do chapéu preto, que seu amigo dissera ser o dono, ao mesmo tempo em que eles, os touros, viviam ao Deus dará naquele pasto distante, sem nenhum contato mais próximo com os humanos?

Esses assim de se admirar pessoas no pasto longínquo das vacas não contam. Dinamite e os demais não reclamavam, ao contrário, até apreciavam esse gente pra lá e boi pra cá. Mas ele, que se lembrava com carinho da primeira infância, quando a filha do homem do chapéu preto lhe acariciava as ancas e o abraçava, possuía consciência, desde aquela época, que gostava de gente.

A vida seguia no natural paradeiro que é a existência bovina. Acordar, caminhar em bando, ou na fila por alguma trilha. Parar e pastar em volta por umas boas horas, passar pelo cocho de sal e dar umas lambidas gostosas nele. Beber água no córrego, descansar nas horas de sol a pino debaixo do tamarineiro, pastar de novo e antes que o dia vá embora, retornar ao abrigo e dormir.

Iam desse jeito as coisas até a manhã na qual dois cavaleiros apareceram no pasto. Foi um baita susto e correram de imediato para o mato. Só ficaram dois: ele, que ansiava por conhecer gente e Dinamite, com quem na hora discutia sobre haver resposta, ou não aos mugidos e que também fora convencido, pelos seus fortes argumentos, de que os humanos só seriam capazes de desejar coisas interessantes para a boiada.

Tentou sorrir para eles, mas nunca tinha feito isto antes e o que saiu mais pareceu uma careta, o que assustou os homens com cara de não ter amigos. Deu-se conta então do contrário do que pensavam os fujões. Os homens, isso dava para se reparar nos seus olhos, é que tinham medo deles.

Rodeavam-nos e a cada volta iam se aproximando mais. O menor e mais delicado movimento que faziam era respondido pelos saltos dos cavalos para trás e os gritos dos vaqueiros querendo, sem sucesso, mostrar coragem. Passado algum tempo nesse vai e vem de dança, os humanos deram para rodar uma corda no alto das cabeças. A primeira que jogaram laçou seu pescoço. A segunda lançada agarrou Dinamite.

"Para que aquilo se eles eram de tanta paz?" Pensava dessa forma ainda ruminando o capim da madrugada. “Não fuja e nem resista!” Gritou para o colega que, apavorado com aquela corda no pescoço, tinha caído em conta da impossibilidade de escapar, invejando os companheiros que com toda certeza observam-nos do meio da mataria. A passividade daqueles dois surpreendeu os vaqueiros. Seguiam agora cavalos, cavaleiros e os dois amigos, mansamente, rumo ao distante curral da fazenda.

Andaram um bom tempo, atravessaram água pela barriga, subiram e desceram morros, até que chegaram ao destino. Ele, que nunca conhecera uma casa, encantava-se com a beleza daquela onde morava o fazendeiro. Na varanda, agora de mais perto, viu sua filha, a mesma que ia ao curral brincar com ele ainda bezerro..

Aí, toda a beleza que imaginara que ela tivesse, reparou que era muito pouca, diante da formosura existente naquela criatura. “Deverá de ser um homem feliz como sou enquanto boi, aquele que conseguir o coração dela”. Pensou misturando a imagem distante da Malhada, enquanto balançava bovinamente a cabeçorra.

Colocados num caminhão, foram saudados por mais quatro touros desconhecidos que lá estavam. Foi o último a subir. Boi é bicho que não aguenta ficar calado por muito tempo, o motorista nem bem saíra da fazenda e já estavam a conversar. Primeiro falaram do tempo, se ia chover, fazer sol, em que fazenda tinham sido criados, nome de pai e mãe e se o capim do pasto onde viviam era gostoso. Passado esse tempo do se conhecer pelas amenidades, começaram a se formar duplas e aqueles mais próximos entabulavam então grandes e sérias conversações.

Ao contrário das vacas, touros não são assim de admirar paisagem. Após uns obas e olás, de preceito da boa educação com os demais, Torpedo voltou a conversar com Dinamite. Estivera silencioso durante todo o tempo em que caminharam atrás dos vaqueiros, mais que duvidoso de que tinha feito bom negócio não tendo escapado com os outros. Agora, mais relaxado, era capaz de curtir a viagem. Papeavam animados mugindo alegremente nos solavancos provocados pelos buracos da estrada de terra. Foi então que viram de perto alguns bonitos e bem cuidados pastos cheios de vacas e bezerros.

Nenhuma daquelas que pudesse rivalizar em beleza com sua amada, mas vê-las fez com que aumentasse a saudade do seu amor. Nessa hora, Dinamite, que era touro bem mais velho, segredou-lhe algo que nunca tinha contado a ninguém. Torpedo não podia acreditar no que ouvira dos beiços do companheiro. Ele afirmara que, definitivamente, não acreditava no amor. Até lhe disse que, como amigos que eram, todo dia ele muito torcia para que largasse mão daquela paixão, porque o amor só era capaz de fazer boi sofrer.

Custaram a se dar conta de que estavam chegando a uma cidade. Gente que não acabava mais e todos seguindo sempre para o adiante. Na mesma direção do caminhão. Para quem sentia falta de contato humano aquilo era mais que festa. Pena que não tenha durado nem o tempo de queda de uma baba dos beiços ao chão. Ao ver o caminhão, as pessoas passavam a correr ao seu lado. Excitadas jogavam-lhes paus e pedras. Gritavam palavras que, pela expressão das caras, só podiam ser coisas bem feias.

Um touro, coitado, com o rabo balançante esquecido entre as grades sentiu forte safanão dando urro de dor. É que dois jovens tinham se aproveitado da lentidão do trânsito, causada pelo excesso de gente e se penduraram, covardemente, no rabo dele.

Foi um alívio quando se abriu um portão e entraram num pátio bem tranquilo e sombreado. Iriam descer, pois que estavam cansados e agora assustados e temerosos com este final de viagem, mas mesmo assim foram ferroados nas ancas. Aqueles homens queriam que descessem em desabalada carreira. "Para que isto?" Indagou Dinamite. O caminhão saiu e o portão imediatamente foi fechado.

Ficaram por lá se indagando do porquê de estarem sendo tratados daquela maneira. Diante deles havia outro portão menor, pintado de vermelho, através do qual se podia ouvir um rumor de multidão a gritar em uníssono. O não saber de nada, aliado ao barulho que escutavam lhes provocava imenso medo.

Num repente, o portão menor é aberto e o rumor tinha se transformado num contínuo trovão. Estavam num estádio e a multidão que tomava cada lugar dele parecia ensandecida. A cena era dantesca. Os touros tremiam. Do alto aparecem vaqueiros com aqueles ferrões compridos, com os quais os atacaram no caminham há pouco. Agora ferroavam aquele touro que se postara mais perto da porta vermelha. Assim que esse saiu para não ser mais ferido ela foi cerrada. Falavam todos ao mesmo tempo e quando os bois conversam assim, aí é que ninguém se entende mesmo.

Houve períodos de silêncio e outros de muitos gritos. Sem poder ver o que do outro lado se passava, a imaginação deles corria solta. Nessas horas de grande temor boi se recusa a pensar no negativo das coisas. Daí que só lhes vinham à mente maravilhas.

Um achava que era um desfile do touro mais bonito. Outro pensando que aquilo tudo era porque eles tinham paladar mais apurado, do que os que ficaram nas fazendas e os humanos queriam que experimentassem novas qualidades de capim. Houve até quem pensasse que lá dentro os aguardavam vacas lindas e que eles poderiam escolher aquela com a qual gostariam de namorar.

Coisa ruim nenhum queria nem sonhar que pudesse estar acontecendo lá dentro. Então o portão foi aberto e o primeiro companheiro não voltou. O que ocorreu foi que um segundo touro, com iguais ferroadas, sumiu por ele.

Quando o terceiro se foi e nenhum dos dois retornou, se deram conta de que todos deveriam também sair. Um a um eles iam sendo arrancados. Agora não se tinha mais necessidade dos ferrões. Antes que fossem acionados, de imediato, um se apresentava e corria para fora.

Tentou sair uma vez para terminar logo com a ansiedade, mas Dinamite, mais experiente e esperto, saltou antes. "Vá com Deus, amigo!" Conseguiu dizer ficando sozinho no aguardo de sua boa hora. Gostava de imaginar que lá dentro estaria sua querida Malhada. Houvesse ali uma flor a arrancaria e a poria no chifre direito dela, para que ficasse ainda mais vistosa e todos naquele estádio pudessem ficar admirados com sua beleza.

O portão, pela última vez arreganhado e, molhado de suor, como se em meio à grande chuva, lá vai Torpedo enfrentar seu destino. Boi quando sai da sombra e entra direto na luz do sol passa bons segundos sem enxergar direito. Firmou mais a vista e reparou num homem metido em roupa esquisita a balançar um pano vermelho e a lhe fazer acenos. “Enfim encontrei um humano verdadeiro, alguém amigo”. Pegou-se pensando enquanto caminhava no seu rumo. Nem deu uns dez passos e concluíra que aquele também não estava para brincadeiras.

Proferia palavras que deviam ser piores ainda do que as que ouvira ainda no caminhão. Queria se fazer compreender, mostrar que não queria briga, mas o homem parecia algum demônio escapado do inferno. Olhou em volta e não via ninguém. Nem pessoas e nem touros. De Dinamite e dos demais amigos nem sinal. Não ouvia nem via mais nada além do toureiro à sua frente. Era como se a Praça de Touros estivesse vazia.

No que deu mais uma passada para tentar algum contato amistoso, sentiu tremenda dor no lombo. O homem havia estocado uma lança com fitas coloridas, bastante fundo, em sua carne. Aquilo parecia um anzol e ficou pendurado na anca. A dor era muita e o sangue escorria pingando sob a barriga.

Recuou e definiu que chegara a hora de dar uma lição naquele ser das trevas. “Ele precisava primeiro de um susto para compreender que se havia touro guerreiro esse passara longe. Que ali, diante dele, estava um que era do partido da harmonia e que desejava só mesmo a amizade. Como um touro apaixonado, com a namorada lá na distante fazenda, ia querer guerrear? Afinal, tudo que sonhava era ter uma vida tranquila e cheia de bezerrinhos em volta”.

Agiu dando uma impressão de boi sonso. Fez que ia recuar e andou dois passos de banda. O homem riu gritando alguma coisa parecida com “boi medroso”. Esperto, fingiu de novo que ia e não foi. Investiu de uma vez e o toureiro foi pego desprevenido. Dois chifres estavam enfiados no homem parecendo estrela com braços e pernas abertos sobre sua testa. Deu uma corrida e no frear ele voou. Nem teve tempo de segurar a barriga. Como caiu, ficou. Agora se via que não tinham estado sós. A multidão era um oh que dava a impressão de ser eterno.
A consciência de que exagerara na dose veio como um raio. Chegou juntamente com um bando de vaqueiros montados e armados até os dentes. Espadas, ferrões, lanças, cordas, chicotes e outras armas eram utilizadas para feri-lo. Sem querer brigar, via-se em meio à luta.

Torpedo ainda tentou correr para tomar pé da situação e se defender, mas não havia tempo. Perdia muito sangue e os homens perversos não respeitavam sua dor, ferindo-o mais ainda. Despencou bruto na areia. Olhou para o alto e, em meio aos raios do sol da tarde, Malhada lhe mugia carinhosamente.

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 21/10/2011
Alterado em 26/01/2016


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras