Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O menino, o cachorro e o milagre 

Ladislau, no dizer de Paulo Cesar, era mesmo da pá virada. De modo algum conseguia aprender e praticar bons modos. Por isto o sobrenome Rude lhe fora aposto, pouco tempo após a sua chegada. Ganhou-o depois de ter estraçalhado os sapatos novos de Marília, a esposa de Paulo. Lau, como Lucas, o filho único dos dois, o chamava era definitivamente um ser desprovido de bom senso e boas maneiras.

Presente de seu Juca, dono do lugar onde PC levava o carro para lavar sábado sim outro não. Naquele dia ao buscar o automóvel o cãozinho, todo serelepe, bandeou-se para o seu lado. Lembrou-se então de um cachorro negro que teve quando criança e sorrindo o apanhou no colo.

Observando a cena o homem disse: “Cachorro é que escolhe o dono e este aí quer ser seu. Você deu sorte, está para doação. Aqui no Lava-jato não posso ter cachorro”. “Presente de grego” retrucava Marília, naquelas vezes em que o filhote aprontava das suas, quer dizer, todo santo dia.

Ladislau Rude era um cãozinho preto e alegre, como tantos outros que costumam andar pelas ruas. Pra não dizer que era igual aos outros, digamos que possuía como diferencial as suas seis pontas. As quatro patas, rabo e focinho brancos. E o doador valorizava a prenda: “Filhote de labrador. Repare no porte dele. Apesar de ainda pequeno já se vê que é possuidor de boa raça”.

A mulher era dona de opinião oposta: “Sai para lavar o carro e volta com um filhote de vira-lata. Se esse bicho é labrador eu sou princesa da Inglaterra”. E não parava por aí, o discurso continuava: “Fosse cuidar da criação tudo bem, mas além de não dar educação, jamais que é capaz de lhe limpar as sujeiras”.

Dona Matilde, a faxineira que vinha duas vezes por semana, ao ver o bicho pela primeira vez ficou cativada. Pena que tal encanto durou o tempo do primeiro xixi de Ladislau no tapete. Mais duas horas de convívio e já havia proferido a sua primeira sentença: “Precisa levar logo esse cachorro para benzer”.

Lucas estava fascinado. Até então nunca tinha brincado, muito menos tocado, num animal vivo. Agora estava ali diante dele aquele cãozinho lindo e melhor ainda, sempre disponível para brincadeiras. O que o deixava entristecido era o fato da mãe detestar Lau. Ficava a dar tratos à bola tentando imaginar como alguém que ele amava tanto, fosse incapaz de gostar de tão encantadora criatura?

Como as coisas boas, como a chegada de Ladislau, algumas vezes são acompanhadas de outras desagradáveis, o casamento de Marília e Paulo, que não estava bem fazia um bom tempo, desandou de vez. Num domingo, hora da música do Fantástico, o pai olhou bem para Lucas, lhe tascou um beijo, meteu gorda mochila nas costas e saiu puxando a grande mala de rodinhas barulhentas.

Parece que o bicho, ao contrário do menino que custou a compreender o que se passava, entendia tudo. Tanto que ficou quieto, deitado lá no seu cantinho. Olhos tristes para PC, que nem veio se despedir dele. Marília, entre lágrimas, só foi capaz de dizer ao filho que o pai tinha ido fazer uma viagem mais longa.

Tomou mais ciência das coisas quando Dona Matilde descobriu os pés da cristaleira, herança de família, roídos. Com muita raiva a mãe dizia para ela. “O danado sai de casa dizendo que viria buscar a desgraça desse cachorro, no máximo, em uma semana. Já se passaram dois meses e nada dele levá-lo”.

Cabeça de criança pensa cada coisa. Até costuma confundir uns troços. Lá dentro dela os assuntos ficam misturados. Parece que rodam de um lado para o outro, sem que se consiga tirar sentido nos acontecimentos. Nesse imaginar assim meio doido, não é que Lucas chegou a pensar duas coisas malucas?

A primeira é que tinha sido Ladislau Rude o responsável pela tal da longa viagem do pai. A outra foi que a ausência paterna não possuía relação alguma com o animal, mas com ele, que não havia sido uma criança boa.

Nada a ver nem uma coisa e nem a outra. Tudo se dera, infelizmente, pelas incompetências do casal em manter o matrimônio. Mas não é disso e sim de outro fato que quero lhes falar. É que imediatamente depois dessa hora, em que a mãe falara que aguardava o marido vir buscar o cão, foi que Dona Matilde pronunciou, solene, a sua segunda e com ares de definitiva, sentença: “Esse animal só com exorcismo”.

Contava-lhes de duas coisas que vieram criar minhocas na cabeça de Lucas. Havia uma terceira, mas esta, ao contrário das outras que faziam parte só do seu imaginário, parecia ser bem real, o que terminava por gerar no menino, além da tristeza pela saudade do pai, enorme medo de uma segunda perda. De PC chegar e levar Lau com ele.

Desejava tanto o pai e queria demais o cãozinho. Os dois juntos com ele e a mãe na casa seria tão bom. Acaso houvesse a necessidade de se abrir mão de alguém, vá lá. Que Dona Matilde fosse então, representando o pai, realizar essa tal viagem bem longa da qual lhe falara Marília naquele domingo tão triste.

Pior é que a impaciência da mãe com o filhote aumentava a olhos vistos. Lucas tentava ao máximo esconder os maus feitos dele. Pela manhã ao acordar e quando voltava da escola, realizava uma inspeção pelo apartamento, em busca das coisas erradas do seu cachorrinho.

Sim, seu cachorrinho. É que ausente o pai e com a antipatia da mãe e da faxineira pelo animal, sentia-se no direito de assumir a propriedade, bem como também a defesa de Ladislau Rude. Foi então que o nosso amiguinho fez interessante relação, a respeito das duas sentenças de Dona Matilde. Era uma terça-feira de tarde e ele raciocinou bem assim: “Se benzer é coisa de Igreja, esse tal de exorcismo também deve ser”.

No sábado iria haver o catecismo e aquela foi a semana mais demorada de passar, que já tinha acontecido na vida daquele garoto. Fez mais rápido ainda que de costume o em nome do Pai, que fecha as orações iniciais e levantou, ansioso, a mão. “Que foi meu filho, o que quer nos dizer?” Perguntava-lhe a bondosa Irmã Gertrudes, a catequista.

“É que tenho um cachorrinho, sabe? Mas ele possui um problema bem grande que nem sei como resolver. Mamãe não gosta nada dele e a faxineira disse que ele precisa de um exorcismo. Como pensei que isto fosse coisa de religião, quero lhe perguntar se a senhora poderia fazer exorcismo nele para mim?”

O exorcismo da freira ela pensou sorrindo. Olhou-o então com todo carinho e ficou refletindo como haveria de lhe responder. Na verdade, nem para gente ela acreditava na necessidade de se exorcizar. Deus que é Pai bom e todo poderoso, jamais deixaria que o capeta tomasse o corpo de algum dos seus filhos. Era dessa forma que ela via a questão.

O jeito que encontrou foi bem simples. Falou então, desse jeitinho, com Lucas: “Meu filho, será você mesmo quem cuidará de levar não o exorcismo, mas uma bênção especial de São Francisco de Assis, que tanto amava os animais, para o seu cãozinho. Como é mesmo o nome dele?” “Ladislau Rude, mas pode chamá-lo de Lau”. Ele respondeu.

Da pia de água benta Irmã Gertrudes encheu um vidrinho. Entre seus guardados encontrou a medalhinha de São Francisco com a imagem do santo pregando aos animais. Apanhou papel e caneta e criou pequena oração para ele fazer, diante de Ladislau. Dizia assim:

“Deus, eu sei que o senhor criou todas as coisas, todos os bichos e todas as gentes. Sei também que ao olhar o que havia feito, o Senhor exclamou feliz que tudo que tinha criado era bom. Por isto também o meu cãozinho é do bem e só precisa crescer logo para se comportar melhor. Então peço a São Francisco de Assis, que tanto amou as criaturas de Deus, para que abençoe, em seu nome, Deus, este meu cãozinho e cuide dele, para que seja, daqui por diante lá em casa, mais educado e cuidadoso com as coisas e pessoas, como qualquer um dos seus filhos deve ser”.

Era importante, a freira o alertava, que fizesse tudo com bastante fé. Terminada a oração seria então o momento de aspergir a água benta sobre o pelo negro do bichinho. Para que o chão não ficasse molhado, gerando novo problema pelo qual, obviamente, Lau seria injustamente acusado, que forrasse o chão com uns jornais velhos. Ao final de tudo, que Lucas não se esquecesse de pedir à mãe ajuda na tarefa de prender na coleirinha a medalha.

Tudo fora feito exatamente do jeito ensinado pela catequista. Poucos dias haviam se passado quando, ao chegar da escola, pode ouvir o papo entre Dona Matilde e sua mãe: “Que será que houve com esse cachorro que agora está tão bonzinho e obediente?” E Marília, que só sabia da parte da medalhinha, respondeu: “foi uma medalha que o Lucas trouxe do catecismo e me pediu para colocar em sua coleira. Acho que aqui em casa tivemos um milagre. Nem quero mais que Paulo busque o cãozinho”.

O menino, mesmo sorrindo, sentiu as duas lágrimas saltando dos olhos. Naquela noite dormiu bem mais tranquilo. Mas antes de cair no sono, em sua oração, pediu com aquela mesma força que tivera ao lançar nos pelos de Lau a água benta, que Deus concedesse à sua família um segundo milagre: Trazer de novo seu pai para casa.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 29/04/2013
Alterado em 22/03/2017


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