Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Trilhas do coração

Coração da gente, relato para a senhora, devia de ser como dos cachorrinhos. Pode ralhar com eles, falar coisa feia e ser bruto. Pensa que guardam mágoa? É só chegar o dia seguinte e lá estão os rabinhos abanando e as bocas abertas numas alegrias que dão até pingação de cuspe. É esse, a dona sabe, o jeito que eles demonstram a felicidade.

Espírito humano vai por outras estradas. É baú de amplos segredos. Têm pessoas até que deixam penduradas as chaves desses caixotes num prego bem do lado deles. Aí é só pegar, abrir e se deliciar dos guardados. Outros criaram armadura. É gente de casca grossa. Dentro os sangues foram contaminados pela maldade, mas bastará um tratamento e em algum tempo estarão purificados entregando, com prazer, as chaves do seu interior aos que os amam. Por fim os piores. Aqueles que são a danação do mundo. Esses as escondem em misteriosos escuros e não há novena pra santo achador de coisa perdida, por mais poderoso que seja, que tenha competência no adjutório de se encontrar tais chaves.

Gente é gentes. Diversidade de cada um ser de um particular jeito. Bonitezas e feiúras todos têm. Uns mais uma coisa do que outra, mas gente legítima de um lado só, senhora e nem ninguém será capaz de encontrar não. Consideração que faço é que no humano o fechamento da alma acontece de três maneiras. Os de espírito puro são das raças do céu, aquela dos cachorrinhos. Simples e fácil nisso de não dar trabalho algum, vivendo nas aleluias de saber que Deus é Senhor das coisas e bem procede quem segue seus passos. Esses com um olhar, um sorriso, ou um afago estarão derretidos.

Existem outros que vivem no meio de uma apreciação boba de parecer embrutecidos. Os rostos nem se lembram mais de algum sorriso. Chegam e saem secos que nem sertão de agosto. Reconhece-se bem desses por observar que seus falares carecem dos bons dias e até logos das adequadas regras. Na fumaça do meu pito fico achando que gente assim, os mais guardiões de si mesmos, são os mais molengas. Por puro medo de se ferir é que criam essas malícias de esconder os seus conformes de sentir e de bem demonstrar o mais profundo. Lá no miolo dos olhos há lágrima no querer de espocar, eu até acho. Esse povo guarda riquezas que na mirada leve e rasa não se enxerga. Missão de quem vive por perto é a de mostrar que coração que se comporta assim cria bichos com peçonhas, que essas essas lágrimas que não são vertidas vinagram. 

Ruins mesmo, afianço à dona que são poucos de quase poder se contar em dedos, os tais empedernidos. Esses se assemelham às veredas negras de águas salobras. Nem cobra ruim rompe o medo de beber delas. Ser vivente por lá só o cão das sete patas. Viver é sina cheia de percalços e por isto há que se cuidar para não deixar que o coração se feche. Travessia da vida pode fazer com que o bom vá ficando ruim e o razoável é que os vice-versa, apesar de mais rareados, são também possíveis.

Não por acaso, tem um local desses perto das posses de Maria Capistrano, por alcunha a Capistrana. Apelido veio nos sucedidos após a morte do marido, Florêncio de Jesus Capistrano que era a graça dele. Homem perverso e que se foi desta para os infernos, pelos ofícios bem mandados de uns tiros de revólver manejado por filho de viúva, de quem roubou terras e gados.

Dona dele, até então senhora boa e de muita reza, revirou-se de todo, coração cerrou-se definitivo depois de passar a usar o colar com saquinho de não se sabia o quê, tirado do pescoço do esposo na quase hora de se cerrar o caixão. Virou besta fera tornando-se mais maléfica ainda que o finado. Daí que, à boca pequena dos receios, chamam-na assim. Mas que teve homem com coragem de falar isso nas fuças dela? Disso nunca que se soube.

Capistrano fizera pacto e da terra de cemitério daquele exato lugar da tramóia com o capiroto, era o enchimento do tal patuá agora usado pela patroa. Vaqueiro Remundão, em tarde de se enterrar companheiro vítima das febres de sezão, achou de pegar no chão uma pedrinha preta mimosa de se ver e redondinha de ser alisada nas mãos. Povo fala que a tal havia sido pisada por Capistrano na fatídica meia noite. Senhora então vai compreender o porquê de agora lhe contar mais esse sucedido.

Remundo, homem de dedos artistas, por ter sentido a boniteza daquilo, fez uns furinhos e prendeu a jóia numa corrente. Presente pra sua Lindora, que sentia andava pelo mundo de se contar estrelas sob o sol. Exato no dia em que levava no bolso a prenda a mulher não estava no barracão. Dia de quarar e bater roupa no córrego e aí pensou que houvera algum atraso em sua labuta. Pendurou o mimo na soleira da porta por modo de ela avistar na chegada.

Até hoje não retornou. Nos assuntares do que podia ter ocorrido, soube que nem no de manhã cedinho, quando a havia deixado pronta para ir à fazenda apanhar a trouxa a ser lavada, ela tinha estado. POr coincidência, na noite anterior Vitinho não dormira em casa e nem tinha passado na venda pra pinga e jogo do truco. Dele também não se soube mais. As duas éguas sumidas foram encontradas três dias depois pastando nos arredores da Estação do Morro da Garça. 

Remundão queria por que queria lavar a honra. No deixa ver que o tempo amaina os sentimentos de quem é correto, nos ofícios do bom viver, convenceu-se de ficar por ali mesmo no tanger gado, consertar cerca e defender patrão nas lides políticas. Lá na porta perdurou por bom tempo a pedra. No dia em que resolvera entregar o coração pra Jurema, resolveu que por lá ela não devia mais ficar. Levou-a então no bolso e por uns três dias, fazendo nós de terço durante os descansos do almoço, aumentou o tamanho da corrente. Tudo pronto e ele a colocou no pescoço da vaquinha mais mimosa e mansa do curral.

A bicha ninguém mais a reconhecia. Nem tinha passado uma semana e Remundo quis mostrar o mimo pra Joquinha. Chegado a dois passos da vaca sentiu seus maus bofes e se não fosse pela competente agilidade de vaqueiro, estava ferido de chifrada na barriga. Foi ficando esquisita de estranhar bezerro que parira, até que se embrenhou nas capoeiras que ninguém mais era bem-vindo nas suas vizinhanças. Essas coisas de dar colorido em vida de boi macho, a bicha deu de achar que devia também de poder usufruir. Havia touro em algum pasto saltava cercas pra namorar.

Quando a senhora escutar falar de um touro malhado que, em noites sem lua, rompe do mato, abrindo com as guampas os ventres dos cavalos de vaqueiros solitários, num espalhar feio de tripas, pode ter certeza que é boi macho não. No peito do animal os vaqueiros arriados das montarias estrebuchantes, antes de se esconder no matagal, relatam haver visto o brilho de uma pedrinha preta.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 26/10/2011
Alterado em 11/02/2016


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