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Neblina vem e dá é nos baixios. Ela algodoa nas manhãs frias os caminhos das águas que o povo chama de veredas. Tudo é criação. Vem essas trenhadas todas é do amém de Deus. Sertão é lugar bendito e cheio de bonitezas. Terras que vão e que vem e onde, de vez em quando, haverá de se cravar uma cruz marcando o domínio daquele que só faz o bem. De verdade assim não há quem duvide. Agora, que numas meias noites o Satanás vem atrás tocando uma viola desafinada por modo de atazanar a criação, também não se descrê. Graça para um é desgraça do outro?
Noiva alguma há de querer chuva na hora da sua festa. Convidados são sempre mais do que a conta de se poder esparramar por dentro da casa e temporal nessa hora há de dar por acabadas as alegrias das danças e das rodas no pátio. Mesmo assim sou capaz de garantir que dentre esses mesmos que estavam se alegrando, haverá daqueles se pondo mais felizes ainda por causa do aguaceiro.
Chuva é boa e ruim. Gente do sertão quer fazer festa, mas tem também a labuta de se botar a semente na terra e o carecer de dar pasto ao gado. Falta de aguaceiros pode até se tornar alegria de noivas, mas carrega significado também de bicho magro e plantação miúda. Havendo essa divisão das aleluias e tristezas nasce a certeza de que a ordem está mantida e tudo permanece nos conformes das liturgias do Criador.
Em fatos assim não se vê as marcas da unha suja do Diabo, mas conto que em outras situações se poderá notar que a desordem impera e será simples de se observar o dedo imundo do Fedorento. Deus e o Te Esconjuro Coisa Ruim vivem eterna peleja? Relato que sim e o sertão é campo de guerra dessas duas bandeiras. Acha a senhora que há coisas que ainda não existem? Creio assim não. Tudo em alguma parte, seja no alto seja em baixo, é existente de alguma maneira. Confusão se faz porque tem as realidades já presentes e outras ainda no ausente da vida das pessoas.
Verdade que acredito é que tudo já é constante no colo de Deus ou nas costas do Diabo. Há coisas que saem de cima e essas descem do céu, sendo entregues pela mão direita do Pai Eterno. Tem um tanto de outras que são viventes nos escondidos sobre o vasto da terra.
A dona tem mãos de dama e se vê logo que nunca haja cavado o chão, por trabalho de se achar pedra de cristal, ou qualquer dessas outras de se valer dinheiro. Não essa labuta de se fazer poço para minar água, ou sete palmos para se botar caixão de defunto, mas digo de furna das imensas. Profunda de causar ferida nas carnes, quase até tocar os ossos do mundo. Tivesse furado um desses gigantescos, conheceria que quanto mais se afunda mais forte brota o calor. É que se aproxima de onde não se quer ir. Inferno existe é nas profundezas.
Coisas boas Deus guarda para semear na parcimônia do pouco a pouco aos viventes. Acaso há horas em que erra a mão e joga bondades excessivas para uns deixando na seca uns tantos outros, não possuo grandes convencimentos. Povo costuma achar que é assim, com tais falhas na distribuição, que as regras do céu procedem. Diz o sacristão da capela da Santa Rita, que Deus prova uns mais que outros é para ver se são possuidores das prendas necessárias, para entrar no gozo das boas aventuranças.
Coisas ruins será que são de se possuir alguma medida? Assunto que não. De maldade o sertão não carece de miséria alguma. E quando se acha que não tem como se inventar algo de ainda pior, sai de alguma furna iniquidade mais assustadora. Ruindades, essas se originam das profundas do caldeirão de pecadores. Elas já estavam lá prontinhas. Ficam sabendo do clima melhor daqui de cima e criam grandes ânsias de sair de lá para se tornar fatos. Capeta aproveita dessas vontades para animá-las a tomar coragem para a empreitada.
Chegando aqui o objetivo mesmo que carregam é o de atazanar cristãos. Como é que elas viajam para cá? Parece que vão sungando devagarzinho no entre pedras, areias e barros até que chegam em beiradas da superfície. Daí que qualquer buraquinho desses que tanajuras, no acabar da chuva, cismam de cavar para se esconder da avidez dos passarinhos, de olhos nas suas bundas de muito apreciados ovinhos, acabam sendo saídas de coisas indesejadas. É a bichinha que entra e elas que espocam tornando-se concretas ocorrências de perversidades.
Questão que muito me deixa ensimesmado é reparar que não tem jeito de se por ordem nesses afloramentos. Impossível adiantar nascimento delas, ou fazer o contrário de se tentar segurar para que não encontrem a luz do sol. Essas coisas vão acontecendo é da própria natureza e desejos delas. Disse assim desse jeito? Conserto, pois que está errado e as danadas são só de obedecer ordens. Manda mesmo elas se mexerem para subir é aquele da caldeira e que nem aprecio dizer o nome. O povo nomeia de: Pé Virado, Porco do Nariz Torto e de Joca Rabudo. Muitos nomes, para o mesmo Rei da Escuridão.
Homem e mulher nenhum têm magias que façam que se atrasem ou adiantem. O acontecer do maligno na terra vem de outras ordens que passam longe das bocas e das licenças escritas pelas pessoas. Mesmo que se arvorem como poderosas. Deus tem patente capaz de gerar obediência nos infernos? Pregação de padre que passou para as desobrigas disse um “com certeza que sim”, pois que Ele é mandante nos altos e baixos. Em qualquer lugar Deus vige. Mas disso cá comigo eu dei de duvidar. Quer que lhe dê provas?
Pois proseio então sobre acontecido recente pras bandas da curva grande do Córrego de São Gonçalo. Água essa que antes chama do Saco e que depois do quase vazar no das Velhas vira Ribeirão das Pedras. Maricota de Raimundão pôs no mundo, em barrigada que assunta o povo foi para quase ano, menino nascido magro de se ver ossinhos, careca e boca cheia de dentes. Na primeira mamada sangrou feio o peito. Mãe teve impressão de que queria beber do vermelho e não do branco. Coragem teve mais nenhuma de aleitar. Pôs mamadeira de leite com fubá na boca dele e o menino quase se foi de diarreia.
Será que teve presságio e queria que finasse? Batizado no às pressas para não morrer pagão e foi seguindo assim vivente. Acostumou-se com leite de cabra misturado com água. Peito de Maricota sarou da mordida, mas seios ficaram murchos e caíram de vez na culpa de não ter cumprido a sina de alimentar cria.
Nunca que se soube de algo que essa criança fizesse que se pudesse dizer da presença do Menino Jesus ou do seu Anjo da Guarda no por perto. Posso contar em mil viagens os tantos pecados dele. Um que me aflorou o ódio foi quando me afiançaram, que o empesteado apanhava filhote depenadinho de passarinho nos ninhos e enfiava nas areias de formigueiro das lava pés. Precisava ver, era o que diziam, o prazer dele admirando o bichinho piar e dançar no balanço dos tocos das asinhas, enquanto os exércitos das formigas atacavam. Gargalhava de se escutar em casa, arrepiando de pavor mãe e pai.
Único som saído da sua boca era risada. Palavra mesmo nunca se ouviu que pronunciasse alguma. É de se presumir que acaso ele falasse estaria curado? Palavra possui vastos poderes. Palavra é de Deus e silêncio é de Satã, o Coisa Ruim? Nas procuras de mais maldades criou amizade com uma jararaca, bicho também de não fazer barulho. A tal era moradora sob uma pedra nos fundos do quintal e de vez em quando, por modo de selar a parceria e para que não carecesse dela se cansar procurando comida, o menino levava uma preá para a bicha se alimentar.
Benzeções, rezas, promessas, banhos de ervas, missas de padres em odor de santidade e nem mesmo gargarejo de água com pedacinhos de cera de vela que alumiou cabeceira de anjinho, foram capazes de dar jeito para o menino tomar gosto pelas coisas de Deus. Mais se buscava um milagre, mais se tornava perverso. Por fim se desistiu de dar os devidos catecismos e educações ao desnaturado. Largado sem eira nem beira criou vida própria. Seus jeitos esquisitos de nunca desejar colo e muito menos afetos e carinhos, geravam bastante medo no povo e mais ainda em Maricota e Raimundão.
O moleque era de dormir praticamente o dia todo. Acordava nas horas do de comer e nem preciso dizer que fosse incapaz de produzir alguma ajuda, por menor que fosse, aos pais. À noite era o primeiro a deitar na cama e mesmo que estivesse quente, rebuçava-se todo. De lá ficava só na espreita do ronco dos velhos. Daí que barulhavam de lá e ele pulava de cá caíndo no mundo.
Criança correndo noturno por pastos e capoeiras. Saltando veredas, nadando na água fria dos rios. Abrindo porteiras para misturar o gado, amarrando tocha em rabo de gato, torcendo pescoço de pintinho e se fosse só isso, era para se dar graças. Acaso eu vi? Não assisti, mas tem gente, levo a senhora lá, que jura, mão na Bíblia, sobre esses acontecidos. Não se é fácil mesmo de se acreditar no que ele devia de fazer nas madrugadas.
Foi então que deu para acontecer uns sumiços de criação nos sítios da redondeza. Era o bicho desaparecer e uns dias depois dar de brotar apodrecido nos fundos das cisternas. E pensa que se tratava de animal pequeno? Até capado de várias arrobas surgiram nos poços. Acaso eram vivos ou mortos quando despencavam não se podia ter as certezas. Depois de um tempo desses ocorridos, local com água boa por lá era só na propriedade de Raimundo.
Na cabeça do povo vigiava a ideia de que era o menino o autor das maldades? Tinha os que achavam que sim e os que desacreditavam disso. Aqueles que não punham fé em tal possibilidade, defendiam a criança perguntando: Com que força um fracote daquele tamanhozinho iria arrastar e jogar bezerro, cachorro grande e porco gordo nas fundas cacimbas?
Sabedores dos boatos os pais protegiam a cria argumentando que de dia ele não podia fazer nada, porque dormia o tempo quase todo e de noite menos ainda, eis que se deitava antes deles mal o escuro se fazia e adormecia feito anjinho. Acresce que nunca ninguém viu rastros de bicho sendo puxado. Outras ideias e teorias circulam por esse sertão afora. Em nenhuma os poderes do Entrevado está ausente. No que todos eram concordantes é que quem obrava, fosse quem era, fazia isso através das artes do Deus Me Livre.
Numa noite gelada pai e mãe dormindo, o filho, como de costume, sai de casa. Mas não permanece nos escuros, retorna breve trazendo nos braços a serpente companheira. É rindo que ele assopra algo nos ouvidinhos dela e a enfia por baixo da coberta da cama de casal.
Dia ia alto quando as vizinhas, cansadas de escutar as aflições das vacas. Tetas inchadas do leite sem ter sido ordenhado e os choros sofridos dos bezerros, proibidos de irem no rumo das mães, antes que Raimundão roubasse parte do seu sagrado alimento, viraram os olhares pras bandas da casa. Repararam que a chaminé não fumava.
Mulher que assunta com outra na cerca, mais uma que se aproxima e em minutos um pequeno bando vêm gritar o ô de casa na soleira da porta. Tudo aberto e ninguém responde. Veio o medo e ele tem o dom de fazer com que o dia se transfigure em noite de escuridão. Paralisa por demais e pernas até criam poder, dando recusa de se seguir em frente.
Medo, senhora sabe, faz cristão cerrar-se dentro de casa como se em volta dela hordas de assombrações, com foices e facas, estivesse a lhe fazer mil ameaças. No entrar apavorado com aqueles temores e mais ainda por nem se querer encontrar o menino, viram que aqueles dois, acaso acordassem, isso se daria só do outro lado da vida. Pavor se fez medonho e correram da casa.
Só depois de trazer água benta para aspergir no dentro e no em volta, mais ramo seco da procissão do começo da Semana Santa para queimar na porta, foi que deram de cuidar dos corpos. Do menino e da sua amiga ninguém que nunca mais soube. Garoto podia vingar assim a negação do peito fazendo tanta maldade até matar os pais? Tem culpa de nascer dentuço? Quem fez gerar gente assim? Toda criança vem do alto? Desce carregada pelas mãos de Deus? Ou pode ter uns que saem dos antros mais profundos? Daqueles. Senhora já sabe.
Poderia vir do colo do Pai Supremo alguém ruím dessa envergadura?
Esconjuro que de jeito algum. O espírito dele saiu foi de algum oco do mundo para invadir, em hora de urinação da mãe grávida, os interiores dela tomando conta do bebezinho e até mudando a duração das luas e gerando atraso no parto.
Palpites que senhora dá pertencem às mais elevadas alçadas de sabedorias. Careço demais de tê-los. Vivo em enganos? Persigo erros? Cá desse canto do sertão desconfio que acontecências assim ocorrem nas noites em que Deus está cansado de vigiar o mundo, boceja três vezes e vai então tirar umas merecidas sonecas. Diabo fica na espreita e é só Ele fechar os olhos e o sertão se tornar desguarnecido.
Conhecer esses momentos tem jeito? Dou a receita que recebi do cego Nassif, para que tome os cuidados devidos, caso aconteça de passar por estradas assim. Pode estar fazendo o calor que estiver que vai sentir o arrepio da passagem sorrateira de um vento gelado. Ele, em porta de Igreja, onde cantava pedindo esmolas me afiançou que é porque Deus ronca e o Capeta está virando Capitão das Noites, que tal aragem se dá.
Com ele chega juntinha a era do medo. Madame já sentiu dessas brisas de não se saber por aonde ela chegou, por que veio e até se possui vontade de se ir? Pois é do embaixo que ele vem rompendo sem ser bem-vindo. Povo daqueles ermos, que estava meio largado de Deus, chegou a ganhar calos nas pontinhas dos dedos de tantos rosários que debulhou. Medo chama a coragem da religião, eu acho.
Conversas assim dão de requerer persignações, uns tantos Padres Nossos e Salves Rainhas, por modo de manter bem fechado o corpo das tentações de se querer conhecer o que não quer ser visto. Daí que tenho no alforje esse livrinho azul de boas rezas e alguma novena poderosa, para proteger e manter abertos os bons caminhos do cristão.
Senhora quer rezar? Que Deus há de vencer é o referido de sempre. A dúvida está em quando se dará a vitória? O que tem que se orar é para que a batalha termine breve e o medo não mais crie coragem nesses mundos.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 03/12/2011
Alterado em 11/02/2016
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