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Ah, aquele olhar!
Ah, aquele olhar perdido. Ah, esta raiva por não conseguir se perdoar. Ah, esta morte que não chega para dar um basta a isto tudo. Maldita vida a terminar assim sendo vigiado por aqueles olhos aterrorizados.
Nos primeiros tempos pouca atenção dera a ele. Livrara-se de um fardo. Era de novo um homem livre. Não sabia precisar quando foi que ele chegou. Possivelmente tenha vindo sutil, tímido e apequenado, até que se tornasse grande, virasse terrível incômodo do qual se é incapaz de escapar. No começo era como se algum ser indefinido o observasse. E o olhar foi tomando forma, tornando-se gaiola, prisão. Depois da sua chegada não houve dia, hora, minuto sem sua presença. Aquele olhar punia-o desde então.
O velho agonizava. Visto da porta do quarto, não fora pelo ruído rouco e ritmado saltado da garganta, se poderia achar que, de tão inerte, fosse morto. Nas palavras do médico, mais parecia tênue casca de ovo, pronta a se romper ao menor contato. Observado desde o seu interior a cena era distinta. A cabeça fervilhava às voltas com aquele olhar. Por conta dele o coração cansado tornara-se poço sem fundo de tristeza.
Coincidência? Foi naquele hospital que ela morrera. Do diagnóstico ao enterro não se passara um ano. Verdade que prometera à mulher cuidar da criança. Compromisso de fachada para ajudá-la a partir tranquila. Foi bom que ela lhe tenha feito o pedido de olhos fechados. Visse nos dela os seus teria desconfiado do engodo.
Soube da menina havia um mês que se encontravam. Relutou bastante ao desejo de morarem juntos. Nunca se afeiçoou á garota. Aliás, jamais se apegara a criança alguma. Bicho humano, ainda mais filhote, é carente demais e pegajoso, considerava. A enteada mais ainda. Veja só, porque morava com a mãe se arvorava a pensar ser ele o pai. Ia refletindo.
Às favas. Queria era a mãe: carinho, muito carinho mesmo e serviço de casa. Homem não sabe se cuidar. É incapaz de viver só. Dissera no dia em que ela chegou com as tralhas e a menininha.
Até o último dia, ela alimentou a esperança de que sua princesinha o cativasse. A frieza da atitude do seu homem para com a guria, gerava medo. Cuidaria mesmo dela depois do final? Nuvem sombreando vez por outra os pensamentos enquanto avançava a moléstia.
Teria sido esse receio que fez com que mantivesse cerrados os olhos ao pedir o compromisso? E se acaso no olhar dele enxergasse a falsidade do sim? Como poderia se entregar em paz aos braços da tão ansiada morte, livrando-se enfim do corpo exausto das tantas dores?
Quarenta anos se passaram. A menina, hoje é mulher madura, tem 44 anos. Quando a força daquele olhar se tornou angústia, a procurou. A casa virara prédio. Foi como se não houvesse nenhum passado. Ninguém sabia ter funcionado ali um tal Lar de Acolhida.
Teria sido este o quarto dela? Quartos de hospitais são todos iguais. Trouxeram-me para cá foi para que recordasse mais ainda a promessa não cumprida. Só pode. Como se tivesse em algum momento pelo menos me esquecido daquele dia, daquela hora, daquele instante. Droga morrer assim.
Tudo já combinado. Nem chegara o tempo da missa de sétimo dia e era o momento agendado da entrega. Acordou ainda na madrugada. Juntou as roupas, uns livros dados pela mãe e as bonecas em três sacolas. A certidão de nascimento e um pacote de fotos enfiou dentro de um envelope pardo.
Pela primeira vez sentiu pena de acordá-la. Deixou-a dormir até quando quisesse. Ao ouvir o barulho no quarto não ordenou. Pediu afetuoso que se vestisse com a roupa deixada de antemão pronta, meteu a camisolinha no saco dos livros. “Arrume-se menina. Iremos viajar”.
Gozado, sempre a chamara assim. Como se não tivesse nome. Pela primeira vez, desde que a mãe partira ela sorriu. Cantarolava o cravo brigou com a rosa ao entrar no taxi.
Tocou a campainha e aguardou. A senhora meio idosa, expressão indefinida no rosto, saiu à varanda. Sem dizer nada apanhou as sacolas juntando-as em sua mão direita, debaixo do braço meteu o envelope. A esquerda segurou firme a de Maria da Glória.
Meia volta e a puxou para entrarem. Aí se deu o olhar. Ela, corpo para dentro, rosto para fora, o mirava fixamente. Mirada de pavor de quem tomava consciência do abandono.
Aquele olhar nunca entrou por aquela porta com a dona dele. Ficou fora, agressivo, cortante tal qual a navalha mais afiada. Passou a persegui-lo por todos os cantos desde então. Daria tudo para que tivesse se petrificado lá longe, em algum lugar do passado.
Enfim caíra em conta de que não havia nada, nem dinheiro, no mundo que o matasse. Muito menos o escondesse. Aquele olhar hoje ainda o estará velando. Mais um pouco e o guiará pelos escuros do lado de lá daquela porta por onde entrou o pavor.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 15/10/2012
Alterado em 04/05/2016
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