Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Deus entre nós. Contemplando o Mistério da Encarnação

O Cristianismo tem algo que o diferencia totalmente das outras grandes religiões. Essas veem a divindade separada do humano. Deus é só Deus e não se mistura conosco. Na nossa fé, e esta é uma característica fundamental a nos distinguir das demais, o humano e o divino celebram um maravilhoso encontro. Cremos num Deus que é Amor e que por ser assim tomou a decisão de se fazer totalmente humano. E isto ocorreu sem que nada nele perdesse algo da sua condição divina.

Nosso Deus não se limita a permanecer distante. Não é alheio ao sofrimento humano e nem fica observando estática e divinamente, lá do alto, suas criaturas. Nosso Deus tem compaixão dos filhos, Ele é misericordioso e não admite permanecer afastado e toma a iniciativa de vir à Terra. Deus vem e se torna um de nós, torna-se gente como a gente. Ele é o Emanuel, o Deus conosco. Isto é tremendo!

Santo Inácio de Loyola nos apresenta este lindo mistério de uma maneira bem interessante dentro dos Exercícios Espirituais. Ele nos convida, ao se iniciar neles a segunda semana na qual seguiremos os passos de Jesus, a meditação de um imaginado encontro da Santíssima Trindade no céu. Com suas palavras, de homem do Século XVI, vejamos sua proposta:

“Aqui recordarei como as três Pessoas divinas, lançando os olhos sobre toda a terra cheia de homens, e vendo como todos se precipitavam no inferno, decretaram em sua eternidade que a segunda Pessoa da Santíssima Trindade se fizesse homem para salvar o gênero humano, e assim, chegada a plenitude dos tempos, o Arcanjo São Gabriel foi enviado a Nossa Senhora” (EE 102).

Logo em seguida os Exercícios Espirituais nos propõem contemplar a Encarnação de Jesus, a segunda pessoa da Trindade, em três cenários paralelos (EE 106):

- As pessoas da maneira que as encontramos por aí. Ou seja, nas mais diversas situações da vida (nascendo e morrendo, sendo felizes e sofrendo, chorando e rindo, em paz e na guerra...).

- A Santíssima Trindade nos contemplando na mais profunda cegueira levando-nos a perder a trilha da realização humana e da felicidade.

- Uma casa num lugarejo chamado Nazaré. Uma vila pequenina e sem importância. Tanto que nem é citada no Primeiro Testamento da Bíblia. Nela somos convidados a contemplar a jovem Maria sendo saudada pelo Anjo.

Não estamos sozinhos, é preciso ver as pessoas. Somos criaturas frágeis e que têm dificuldades em achar os caminhos para a felicidade. Por isto, precisamos nos colocar diante do Criador para que nos traga a salvação. Num lugar obscuro uma mulher deixa Deus encantado pela sua pureza de coração e abertura para acolher Deus. Três olhares bem diferentes e complementares sobre a vinda de Deus até nós.

Sem a Encarnação, é claro, não haveria cristianismo, eis que não se teria a quem seguir os passos. Esta constatação do mistério, que a princípio parece obvia, é tratada com um carinho todo especial por Santo Inácio. Por isto não basta um ponto de observação apenas. O convite é para que o vejamos sob essas três óticas bem distintas: da Trindade, da Terra e de Nazaré.

Apresentando-nos desse jeito a Encarnação de Jesus, Inácio de Loyola quer que atentemos para uma característica básica da sua espiritualidade. Para fazer parte dela é preciso estar plenamente inserido na realidade do mundo. Será nele, nas vicissitudes do dia a dia, que se viverá o seguimento de Jesus. Por isto o santo dirá que seus filhos espirituais são “contemplativos na ação”.

Nesse Mistério as três miradas nunca devem ser vivenciadas de maneira estática. Elas se transformam a partir do olhar e da ação comprometida de cada um. É preciso que a encarnação histórica vá dando lugar à encarnação existencial nas pessoas que fazem a experiência de Deus. Nelas a Trindade, que a partir do Espírito Santo faz a sua habitação no humano, vai levar a um modo de proceder comprometido com a missão.

Esta não tem fronteiras e irá conduzir a tantos e tantos homens e mulheres dos nossos tempos que desconhecem a Jesus, ou mesmo que o conhecendo, não se sentem ainda convocados a ir além de uma fé devocional, quem sabe só epidérmica, ou que somente dá prosseguimento a uma mera tradição: se é cristão porque o pai e avós o foram.

Somos seres da Pós Modernidade, uma realidade totalmente diferente daquela na qual Inácio contemplava a Encarnação. A diversidade de enfoques a serem observados nos atuais cenários beira o infinito. Dentre esta imensidade há alguns a nos chamar, homens e mulheres do Século XXI, a uma mirada contemplativa e ao mesmo tempo ativa. Trago, para que os possamos considerar, sentindo neles as maneiras como Deus continua buscando se encarnar, a partir de nós, cinco olhares:

O olhar da justiça: Enquanto uma minoria é possuidora de muito, a grande maioria sobrevive com quase nada. Os sistemas econômicos e políticos do mundo não conseguiram, definitivamente, torná-lo mais justo. Ao contrário, as diferenças continuam acentuadas e até crescentes. Muitos ainda sofrem da famigerada fome e morrem dela. Segundo a FAO, órgão das Nações Unidas para a alimentação, a cada minuto doze crianças morrem pela falta de comida na Terra.

O olhar da paz: Somos seres que ainda têm grande dificuldade de conviver com o outro, principalmente os que estão mais perto. Não são somente os países que guerreiam. Ao mesmo tempo em que costumamos nos indignar com grandes conflitos acontecendo mundo afora, somos incapazes de reparar nas pequenas guerras, que para os envolvidos se tornam imensas, provocadas por nós, ou as quais somos instados a viver diariamente.

O olhar da comunhão: Quanto mais gente há no mundo, colocando-nos todos em maior proximidade, mais o individualismo se faz presente. Esta postura egoísta de fechamento provoca o paradoxo da solidão, mesmo que se esteja em meio a um tanto de gente. O exemplo da virtualidade propiciada pelas novas tecnologias tem feito com que tantos passem a viver em mundos paralelos, descompromissados e alienados de tudo e de todos à volta.

O olhar do cuidado: Há um descaso muito grande com o próximo. Em algumas épocas parece que a parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37) se torna ainda mais atual. Este é, sem dúvida, um desses tempos. O descompromisso com a vida é muito grande. Passa-se pelo outro, necessitado de cuidados, como se contornasse uma pedra. É preciso cuidar mais do próximo, estar mais atento a ele, dando maior valor à vida. Não a qualquer uma, mas à vida plena e abundante que Deus quer presentear a todos.

O olhar ecológico: Somos sete bilhões de seres sobre a Terra. O aumento populacional tão acentuado nos dois últimos séculos, não foi acompanhado da atenção cuidadosa com o lugar no qual vivemos e de onde é retirado o sustento para a subsistência. Seres descuidados que somos, exaurimos os recursos, poluímos as águas, desmatamos a terra e enfumaçamos os ares, como se fôssemos os últimos a habitar por aqui.

A partir da Encarnação o olhar que até então podia ser bastante se torna insuficiente. Somos convocados a muito mais. O convite é para que vejamos a realidade com os olhos do Espírito. A partir dele discernimos a vontade do Pai para que, com o coração do Filho, tenhamos ânimo e generosidade para trabalhar na construção de uma nova Terra.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 22/03/2012
Alterado em 30/05/2021


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