O filho que envenenou a mãe.
Passarinho sem ninho a olhar para um rumo e que decidido alça voo sabe o galho que vai pousar? Nem direção e nem graveto ele imaginou. No meio da viagem já mudou três vezes a rota e nem apeou em pau nenhum, mas em arame de cerca. Assim é a existência dele, desse jeito é a da gente.
A vida se dá é nos escuros e dela só se sabe do passado até o triz do antes do quase agorinha. Garantia alguma alguém tem de que não vai morrer no espocar do já? Há um que toma tiro no peito e continua vivente enquanto outro morre engasgado com doçura de bala de hortelã. Viver é muito perigoso.
Lugares há em que as pedras prestam continência só para um lado. Esses se dão nas bandas do sertão da Diamantina. Senhora conhece bem. Acho que é por conta desse pormenor que há lá uma cachoeira de grande boniteza, seguida de um remanso, muito apreciado pelo gado cansado, chamada Sentinela, presumo. Rochas acham que o perigo vem só de um lado e por isto tomam conta olhando essa banda. E se vem da outra vertente a maldade? É possível de aquele horror de pedras em pé possuir siso de saber o porquê de coisas?
Senhora tem conheceres vastos. Já bebeu de livros que dão para montar biblioteca e assuntou de conversa com sábios de reconhecidos mosteiros. Eu aqui no meu pouco conhecer certeza de quase nada possuo. O que me move mesmo para o futuro é a muita dúvida. Desse pauzinho em pé das escritas que chamam de exclamação pouco tenho apreço. Do que gosto mesmo é daquela bengala com a qual se redige a perguntação. É ela que me dá segurança no trôpego caminhar.
Padre novo que passou aqui pelos Pentecostes andou dizendo que Deus não pune. Que Ele é só beleza da bondade. Cocei três vezes a orelha ao escutar tal prosear. Deus mudou? Ele não manda mais seus fogos e óleos ferventes para dizimar cidades pecadoras? Nas batalhas do bem contra o dragão do mal Ele já não segue no adiante? Será que Deus agora deu para achar de ser só bonzinho?
Lá no raciocínio dele ponderava que é o humano mesmo que constrói seu inferno se enfiando nele. Sou de desaprender tudo que sabia e acreditar em algo assim? Será que tal sacerdote tem patente para divulgar coisas de tal profundidade? Vivesse ele no sertão e não apenas passando corrido nessas visitas das desobrigas, iria ver que viola toca são diferentes melodias. Sertão é lugar onde as maldades se escondem entre as pedras e os galhos retorcidos dos espinheiros.
Sem tramela na porta sono se torna mais leve. Ao menor barulho lá fora e olho já está aberto. Preferível dormir a tresnoitar no debulhar das preocupações das muitas coisas. Gente que cata pedras não carrega muitos pensamentos, mas fica igual porco. Acostuma-se a olhar o chão. Pescoço endurece e torna-se incapaz de apreciar o azul do céu. Porco é bicho no qual não se pode botar confiança.
Gosto de animal que mira o alto. Deles o gavião é dos que carregam a minha preferência. Diz o povo viajado que há uns de raça muito maior. Em zoológicos de cidades grandes têm deles. Chamados de águia. Senhora já viu alguma voando?
Bondade dá trabalho e é até capaz de cansar. Maldade é diferente. Possível de não gerar fadiga nenhuma. Alguém que me aponte perverso com cara de cansaço. Santo é quem nunca fez nada de ruim? Desacredito de pensar assim. Tirante Jesus e a Virgem Nossa Senhora Aparecida, que esses são sem possibilidade de nenhuma ruindade, todos os outros têm os dois lados dessa moeda. Há dia e tem a noite. Vai um, vem outro.
Pedro, o homem que abre e fecha a porta celestial, foi mentiroso. Paulo, aquele que sai mundo afora para ampliar os horizontes da religião, era matador juramentado de cristãos. Santo é aquele que não faz ruindade? Essas são de todos nós, exceto aqueles já falados. Santidade, eu acho, é ter consciência de que se pode tropeçar e à menor queda arrepender-se e retornar, repondo o ruim com o que se tem de melhor dentro do coração.
Viver é beber do que não se sabe. Mas nessa ignorância de se caminhar no escuro da existência, é preciso ir pingando mel nas coisas. Seria a tarefa de adoçar a vida dos outros isso que chamam de ser homem e mulher de Deus, os tais santos? Ou estes são só gente do passado e que não mais existem hoje. Gado é que lambe os grossos beiços ao comer sal, mas há de se encontrar por aí e a senhora me deu exemplo de um desses tais, que sente gosto em salgar a existência alheia.
Queria a vida mais reta. Preto é negro e branco é puro alvo. Hoje acontece tudo misturado. Caso acontecido de homem e mulher trabalhadores, viventes para a família e para a quantidade de filhos que cada ano Deus seguia mandando. Filho mais velho tinha quinze quando o pai resolve subir em galho fino para apanhar favo de doce mel e lá no alto, pau que estala e o homem cai.
Resistiu dois dias e findou-se. Passam-se os meses e Juca Fogueteiro a arrastar asa feito pombo para a viuva. Pouco tempo depois lá está ela de barriga. Filho que tinha assumido o lugar do pai não aceita a gravidez e considera tal fato traição. Compra formicida e dá para a mãe beber misturada em líquido. Mulher e anjinho entram juntos no céu.
Vida é romaria nos escuros da existência. Em qualquer encruzilhada pode-se topar com o bem ou o mal. Afianço para a senhora que a mãe que tomou formicida ofertada pelo desalmado do filho, por conta de gravidez quando já bem enviuvada, não sabia o que estava bebendo.
Filho que mata mãe não mostra a que veio nem apresenta a arma, isto é de lei. Covardia dessa natureza requer trapaças de se esconder o rosto. Ou mata dormindo ou em tramoias de oferece enganos. Vai ver ele deu a caneca de veneno com algum gostoso pedaço de broa ou pão de queijo.
Nas imaginações dela viajaram naquele ínterim entre a oferta e o beber várias histórias. Nenhuma delas era capaz de mostrá-la dormindo em algum roxo caixão. Não pensava que o filho lhe dava chá de remédio contra enjoo? Que não fosse coisa boa teria pensado em beberagem de alguma cigana para auxílio abortivo.
Por coisas assim é que só gosto de pensar no bem. Dá prazer ficar deitado na grama, barriga pra cima, inventando anjos e coisas do céu nas nuvens. Mas de vez em quando olha o que acontece. Dá de se ver nos chumaços brancos coisa que não presta e não se quer olhar. É a peleja do humano. Queria viver em paraísos, mas vivo no sertão. Deus conosco sempre.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 26/12/2011
Alterado em 11/02/2016