Cerca Lourenço
Nos idos de 1740, o comendador Lourenço Agostinho da Fonseca Romão pertencia ao rol dos homens mais poderosos da Bahia. À boca pequena, uns que chegavam de além mar, se indagavam acaso não seria aquele um empregado do Tesouro Real, que em Lisboa ganhara fama de ser useiro e vezeiro nos desvios de dinheiro da Coroa. Dele nunca se provara nada, mas também era crença que não deveria ter acontecido por acaso, sua destituição e sumiço da Corte.
Era o próprio que viera a dar com os costados no Brasil. Com ele aportaram também a sogra, falecida poucos meses depois, Dona Eudóxia a esposa e Maria Laura única filha, adolescendo. Seu primogênito, não querendo se aventurar pelo inóspito Brasil optara por permanecer em Lisboa, o que fora do agrado do pai, que assim podia contar nos negócios com um representante comercial de maior confiança e que também zelasse por seus interesses de homem caído em desgraça.
Lourenço adquirira uma das três melhores casas de Salvador. A quarta do lado direito de quem sobe a ladeira de Santo Antônio da Barra. Residência comprada da viúva do Coronel Salustiano Menezes Torres Alba, lusitano que enricara no negócio de escravos.
Nem bem havia chegado e já dera variadas mostras do tamanho da fortuna possuída. Esse esbanjar só fazia aumentar os boatos a respeito da origem escusa dos seus ouros. Tinha comprado doze escravos para os serviços domésticos e horta. Num quarto instalara a escrivaninha e era dali que atuava, com desenvoltura, nos tratos da importação de panos e ferragens, como também na exportação de açúcar. Nesses trens o número da escravaria era bem maior.
É exato por conta desses negócios que entra na história o jovem nativo Domingos Serapião de Alvarenga Baltazar. Moço esperto e trabalhador, no qual o moreno da pele demonstrava que, apesar do pomposo nome português, tinha a correr nas veias sangues d’África e dos nativos da terra.
O rapaz lhe havia sido indicado como moço de tino e alta confiança, para atuar no serviço de secretário. A função resumia-se a servir suco de caju, água e guloseimas oriundas da cozinha para o patrão e visitas, bem como trabalhar como leva e traz na triangulação entre porto, armazém onde eram estocados o que entrava e o que seria embarcado e a sede, quer ea como os empregados nomeavam a casa. Na sala, do lado de fora do escritório, instalou-se a cadeira de palhinha na qual, estando por lá, Domingos aguardava ordens.
Para que acontecessem as primeiras trocas de olhares entre Maria Laura e o moço não transcorreram muitos dias. Daí aos sorrisos discretos e meio envergonhados dela e aos recados transmitidos pela rede de escravas, foi questão praticamente de uma semana. Mais um pouco e estavam apaixonados. Domingos descia as ladeiras de Salvador como se flutuasse e Laurinha dera para ficar nas janelas a mirar o céu, esperançosa de que surpreendesse uma estrela cadente, para então aproveitar aquele momento mágico, expressando o desejo de felicidade no amor. Nos domingos a missa matinal passou a contar com novo fiel. Por nada no mundo ele perderia a oportunidade de ver sua musa, mais linda que nunca, em roupas de se ver Deus.
Desde o início se sentindo desconfortável com a presença daquele rapaz estranho e de alguma cor, “ao menos fosse algum parente branquinho vindo de Portugal”, pensava Dona Eudóxia, desconfiada por causa da mudança de modos da menina. “Ali devia de ter dedos de amor e esse em definitivo não prosperará. A pobrezinha da menina já pagou os pecados havidos e aqueles ainda por cair, ao abandonar o mundo civilizado, vindo morar nessa colônia quente e de gente deseducada. Imagina se vou deixar minha filha tomar afeição por um reles mulato?”
Na conversa que era para ser séria com Maria Laura esta a princípio negou haver algo. Mas mãe sabe fazer as perguntas certas e o choro no qual caiu, aliado às mãos nervosas a amassar o lenço, era prova inconteste da culpa de amar. Em pouco o choro das duas se fizera um só. Abraçada à filha a lhe pedir adjutório, implorando que a auxiliasse junto ao pai nos sutis tratos de fazê-lo aceitar a corte do seu brasileirinho. A mãe que dera início à conversa nos definitivos de se dar um basta naquilo que farejara estar começando, fraquejara o coração.
Afinal tratava-se ali de auxiliar a única pessoa que verdadeiramente a compreendia naquele país estranho. “E pensando bem, o rapaz tinha lá suas qualidades. Não as possuísse, Lourenço homem sagaz na escolha dos subordinados, não o teria nomeado para ficar dentro de casa. O problema era a cor. Herdariam os futuros filhos o leite europeu, ou o bronze dos trópicos? Santo Antônio a haveria de ajudar para que a cor não pegasse nos netos. Logo iria subir a ladeira para dar início, com as mucamas, a alguma novena poderosa”.
A conversa seguia e a cada minuto tornava-se mais animada. Mãos dadas, as mulheres tramavam maneiras de convencer Lourenço. Lembrava-se agora a mãe das dificuldades havidas quando ele a quis. Seu falecido pai, “que Deus o tivesse em sua glória”, não fizera nenhum gosto naquele namoro. Família de Lourenço, desde aquela época, não gozava das boas famas. Concluiu por fim que o cerco ao marido era ela quem iria iniciar e que esse se daria, a princípio discretamente, através de sutis elogios ao moço.
Na mesma noite já deitada, esperando o lava-pés do marido para lhe deixar no ar, como quem não quer nada, alguma invenção positiva observada no namorado da filha. Mas foi Lourenço quem falou primeiro. Hoje iniciara interesses com grande fazendeiro português da província de São Paulo e querendo abrir negócios no Nordeste. Tinha vindo com o filho, jovem dos seus 25 anos, já nascido no Brasil e que moraria a partir daquela data na Bahia. O homem lhe pedira para que desse todo apoio ao rapaz, enquanto tomasse pé daqueles novos lugares. Deixara então a casa à disposição para que nela, até que encontrasse pouso definitivo, o moço residisse.
Mas isso era só espécie de puxa assunto, eis que a sede tinha sempre uns dois ou três hóspedes de negócios ou amizade. Do que desejava lhe falar era dos planos de se aproveitar aquela oportunidade, para que alcovitassem a aproximação de Maria Laura com esse paulista. Estivesse olhando para a esposa, Lourenço teria reparado no estremecimento de Eudóxia sob as cobertas.
Não tocou no assunto e nem rendeu pontos ao que o marido lhe contara. Guardou silêncio no fácil parecer de que cochilava. Cercar Lourenço para fazê-lo aceitar o namoro da filha ia ser mais complicado do que imaginara. Contudo gostava de lutas, não apreciando nem um pouco perdê-las. Definiu que conversaria no dia seguinte com Domingos, vendo com ele as melhores maneiras de tratar seu patrão daí por diante. Ao acordar perguntou a Lourenço se iria precisar do secretário naquela manhã. “É que desejava mandar um presente por ele para o Padre Teodomiro por motivo de ser seu aniversário, um pano de se cobrir o altar da Matriz que bordara”.
O marido pareceu incomodado com o pedido. O empregado era seu e para aquele serviço tão simples bastaria enviar algum escravo da casa. “Mas é coisa de cerimônia”, retrucou ao sentir a relutância. “Está bem, mas que este não se torne um costume. Não quero que o moleque tome graçolas com as coisas da casa e muito menos com a nossa filha. Melhor mantê-lo mais a distância”. Pela segunda vez Eudóxia tomava consciência da dificuldade na realização do que prometera.
Deixou avisado às escravas que assim que o rapaz chegasse fosse de imediato levado até ela. Pela cabeça de Domingos passaram mil receios quando, entre sorrisos, a escrava levando os penicos à rua, lhe disse que a patroa o esperava no quarto de costura. Dentre tantos medos que sentiu no trajeto entre a porta da casa e tal aposento, a imensa maioria era de que seria repreendido e mesmo impedido de sequer olhar a amada. Pouquíssimos lhe diziam que iria ganhar fundamental aliada na batalha de cercar Lourenço, guerra essa da qual ele nada supunha.
“Fosse o namoro proibido iria roubar sua amada levando-a para o sertão, onde viveriam escondidos com uns parentes até que Maria Laura engravidasse e nascesse o filho, pois que nenhum avô, por mais duro que seja, resiste à beleza de um netinho”. Isto seria coisa de menos de um ano e naquela casa ele de novo então adentraria, não sendo empregado como agora, mas sim tendo se tornado legitimado membro da família”.
Venceram os quase nenhuns pensamentos positivos. Ao receber a ordem para se sentar, já pôde sentir o clima amistoso que tomaria a conversa. Depois de contar-lhe que sabia de tudo e que fazia gosto naquele casamento, Eudóxia passou a instruí-lo sobre as formas de melhor agir com seu marido. Tais dicas poderiam ser resumidas a três: que fosse mais ágil, educado e prestativo, que nunca deixasse de obedecê-lo e nem questionasse suas ordens e por último, que parecesse mais inteligente.
Os dois primeiros pontos eram claros para Domingos, mas quanto ao parecer mais esperto isso era algo que ao sair da conversa até pensava ter entendido bem, mas quanto mais ia o tempo passando, mais lhe chegavam dúvidas sobre o que seria realmente “parecer mais inteligente”. Por fim chegou à conclusão de que demonstraria mais astúcia caso palpitasse em algum negócio cujas tratativas, mesmo sentado do lado de fora, era capaz de ouvir, eis que o patrão não era homem de falar baixo.
Poucos dias depois Eudóxia à mesa do almoço reparou na raiva do marido. Mal tocou na comida ele lhe disse: “Irei demitir esse moleque insolente. Imagine que fica escutando conversas e deu mesmo para dar sugestões nelas”. Mãe e filha num átimo notaram o perigo e por causa dele Eudóxia resolveu iniciar, naquele mesmo momento, o cerco a Lourenço.
“Não entendo o senhor, meu marido. Numa terra de homens tão indolentes e preguiçosos, quando encontra um rapaz ordeiro, educado, sagaz nas tarefas e bastante inteligente. Desejoso até de lhe ajudar nas decisões e o senhor a dizer que quer mandá-lo embora? Deveria era dispensar esses tantos que ficam a lhe bajular. Repare que, mesmo aqueles que não lhe roubam, são incapazes de gerar algum lucro” Lourenço agora sentia-se deveras intrigado com aquelas palavras da esposa. Não tinha idéia do tanto que ela estava a par dos negócios. Notara a sugestão feita no discurso, de que Eudóxia sabia dos furtos ocorridos no armazém. Surpreendia-se mais ainda pelo fato de ela demonstrar que conhecia bem seu secretário. O almoço transcorreu sem que houvesse outra palavra e Lourenço não foi capaz de observar as lágrimas no rosto da filha, que nem tocou no alimento.
“Como se não me bastasse um secretário fofoqueiro, agora até minha mulher, ao invés de cuidar da casa está a se intrometer nos negócios”. Não acostumado aos modos da Colônia, o patrão nem imaginava a rede de informações existente à sua volta. Esta se mantinha através dos escravos que serviam no porto e armazém, repassando à noite para suas mães, mulheres e namoradas que serviam à casa, o que viam e viviam por lá. Daí aos ouvidos de Eudóxia as fofocas mal resistiam ao tempo da chegada da patroa ao quarto de costura. Foi dessa forma que soube dos roubos cometidos por João Gomes Santeiro, empregado de fé de Lourenço nos relacionamentos com as tripulações de navios.
Foi Joana de Ziquinho quem lhe contou sobre o furto de armas importadas. “Sinhá Dona, pois o gatuno é descarado. Manda os homens revirarem as caixas assim que chegam, na procura das coisas que ele muito aprecia e o que o danado mais gosta são armas”. O negro tinha confidenciado à mulher que o gatuno não podia sentir haver na carga um pau de fogo que fosse, para logo meter a mão grande e ameaçava duramente os escravos, que os mataria caso fosse por eles denunciado.
Já sabedora de tais fatos Eudóxia uniu as pontas dos assuntos para conceber o plano. Esse não era nada complicado. O que planejava era algo bem simples, como são singelos os amores de dois adolescentes.
Joana foi incumbida de ver com os homens do porto, quando partiria navio para Portugal. A resposta foi num pé e voltou noutro. “Tem um pronto para zarpar na primeira maré, Sinhá dona”, a escrava havia trazido a resposta. Eudóxia enfiou a agulha no pano que costurava levantando-se. Mandou vir papel de carta, tinta e pena. Tinha precisão de escrever ao filho. A missiva depois das muitas bênçãos e saudades entrava no ponto.
“Que ela queria fazer um mimo para o pai dele. Então, que visse em Lisboa a melhor garrucha que encontrasse. Que não regateasse preço, pois queria coisa cara e bonita. Cabo devia ser de madrepérola, prestasse atenção. Fazia gosto em ter arma também para si mesma e outra para Laurinha, mas essas duas não careciam de ter adornos. Que fossem levezinhas e simples para serem levadas com discrição quando tivessem que andar pela cidade. Com tanto vagabundo à solta, há que se tomarem cuidados. E não se esquecesse de colocar a encomenda numa caixa, sem dizer que aquilo a pertencia. Então que a pusesse em nome de Serapião de Alvarenga”.
Deixando de fora o primeiro e o último nome do namorado da filha, seria quase impossível que descobrissem para quem se destinavam as garruchas. Pobre não se liga muito aos sobrenomes. De certo pensariam ser aquele algum militar vindo da Corte, ou para algum dono de fortuna emergente no interior. Por fim, ela continuava, "que não deixasse de despachar as armas na primeira embarcação com escala em Salvador, enviando através de carta em separado com os pedidos de bênçãos, as notícias de lá e também confirmando que naquele barco estava a encomenda”. O papel estava quase acabando e ainda faltava uma última ordem. “Que levasse o mimo a ser enviado para presentear o pai num certo senhor na Rua dos Barbeiros, para que lá ele fizesse o que estava orientado no pequeno papel que seguia anexo e que lhe deveria ser entregue”.
A ratoeira estava armada. Seria impossível, por tudo que o escravo contara à mulher, que João Gomes não ficasse pelo menos com uma garrucha, a mais bonita das três, obviamente. Na manhã seguinte foi ao barranco donde se tinha linda vista do mar, para ver se havia navio a zarpar. Joana o viu primeiro e as duas sorriram cúmplices, acompanhando-o até que desaparecesse no horizonte.
Lourenço ia sendo cercado e junto dele tudo levava a crer que viria a reboque um ladrão. As mulheres voltavam para casa às gargalhadas. Agora era ter paciência e aguardar que chegasse o navio com a encomenda. Em paralelo, Eudóxia convocou novamente Domingos, para que deixasse aquela história de ser inteligente de lado, pelo menos por enquanto. É que tinha se dado conta de que paixão e esperteza são coisas que não costumam ser simultâneas. Até tinha ponderado lhe falar do projeto, mas optara pelo silêncio, no que fez muito bem. Para que ele não soubesse também Maria Laura seguia inocente. Somente Joana, que fora obrigada a jurar, com a mão na Bíblia, que nada contaria a Ziquinho e ela, eram sabedoras da trama.
Usando-se dos préstimos inocentes de Domingos, foi conseguida a programação daquelas embarcações que se dirigiam à América passando pela Bahia. Joana ficara incumbida de, discretamente para não levantar suspeitas, descobrir os tempos médios de travessia entre Lisboa e Salvador. A partir desses conhecimentos ficou fácil de ver que dois navios poderiam trazer a tão aguardada encomenda.
No primeiro da lista não chegou nada. O outro atrasou quase um mês. Saiu depois da data de Portugal por conta de reparos emergenciais para enfrentar o mar, passando depois uma semana de calmaria no Atlântico. Nem bem aportara e como era de costume, um bando de escravos e escravas por lá já estavam para saber se para seus amos estavam vindo correspondências e encomendas. Foi Ziquinho quem apanhou a carta para Dona Eudóxia. Conforme as muitas recomendações de Joana, “que a patroa estava aflitíssima pelas notícias”, veio num pé só do porto à sede.
Aquele era um bom filho. Comprara as três armas conforme fora por ela muito bem especificado. Os preços, principalmente da jóia a ser presenteada e que presumia iria ser roubada a assustaram. Não imaginara fossem tão caras essas coisas, todavia totalmente justificado o custo, ao se considerar o fim a que se propunha. Era tempo daí por diante de se ficar quieta. Iria aguardar uma semana para dar todo tempo à ação do larápio e só aí convocaria Domingos, para que fosse reclamar uma caixa que tinha vindo em seu nome. Que deixasse de ser curioso e fosse lá, apanhasse o que lhe dessem e viesse na carreira para a Sede sem mexer em nada. Da forma como armara a ratoeira o ladrão seria pego com a mão enfiada na botija. E seria bem fácil colocar Domingos como o grande herói da empreitada.
Joana já soubera pelo seu homem da linda garrucha que os escravos, da corja do larápio, encontraram e da qual o safardana tinha se apossado. João até aparecera com ela, por baixo do camisão, na cintura no dia seguinte. Saber essa notícia lhe deu a tranquilidade que necessitava para seguir em frente, no projeto de cercar o esposo, desmascarando um empregado farsante e criando um herói, o que garantiria a felicidade da filha.
“Não há nada para você aqui, Domingos, o que o dono ainda não veio buscar é só uma caixa de um tal Serapião”. “Pois eu sou o dito cujo”, afirmou o namorado de Clara provocando surpresa e mesmo alguns risos. Moço curioso, foi com custo que conteve o ímpeto de abrir aquilo, para saber o que lá dentro era guardado. Aqueles troços pesavam mais do que o normal para o tamanho que possuía tal caixotinho. Em meio a pensamentos de imaginar o que havia no interior da caixeta e de sonhar que se tratava de algum presente de noivado da família para os pombinhos, Domingos subia célere para a sede.
Dentro de casa Dona Eudóxia tratava de organizar, em seus amplos detalhes, a pantomima do recebimento do presente. A escrava mandada a limpar a vidraçaria das janelas de frente, estava incumbida de avisar a dona no quarto de costura, logo que o rapaz apontasse vindo lá de baixo. Visto Domingos era preciso que houvesse platéia para que o marido, ao se sentir cercado, não tentasse esboçar algum golpe de fuga.
Joana era a responsável por chamar o hóspede paulista, que de trabalho do pai mesmo ninguém o vira tratar, mas que de muita boemia estava vivendo, além de Maria Laura, obviamente. Ziquinho daria aviso a Santeiro e a mais alguns, que era dia de festa e que os empregados de maior estima estavam convidados para o beija mão do aniversário do patrão, exato naquela tarde. Que para a sede então eles fossem e ficassem por lá espalhados, no bem bom do nada fazer, no aguardo que a dona os chamasse para esse surpresamento. Até tal momento que mantivessem em segredo o que por ali estivessem cumprindo.
Convocaria o marido naquela hora decisiva em que a onça se abaixa para beber água. O cerco final de Lourenço se daria à frente do escritório. Tudo projetado para que muito o patrão se assombrasse com o que haveria de lhe acontecer.
Os homens instalaram grande mesa, logo coberta com panos novos de belos bordados laterais produzidos pelas escravas. Da cozinha, em seguida, iam sendo trazidos mil quitutes com cheiros atrativos, além de jarras de sucos de vários sabores.
Tudo pronto e todos a postos quando Domingos entra na casa, assustando-se com o inesperado movimento. Dona Eudóxia, trajada de se ir à missa e tendo ao lado o marido desentendido de tudo, dá um passo à frente e pede que a caixa fosse colocada sobre uma mesinha de centro, que lá se arranjara neste propósito. “Algum homem com uma boa faca para abrir o presente de aniversário do senhor meu bom marido? Santeiro que não tinha reconhecido o caixote, toma a dianteira e, canivete à mão expõe o interior daquilo. O que se viu então foi feno.
“Seu Domingos, o senhor me faça o favor de tirar de dentro da caixa as três armas que nela estão.” Isso soava igual latim para o rapaz, mas outra opção ele não vislumbrava, cabendo-lhe apenas obedecer. Do meio do feno saem não três, mas duas pistolas embrulhadas num papel oleoso. Eudóxia desata então em fingido choro. Lourenço, mais perdido do que cachorro de madame caído de carroça da mudança, tenta sem muito jeito consolá-la. É posta sentada na cadeira do genro. Não passa um minuto e ela, de um salto, se levanta como se tivesse retomado muitas forças, abraçando o secretário do esposo.
“Mil desculpas, meu moço, por não ter lhe dado ouvidos, quando em secreto vieste até mim para falar que estávamos sendo roubados por gente de bastante confiança. Agora o senhor, com o desaparecimento da garrucha, está me provando que é tudo verdade”. Como ninguém sabia de nada ela começou a explicação: “Meu filho enviou-me de Lisboa uma garrucha com cabo de madrepérola, verdadeira jóia, para presentear a Lourenço aqui nesta hora. Cá estamos e me vejo envergonhada porque na caixa onde ela deveria estar, somente duas armas femininas, mandadas também por nosso filho, estão. E o pior é que se comenta por aí, que há gente no armazém que não pode ver arma assim que logo mete a mão, não é mesmo, seu João Santeiro?”
“Disso sei nada não, Dona Eudóxia, mas se ladrão lá há, logo será descoberto e punido com braço de ferro”. “Pois rato por lá há e aqui ele está”. Ela retrucou dando-se conta do talento possuído para artista de teatro. “Sou capaz de desconfiar, seu João, que a garrucha com cabo em pedraria que mandei vir para presentear meu marido e que devia vir nessa caixa, está mais perto do que possamos imaginar”.
O amplo silêncio que se fizera tinha cessado. As pessoas se mexiam nervosas. Domingos entendia cada vez menos o que acontecia e Lourenço era só raiva, por não ter dado atenção às reclamações de roubos que ocorriam nos armazéns e que o prejudicavam, porque acabava tendo que indenizar os prejudicados.
Mas Eudóxia não tinha acabado, olhando para o salafrário, disparou. “De formas que a garrucha não veio, queria que o meu esposo conhecesse pelo menos o seu tipo. Como o senhor tem mostrado aos amigos, conforme também me tornei sabedora, uma garrucha nova recebida da Europa e que parece ter o mesmo jeito daquela que iria presentear a Lourenço, poderia por obséquio, mostrá-la para que ele ao menos saiba como era o seu presente?”
João Santeiro não via saída, estava totalmente acuado no canto. Quis mostrar indignação. “Absurdo. Parece que desconfiam de mim”. Enfiou a mão sob o camisão arrancando brilhante garrucha. “Vejam, esta arma, adquirida com meu dinheiro, não tem nada de parecença com a tal que Dona Eudóxia diz, sem apresentar nenhuma prova, ter desaparecido!” “Isto será bastante simples de se ver. Sob o cabo da do meu marido mandei gravar nossas iniciais em letras bem pequeninas. Por favor, entregue-a ao jovem que o acusa, para que possa se assegurar do seu engano, não sendo a sua a tal arma que mandei trazer”.
Domingos estava em meio ao furacão e apesar do medo algo lhe dizia que aquilo lhe seria benéfico. Não pôde deixar de observar o tremor da mão a lhe passar a arma. Vira-a e lá estava o pequeno bordado das letras LE sob o cabo. Não foi preciso dizer nada. O balanço afirmativo da cabeça fizera com que compreendessem tudo. Santeiro fez menção de balbuciar algo, mas a um cochicho de Lourenço foi agarrado por Ziquinho e outros escravos e levado imediatamente aos ferros da prisão.
Todos falavam ao mesmo tempo e ninguém entendia nada. A dona então fez calar o rumor que havia tomado conta da sala, batendo vigorosas palmas. “Em meu nome e no da minha família agradeço, de público, a este rapaz, o senhor Domingos Serapião de Alvarenga Baltazar, pela desmesurada dedicação ao senhor meu marido e a todos nós. Quero lhe dizer também que a partir deste momento o consideramos membro da nossa família”.
Dito isto abriu os braços acolhendo-o num abraço e falando alto para que ouvissem: “meu filho”. Maria Laura que sentira muitos receios ao notar que naquele dia ocorreriam fatos importantes, extasiava-se ao abraçar o namorado. Eudóxia tinha uma última coisa a fazer. Chega-se bem junto a Lourenço e lhe sopra ao ouvido: “meu marido, até cheguei a pensar que o senhor fosse agradecer a Domingos pelo tanto que tem feito por nós”. Era o golpe final. O cerco a Lourenço completara-se. Agora era total. Engasgado no entendimento profundo do que aquelas palavras significavam só lhe coube, pela primeira vez, apertar a mão e também dar, meio constrangido, um abraço no jovem.
Em Salvador o assunto daqueles dias foi um somente: a prisão de João Santeiro. Pouco a pouco ia se conhecendo o que por trás daqueles fatos tinha havido. Quando das bodas tal história já era bem sabida pelo povaréu que, sempre sábio, a costumava nomear como “cerco ao Lourenço”.
Dizem por aí que é por causa desse fato tão antigo, que se dão os comentários de que quando tem alguém querendo engambelar uma pessoa por conta de algum sentido oculto, é porque se está com “histórias, ou conversas de cerca Lourenço”.
Dessas coisas há sempre quem duvide. Cá com meus botões confesso ter delas bem poucas certezas...
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 03/11/2011
Alterado em 29/01/2016