Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O Lixão e o Livro

Eram três grandes amigos. Onde se encontrasse um, haveria a certeza de que os outros estariam por perto. Compartilhavam da mesma paixão, a leitura. Nos tempos dessa história eles já eram mais conhecidos pelos apelidos. Mário aos poucos tornara-se Izon, Celso foi virando Debuque e Jonas Deteibol.

Viviam em casebres, num lugar paupérrimo de uma cidade pobre. Isto num país de diferenças sociais imensas. Havia gente muito rica e outros que, como nossos companheiros nesta história, nada possuíam.

Por serem assim e viverem num lugar inóspito, encontrar algo interessante para ler não era tarefa fácil. Nossos colegas tinham como vizinho um lixão. Local no qual todo o detrito da região era despejado.

Suas famílias viviam daqueles restos. Desde a manhã até que escurecesse lá estavam disputando com ratos, baratas e urubus o sustento próprio e das famílias. Dizer que não conheciam lugares bonitos e cheirosos é contar mentira. Eles viajavam sim por cidades e locais estupendos.

Só que não faziam uso de carro, ônibus, trem ou avião. Seus passeios se davam através da mente. Eram as palavras, com sua linda magia, que os transportavam. Elas os libertavam da dura realidade, levando-os a voar para espaços de conhecimentos e sonhos.

As páginas se transformavam em potentes asas a conduzi-los para incontáveis e incríveis lugares. Cavalgando-as conheciam novas gentes, culturas, fatos, contemplavam a história e mesmo, incrível, visitavam o futuro.

Presos ao chão possuíam livres mente, imaginação e criatividade. Vivendo condições tão rudes como então, vocês devem estar se perguntando, se tornaram leitores? Quem os instruiu no encanto das palavras?

A gente olha assim, de fora, um ambiente tão desagradável e chega a imaginar serem do mesmo jeito as pessoas que lá residem. Engano. Em meio a toda aquela degradação viviam pessoas tão especiais como nós.

A diferença é que, ao contrário de tantos outros que tiveram acesso às escolas, cultura, viagens, cinemas e clubes, uma porção imensa da humanidade, como tantos moradores dos lixões, passará a vida inteira sem experimentar essas maravilhas.

O que se ganhava ali dava, mal e mal, para sobreviver. O lixo assemelha-se à pessoa que o produz. Vindo de gente rica tem mais valor. O contrário também se dá. Lixo de pobre é paupérrimo. E ali eram lançadas as sobras de um povo despossuído de quase tudo. Para se ganhar algo era necessário dar duro.

Desse jeito não bastava o pai de família (quando era presente) trabalhando no lixo. Toda a família envolvia-se nele. As mães, para que pudessem produzir o dia inteiro, necessitavam de um local próximo com alguém responsável pelo cuidado dos seus filhos. Lá havia gente assim.

Uma mulher, vinda de outros jeitos da pobreza e que as vicissitudes da vida empurrara para aquelas bandas, acalentava no coração o sonho de ser professora, mas oportunidade que é bom mesmo, não aparecia para ela.  

É que num país sutilmente racista ela não possuía a cor considerada  mais adequada para mestras. Além disso seus pais, boias frias, foram obrigados a várias mudanças em busca de sustento, o que a impedira de frequentar a escola. Por último havia também a saúde frágil. Quando criança sofrera paralisia infantil. Movimentava-se com dificuldade.

Mas esse tanto de empecilhos não a esmoreceu. Ao contrário, tornou-a mais forte e ávida não só pelo conhecimento, mas para passá-lo aos que dele tivessem necessidade. Seus pais, por onde passavam, davam sempre jeito de Lucinda, mesmo que por pouco tempo, pudesse aprender.

E aí devia haver o dedo de Deus, eis que nunca deixaram de encontrar almas caridosas que sem nada cobrar, eis que dinheiro não havia para pagar, com muito carinho e poucas condições a ensinavam.

Lucinda havia sido babá, protetora e professora não só dos nossos personagens, mas também de tantos outros meninos e meninas ali do Lixão. Criou um espaço para ensinar, a que chamou de creche e fez um pedido, logo tornado lei: Que todo livro encontrado no moturo fosse levado à creche. Com eles, passado algum tempo, tinha constituido pequenina biblioteca.

Como os livros infantis eram artigos raros, as crianças utilizavam os de adultos. A alfabetização se dava com a ajuda de livros jurídicos, jornais velhos, catálogos telefônicos e até folhetos de publicidade. 

Vez ou outra, apareciam um desses clássicos da literatura. Criar gosto pela leitura a partir de um deles se tornava tarefa bem mais fácil. Não por acaso eram esses os livros mais disputados. Mas a professora não os ficava aguardando e muito menos reclamava suas faltas.

Lucinda tinha o incrível dom de despertar, mesmo que fosse através de insosso texto, aquele encanto oculto que todos têm pela palavra escrita. Na prateleira dos clássicos cada um dos nossos amigos era possuidor de especial predileção. Izon amava os romances, Debuque as poesias e Deteibol apaixonara-se pelos contos.

Era tempo já da adolescência e aqueles braços eram imprescindíveis na lide diária pela sobrevivência. Sol a sol lá estavam eles, sacos às costas, em busca de sucatas e materiais recicláveis. Acham que pararam de ler?

Nada disto. A noite sempre os encontrava na casa de Lucinda. Além de lá poderem continuar lendo e estudando, haviam se transformado em monitores dos mais jovens.

Foi por essa época que Izon encontrou um livro mofado e com algumas páginas coladas. Nada diferente dos demais que recolhiam. Estava escrito em língua estranha que eram incapazes de entender. Tinha jeito de livro didático, mas não tinham chave alguma para mergulhar nele. Seu título era The book is on the table.

Apresentaram o achado à mestra. Ela foi olhando e sentenciou: “é livro de ensinar e aprender a língua inglesa”. Aí ficaram ainda mais curiosos e foi Debuque quem disse: “se a senhora soube que é inglês é porque conhece a língua e então poderá nos ensinar.

Quem sabe não será através dessa nova competência que teremos condições de tirar nossos pais e irmãos aqui do Lixão?” Deteibol fazia sinal de positivo com o polegar.

Aí Lucinda lhes contou que começara a aprender inglês com a filha de uma patroa da sua mãe. Uma garota muito boa. Só que além de ter ficado pouco tempo naquela cidade, isto havia ocorrido quando ainda era criança e de quase nada mais se lembrava. “Mas...” e ela fez menção de continuar. Olhares atentos exigiam que prosseguisse.

“... se vocês quiserem poderemos estudar juntos o livro. Aos poucos iremos desvelando, em equipe, seus segredos. Não é verdade que várias cabeças pensam mais e melhor do que uma?” Assim ela sugeriu, desse jeito eles toparam. Dali por diante, nas noites havia sempre um tempo de estudo dessa nova língua.

E foi porque só falavam disso daí por diante, que seus amigos começaram a chamá-los pelas partes do título do tal livro. Convidaram outros jovens para estudar com eles, mas a gente sabe que para isto é preciso disciplina. Tremenda força de vontade. Acresce que por este tempo tinha chegado luz elétrica ao Lixão, o que significava que noite não era mais hora de se estudar, ou ler, mas de assistir novela.

Houve um final de domingo bem triste. Lucinda os reuniu e lhes disse que não mais iria ensiná-los, nem estar com eles. Não entendendo nada os três estavam chocados. Ela então, devagarzinho, lhes foi explicando que eles já sabiam bem mais do que ela e que, se permanecessem ali, ficariam acomodados e nunca iriam crescer.

“Não façam como eu. Desafiem-se sempre. Saiam, vão embora daqui. Vocês estão mais do que prontos para isto. Busquem fora uma escola onde possam fazer o supletivo e provar que têm inteligência, são bons e competentes.”

Sentiram grande medo, mas aos poucos, encorajados pela professora, foram se acostumando com a ideia e enfim partiram. Seus pais ficaram tristes, eis que tiveram a impressão de que estavam sendo abandonados por seus filhos.

A grande experiência acumulada ajudou-os quando da contratação como garis. Afinal tratavam-se de jovens que nasceram em meio aos detritos da cidade. À noite se matricularam em um colégio, onde puderam aprender mais, além de ter validado todo aquele conhecimento obtido com a fada madrinha Lucinda.

Foi moleza superar o desafio do supletivo. Estudavam agora para o vestibular. Em dois anos frequentavam a Universidade. Todo conhecimento que tinham, além da vivência dos valores assimilados na “Escola do Lixão” faziam deles líderes e não havia passado muito tempo quando dois tinham se tornado encarregados. Izon era supervisor.

Seus pais não necessitavam mais trabalhar. Ganhavam o suficiente para sustentá-los e mesmo mudar-se. Mas não saíram, afinal, ali estavam suas vidas. Não queriam ir embora. Então, obras em suas casas foram feitas, bem como também na residência e escolinha de Lucinda. A biblioteca ampliada com o tanto de livros novos que adquiriam, liam e depois doavam.

Um livro apenas possui muito mais magia do que mil varinhas de condão, ou uma fileira imensa de poderosos caldeirões de bruxas. A incrível magia contida no interior de um livro posto sobre a mesa, transformara não só suas vidas, como também as daquelas pessoas que eles tanto amavam.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 18/02/2013
Alterado em 22/03/2017


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