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Mulher velha
Pronta! É desse jeito que se sente. Preparadíssima para ir embora. Era como se houvesse iniciado a subida dos degraus do ônibus com destino ao infinito e isto lhe dava uma alegria suave, como costuma ser a brisa nas noites de maio. Ao mesmo tempo, antes de alcançar o interior do coletivo da liberdade, algo a travara e isto lhe gerava cansaço e preguiça.
O corpo que lhe tivera sido tão pesado, dava a impressão de estar leve, no ponto para partir enfim. A imagem que lhe vinhal agora é outra. É como se mil balões coloridos estivessem amarrados ao seu corpo, puxando-a para intensamente para o alto. Só que nos pés cordas grossas resistiam, mantendo-a presa àquele leito. A ânsia era de virar anjo, daqueles de Igreja, com asas bem grandes, para alçar voo.
Aquele medo de não haver céu, que se acostumara a sentir nos tantos momentos de angústia e dor, desaparecera por completo. Haveria de ter sim, e Deus não iria deixar que nele ela continuasse a ter uma existência tão desgraçada, como esta que terminava de viver. “Lá serei princesa da corte de Nossa Senhora”. Foi o que naqueles dias, enfática, tinha definido.
E agora, quando o que mais desejava era descanso e paz, lhe chegara, qual enxurrada forte que desce amarela e barulhenta carregando tudo o que encontra pela frente, a chatice e o alvoroço provocado pela descoberta que fizeram. Era a mulher mais velha do mundo. No início até tentara fazer umas expressões de alegria e sorrisos, mas depois se enfastiara do fingimento. A partir daí saía nas fotos, em meio aos que a ladeavam mostrando as canjicas, com burocrático rosto de paisagem.
Extenuada por tanta festa, constante optava por cerrar os olhos. Fingia dormir. Desejava estar só, mas as ondas de gente a se derramarem sobre o leito só iam aumentando. Depois de uma vida tão longa fora deixando de ter certezas. A última a ser abandonada, por razões que lhe pareciam óbvias, foi a da inexorabilidade da morte. O certo é que Deus a havia esquecido. Ou, quem sabe, desejaria dela algo que sua cabeça era incapaz de compreender.
Ria de imaginar que Ele lhe fosse pedir um filho, tal qual Sara e Isabel. Mulheres que por graça divina haviam concebido na velhice. “Engravidar com este corpo, além de decrépito, desobediente que só ele, seria algo por demais esquisito”, refletia concluindo: “Só se Deus for louco e talvez o seja eis que aqui vou vivendo.Totalmente olvidada dele”.
Os seus cento e dezesseis anos foram descobertos pela assistente social do Asilo. Suspeita mandada investigar nos apontamentos da Igreja antiga, que servia àquelas freguesias por onde havia nascido, foi logo confirmada. Cândida da Anunciação, preta livre, nascera na Fazenda de Santa Rita do Brejo em 25 de março de 1890. A notícia foi se espalhando tal qual rastilho de pólvora. Duas horas depois já estava posto numa mesinha ao lado da sua cama e que até então nem existia, o ramalhete de flores enviado pelo gabinete do prefeito.
Na internet as consultas feitas ao Livro do Guiness comprovavam o que todos mais aguardavam. Com dois anos de dianteira sobre a segunda colocada, do Japão, era brasileira e mais ainda, dali juntinho deles, a mulher mais idosa da terra.
Daí que há três dias só havia homenagens e celebrações e hoje ainda está programada a festa por excelência. Coisa suntuosa contando até com a presença do governador. O danado disso tudo é que ninguém aparecia para lhe proteger das luzes de flashes dos fotógrafos, do tanto de gente que a chamava de vovó e que jamais tinha visto a cara e das perguntas difíceis, ou mesmo idiotas dos repórteres.
Não possuía mais ninguém e de uma hora para outra parecia que todos a tinham. Sentia-se mal neste papel de celebridade. Logo ela que tivera a vida mais sofrida, tendo que fazer aquilo que vai contra a natureza, que havia sido enterrar as borboletas, suas três filhas.
Sabia haver uma penca de netos, mas eles, talvez para não terem que assumir os cuidados com a idosa, quem sabe por preguiça e esquecimentos, ou mesmo lhe pesassem o passado da avó pecadora, foram desaparecendo pouco a pouco de sua vida.
Amigas de muito tempo não tinha mais. A última quando morreu ela não tinha feito nem cem anos. Agora só as novas amizades do asilo, mas essas nem costumavam visitá-la. Apesar de viverem bem próximas, quem sabe achassem seus silêncios serem descasos e suas poucas conversas bobas.
E de repente, como se houvesse rica herança em jogo, até a parentada desconhecida uma parte e desaparecida outra, avançava sobre ela chamando-a de vovó, bisa, voinha querida e outros nomes assim eivados de falsidade. Algumas entrevistas à imprensa até pôde ouvir, pois imaginavam que quase nada escutasse e assim foram dadas ali à volta do leito.
Mentiam descaradamente. Afirmavam jamais ter perdido contato com sua velhinha amada. Obedecessem as mãos, daria uma palmada na que mais falava e que nem conhecia. Pior ainda, essa bisneta gostava de se assentar na cama e lhe acariciar, cúmulo da desfaçatez, seu rosto.
A cabeça, esta vivia plenamente. Parecia que a lucidez, que nunca a abandonara, agora se avivava mais ainda. Nem os ouvidos que os de praticamente todo velho costumam ir se tapando, apresentavam problemas.
Escutava tudo e muito bem. Apenas por conveniência fingia não ouvir algo que não lhe fosse interessante. A voz perdera firmeza e força, mas mantinha-se audível, desde que o ouvinte estivesse ao seu lado no leito. Da boca para baixo é que bem pouca coisa ainda funcionava a contento.
A jornalista, de supetão, lhe perguntara sobre a saudade. Tomou susto ao descobrir não se lembrar da última vez que tivera tal sentimento. Envergonhada, passou a se sentir bem incomodada com esta constatação. “Como é possível alguém não se lembrar de quando teve saudades? Como é admissível um ser humano viver sem saudades?”
Eram perguntas que ia se fazendo enquanto rodeada de gente a lhe paparicar. Chegou a pensar, ela que jamais se considerou senil, se tal fato não seria a comprovação de uma sua, até então, desconhecida caduquice.
Estranho era que se lembrava de todos que amara, ou odiara, vida afora. Só não sentia era esse negócio assim explícito das saudades, que reparava nos outros. Corações arfantes e reclamando pelas faltas das pessoas amadas. Fosse outra, mas logo ela que tanto chorara as dores causadas pelas ausências e partidas. O que havia, aquilo que sentia na pele, eram as lembranças das pessoas amadas com aquele gosto apreciável de se ter bem convivido. “Será que confundia as coisas e seria isto, bem assim desse jeitinho, a saudade?”
“Será quê?” E seguia matutando suas crenças. “Dos amigos e amados nem carecia de ganhar as saudades, eis que viviam juntos todo o tempo”. Uma presença diáfana e gostosa. Conversava com eles, até os via, e fazia planos para o dia, “tomara que hoje ainda”, em que iria, enfim abraçá-los de novo.
Numa nova intuição entendeu que a saudade é uma porta e só eram capazes de senti-la aqueles que estivessem no interior dela. Só que Cândida estacara sob os batentes. Nem havia ido e nem estava mais do lado de cá. Sentia-se precisada demais do empurrão de algum anjo de Deus, para que alcançasse o último degrau da condução, capaz de conduzi-la para o porto do outro lado da vida.
Não sabia bem qual teria sido o momento, a partir do qual passara a desconsiderar o calendário, como marcos de passagem do tempo. Nem deve ter havido um ponto exato para isto. Melhor imaginar que tivesse acontecido no pingar de goteira, bem no regrado do pouco a pouco.
A contagem agora se dava pelos tipos de eventos ocorridos em largos tempos. As Eras. A cada uma delas, tal qual o horóscopo chinês, batizava com o nome de um bicho. Sua vida comportava sete Eras: do Rato, Cachorro, Borboleta, Burro, Gato, Escorpião e por fim a do Carrapato.
A Era do Rato aconteceu nos tempos longínquos de sua infância. Esse bicho mesmo, nenhum ela recordava de ter então visto. Este é animal noturno, que aprecia dar as caras quando a criançada já despencou no sono. Apesar de não vê-los, corroboravam suas presenças as pequenas feridas nas plantas dos pezinhos e pontas dos dedos, amanhecidos sangrando.
A mãe olhava aquilo, lavava os machucados com cachaça e os benzia com a folha seca, guardada detrás da imagem de Santo Antônio, desde a última procissão de Ramos. Enquanto cumpria esse ritual abençoando os pés, ia amaldiçoando as ratazanas vindas, segundo ela, desde o breu da noite, lá do canavial.
Mas daquele tempo do Rato essas feridinhas poderiam ser mesmo desconsideradas, ao se avaliar o que a família de Cândida vivia. A miséria era absoluta. A fome tanta que as mamadeiras dos pequenos necessitavam ser cheias segundo três medidas: uma do leite trazido pelo pai do trabalho. Outra da água que esta era abundante e a terceira de cachaça, roubada pela mãe na cozinha da casa grande. Esta mistura auxiliava trazendo mais depressa o sono e assim espantava, para o mais adiante da manhã, a fome.
Tempos terríveis de se enterrar vários anjinhos pretos, não só de sua casa, mas também filhos dos outros ex-escravos das vizinhanças. O cativeiro havia acabado e os fazendeiros, com raiva da Princesa e para provar que os negros eram incapazes de sobreviver sem eles, largavam, sem eira nem beira, os pobres coitados no mundo.
Mantida estava a exploração daquela mão de obra. Só que o pagamento pelos serviços prestados na lavoura e demais trabalhos, era cumprido com alguns poucos mantimentos, que mal davam para eles próprios se sustentarem. Coisa a ser levada à filharada era um quase nada.
Inácia trabalhando na cozinha e seu homem a cuidar dos cavalos do fazendeiro, sentiam-se plenamente incompetentes como provedores da família. Das éguas paridas vinha aquela miséria de leite, ordenhado escondido para as crianças, eis que das vacas tudo que era tirado ia para os patrões e feitura dos queijos.
Sigefredo, preto forro com nome de lorde, no dizer jocoso do patrão, picado de cobra ao campear uma égua mais arisca, morreu naquilo que Cândida considerava como o auge da Era do Rato. Tinha onze anos quando a desgraça do falecimento do pai ocorreu. Ela que, até então, permanecia com os três irmãos mais novos, para que a mãe pudesse trabalhar nas cozinhas, passou tal cuidado para Zico, de nove anos. Assim podia servir no canavial, ou em outros misteres lá na roça, ou ali pela casa grande. Crianças sobreviventes da penca de não se ter certeza de quantos haviam sido exatamente, mas seguro que mais de quinze.
Eram livres e filhos de Deus. Esse Deus que diziam ser pai e bom, mas que de bondade nunca que tinha demonstrado nada para ela e sua gente. Inácia, numa noite em que os filhos famintos choravam demais, cochichou com Cândida que não aguentava mais aquela vida madrasta e que sumiriam dali no dia seguinte. Buscariam lugar melhor se não para viver, que tal possibilidade só acariciava os ricos, pelo menos para sobreviver.
Juntaram suas ninharias e partiram. Como não eram considerados na presença, menos ainda o seriam ausentes, a mãe pensava. A madrugada amanhecera ainda mais fria. Geava forte, mas não dava para adiar as coisas. É que Inácia na noite anterior havia preparado uma matula na cozinha da fazenda, juntando um tanto de farinha, carne seca e uns bocados de pão, para terem o de comer, pelo menos nos dois ou três primeiros dias de jornada. Ficassem e o roubo seria descoberto.
Os filhos, acordados no meio da noite para que levantassem e se arrumassem bem rápido, se encontravam animadíssimos e alegres, mesmo nem sendo capazes de imaginar o que dali por diante iria acontecer. Exceto Candinha que ao longo da noite mal dormida, pôde elaborar vaga ideia do que significava partir. A mãe teve que ser mais rude para que não dessem risadas despertando a vizinhança, ou pior ainda, fizessem a cachorrada latir.
Estavam no caminho e o para aonde seguiam, será que alguém saberia? Parece que nem Deus. Nascidos todos por ali mesmo, o lugar mais distante que Inácia tinha visitado era a vila Viçosa e esta distava somente meio dia de caminhada batida. Foi esta a trilha, por ser a única que conhecia e por isto lhe gerava segurança, a que seguiram.
Inácia tinha um menino de dois anos enganchado nas cadeiras, a boroca com as coisas roubadas penduradas no ombro e alguns panos. Cândida levava a irmãzinha na cacunda e Zico, esse além de poder ir andando, carregava também outra bolsa, com os mais que parcos trens da família.
Mais de meia hora de caminhada tinha acontecido, quando se deram conta de que estavam sendo seguidos. Eram os cachorros de casa que Inácia tinha definido por não trazer, eis que seriam mais duas bocas para comer e também por achar que, mesmo havendo sido criados praticamente no seu barraco, não eram seus, mas do dono de tudo e que já havia furtado o que era necessário levar.
Por saber que tentariam segui-los, arrumou jeito de deixá-los prisioneiros no interior da tapera. Só não contava é que saltariam a janela, protegida somente por um pano de aniagem que, com o passar do tempo, tinha se tornado ainda mais pesado e grosso pela sujeira e que chamavam cortina.
Primeiro, com palavras mais duras, ordenou aos dois que voltassem. Eles faziam que sim, mas se mantinham meio escondidos, protegidos pela neblina, no mato mirando com olhos bem pidões aquela estranha procissão no escuro. Catou pedras então e aí eles correram uns poucos metros, estacando novamente. Agora no meio da estradinha. Inácia deu passos na direção deles e lançou, com raiva, três calhaus. Os bichos então sumiram na escuridão.
Foi resmungando com Cândida, que ela também devia ter jogado pedras, o que não tinha feito por desejar demais da conta que Diana e Rex fossem com eles, que a mãe retomou a liderança da caminhada. Foram as crianças que primeiro notaram o retorno dos bichos. Mantiveram-se cúmplices em silêncio. Os cães seguiam com eles a seguras distâncias.
Passarinhos, aqueles mais madrugadores, já ensaiavam seus cantos e primeiros voos. Por cima do morro, meio escondido pela névoa, o céu ganhava uns tons esquisitos, bem diferentes da escuridão até então reinante. O ânimo inicial das crianças havia cessado e Cândida, extenuada, não aguentava mais carregar o irmãozinho.
Escutaram barulho de água e pararam para breve descanso ao lado de um regato. Lugar ainda mais frio, mas careciam de beber e mesmo comer algo, no ganhame das forças e continuar até o não sei onde. Acostumados aos monossílabos e grunhidos da mãe, os filhos surpreendiam-se com sua loquacidade. Falava sem parar mostrando flores, a beleza do sol a surgir, os peixinhos no regato, a teia de aranha com seus milhões de gotículas brilhando ao sol.
Inácia enfim reparou nos bichos sentados e os olhando desde lá de trás. Desistiu de enxotá-los. Gostava também daquelas criações e começava a visualizar serventias na presença deles. Além de lhes diminuir os medos naquele mundéu desconhecido, poderiam, bem pensou, ajudá-los a arrumar comida. Cândida com o dia que começava, via nascer ali também a Era do Cachorro.
Tomaram de novo a estrada e seguiram em frente. O cuidado que Inácia mantinha era no sentido de avançar para o mais distante do passado. Tal decisão significava, no seu modo de entender, dar uma volta e não passar pela vila conhecida. A partir desta regra, caminhar sempre para adiante, evitando as estradinhas laterais, eis que estas terminavam sempre em porteiras de fazendas.
Dificuldade havia quando davam com as encruzilhadas. Daí que usavam estes três critérios: o que parecesse seguir mais reto para adiante. Se ainda em dúvida soltavam as criancinhas mais novas, lhes instigando para que caminhassem. Por terceiro, no caso de permanecerem quietas, porque cansadas ou assustadas, Inácia passava para Cândida a decisão de deliberar o rumo a ser perseguido.
Somente pararam das dez às três da tarde, que cristão algum aguentaria manter as passadas, sob um sol daqueles. Escolhido lugar com água, distante uns duzentos metros da estrada, banharam as crianças, lavaram os rostos e molharam as cabeças. Comeram da farofa e, estendido um lençol, à sombra de um juazeiro, dormiram.
Acordaram com os latidos dos cães, acoitando uma família de quatis no alto de um umbuzeiro. Animados pelas quatro horas de sono, sentiam-se prontos para retomar a jornada. Parece que naquele pouco tempo os pequenos tinham envelhecido e amadurecido, o que não havia acontecido desde os seus nascimentos. Assim resmungavam e choravam pouco, o que já era de grande auxílio numa situação daquelas.
O dia desejava já anoitecer e Inácia não encontrava nenhum lugar que pudesse lhes servir de abrigo. Sua aflição transbordara no cansaço de todos. As primeiras estrelas brilhavam no céu quando uma vaca mugiu por perto. Zico , sem nem pedir autorização, reparou na trilha do gado à esquerda e se embrenhou por ela. A mãe gritando preocupada com a possibilidade de que se perdesse e ele, nem tchum, que estivesse escutando.
Poucos minutos se passaram e lá vem o menino rindo de todos os dentes. Encontrara um barracão abandonado logo adiante. Inácia ao chegar teve receios de descansar ali junto aos filhos. Sujeira demais, mas lixo não seria o problema. Antes do escurecer total arrumariam canto mais limpo para esticar os ossos. O perigo eram aquelas paredes curvadas para dentro. Duas madeiras, quiçá bem podres, renitentes, as travavam lá no alto.
Uma chuva ou vento mais forte poderia provocar suas quedas e do jeito que estavam tortas, cairiam em cima deles. Mas na falta de opções, a ficar no largado do tempo, melhor que se protegessem lá dentro. Minimizando o risco a mãe fez a fogueira do lado de fora e depois de limpar área, no qual o adobe da parede parecia estar mais firme, foi colocando lá os filhos já dormindo. Sairiam bem antes do amanhecer.
Caminharam mais meio dia e haviam parado para descansar e se esconder do sol. Na verdade dormiam todos resguardados por grossa laje avançando sobre uma pedra lisa. Inácia foi despertada pelos latidos. Os cachorros correndo, em desabalada carreira, na direção da estrada.
No ar se ouvia uma gemeção, que lhe era bem conhecida da fazenda. A cantiga desesperada de um carro de boi se aproximava. Deixou os meninos dormindo e andou até o ponto mais alto daquelas pedreiras. Lá embaixo pôde ver, tangido por uma velha, o carroção subindo, lentamente, a estradinha pela qual haviam passado.
Desceu rápido e acordou as crianças. Como eles a carroça também seguia na mesma direção. Mesmo de longe, pelo barulho mais forte e triste das rodas, sabia estar viajando vazia. Pediria uma carona então, que esta é coisa que cristão não nega. Em poucos minutos de prosa, pareciam ser amigas desde longa data. Com mais duas horas de caminhada, sentadas com as crianças pelas beiras do carro de boi, uma já sabia da outra todas as variadas desgraças pelas duas experimentadas.
Viúva também, era possuidora de barriga ruim e nenhum filho tivera a graça de gerar, ao contrário do marido que os tivera em demasia. Até criara uns dois cuja mãe sofria dos nervos, “mas filho assim que não é da gente, senhora sabe, acaba partindo sem deixar e nem querer notícia”. Fora lavadeira a vida toda. Os panarícios nos dedos a impediam, desde uns tempos, o exercício da profissão.
“É que o fazendeiro daqui, na precisão de braços para a lavoura, que os negros partiram, acabou que ficou sem carreiro”. Ela, pau para toda obra, assumira a função da qual gostava por demais devido a essas coisas: “Boi é bicho que escuta sem discutir com a gente. Gosto de falar com eles. Ainda mais que essas estradas, senhora já percebeu, vivem vazias. Pouca gente no pra lá e pra cá de viagens e aprecio o silêncio. Por último é que desse jeito não tenho mais os dedos inflamados e doloridos. A dona acha que arrumaria serviço melhor? Senhora querendo lhe apresento Gerôncio, o capataz. Ele haverá de lhe arrumar alguma serventia e existirão por aí antigas taperas de escravos abandonadas que poderão tomar”.
“Deus seja louvado de eu encontrar senhora assim tão boa em meio à fuga lá da Santa Rita do Brejo. Aceito sim seu adjutório e gostaria de permanecer por aqui, pelo menos uns tempos com as crianças.” “Só não compreendo, Dona Inácia, é este negócio de a senhora dizer que está em rota de fuga. Mas não sabe que faz tempo que a escravidão cessou? Preto deve obrigação é só a Deus”.
Inácia balançava a cabeça corroborando as palavras da velha, por modo de não ter que esticar explicação. Ela sabia muito bem do que escapava, sem nem possuir vontade de mirar o caminho percorrido. Do que queria grande distância, do que desejava esquecer, do que necessitava fugir era do passado.
Não que aquele período tenha sido de bonança. A pobreza se mantinha e as dificuldades, mesmo com Zico agora também tendo seu ganha pão, ajudando a mãe no trabalho do canavial. E ressalve-se que naquele lugar a diária era bem maior do que na Fazenda. Por conta disto, as barrigas passaram a receber nacos maiores de alimento. Ali também encontraram gente boa, que auxiliou a família no mutirão de levantar um barraco, para se esconderem pelo menos do sol e das chuvas.
Na Era do Cachorro o Amor andou visitando aquela gente. Cândida já tinha seus catorze anos, quando tomou tento em reparar a aflição de alegrias que sentia, ao se encontrar com Jorge, menino dois anos mais velho e que se tornara amigo e protetor. Reparava nas tantas aleluias que a presença dele lhe ofertava. Era estarem juntos e lhes tomar uma vontade assim, de ficar rindo de qualquer bobagem. Mas as coisas boas não davam de permanecer muito tempo junto dela. Nem um ano havia se passado quando os pais dele tomaram a decisão de ir emborar. Buscariam algum canto que lhes propiciasse melhores condições de vida.
Incontáveis vezes lavou o rosto com as lágrimas, pela ausência do namorado. Ele jurara porque jurava voltar um dia para buscá-la. Mas mesmo que tal sonho viesse a se concretizar, não iria mais encontrar sua amada. É que ao final do Tempo do Cachorro, Cândida teve que cair novamente no mundo.
Mas o Amor não aconteceu só para as bandas de Cândida. Sucedeu-se que a mãe começou a se engraçar pelo Leovegildo. Negro sarará também trabalhador de lá e que até auxiliara no mutirão de se arrumar a casa. Daí a levá-lo para o barraco onde vivia com os filhos, durou pouco tempo. Mas o danado não tinha olhos apenas para Inácia. A lindeza de Candinha, na flor da sua adolescência, lhe geravam uns desejos.
Numa noite de sábado mãe e namorado chegaram falando alto, depois de dançarem e tomarem umas pingas. Inácia queria os carinhos do seu homem, mas ele fingiu dormir até que ela desanimasse daquele intento. Mas o cão estava era na espreita. Foi só escutar o ronco da mulher para se levantar e ir bolinar a enteada.
Foi com enorme grito que Cândida despertou. O homem cheirando a cachaça em cima dela. Clamou pela mãe, mas esta acordou e, ao invés de brigar com Leovegildo, pôs-se a gritar duro com a filha por ter seduzido o marido. Ainda tentou argumentar, mas agora eram os dois que estavam a jogar na sua cara, o tão feio era aquele seu comportamento de rameira, tão terrível, algo mórbido.
Que só esperasse o raiar do dia e fosse embora. Esta era a ordem explícita de Inácia à filha. Desesperada, sem entender bem o que se passara, com grande medo daquele homem que a ameaçava, agora rodando na mão a corrente do canivete e, mais triste ainda, tomando consciência de não possuir apoio materno. Só juntou sua escassa tralha, dois vestidos, a imagem de Nossa Senhora, um vidrinho de perfume e o anel de latão, presentes de Jorge e estava, como alguns anos antes, novamente na estrada sem saber para onde seguir.
Conforme aprendera, a direção era sempre para adiante. Nada de entrar em caminhos à direita ou esquerda. Saiu em desabalada carreira chorando agoniada. Correu até não aguentar mais. A partir daí seguiu andando em passos rápidos, se escondendo cada vez que ouvia barulho de gente a pé, ou a cavalo. Estava só no mundo. Nem mãe para ir à frente, nem irmão para carregar e muito menos cachorro para lhe proteger.
Caminhava célere com vistas a afastar o medo. Nem bem o dia tinha amanhecido e deu com um barraco do qual saíam com seus facões de cana, um casal a puxar pelas mãos duas crianças e seguidos por uns cachorros. Deu um tempo até que sumissem na virada da curva e se aproximou. Tinha por lá um resto de café quente e bebeu. Desejou uns pedaços de linguiça a defumar sobre o fogão e pegou a metade. Numa lata de leite botou farinha. Ia saindo quando reparou no olhar triste de Santa Rita, na estampa esmaecida, a lhe mirar. Pediu perdão à santa pelo roubo e chorando novamente tomou a estrada.
Deu-se conta logo depois que caminhara uma noite e manhã quase inteira. Sentia-se exausta e com um sono incontrolável. Foi reparando nas capoeiras, de um lado e do outro, desejosa de encontrar um sítio onde pudesse deitar o corpo. Uns quinhentos metros à frente a estrada subia contornando um morrinho bem simpático. Deliberou ser lá no alto dele, até para tomar mais ciência daquelas áreas, que iria descansar um bocado.
Olhou em frente e viu a cidadezinha uns vinte quilômetros adiante. Virou-se e não reconheceu mais o lugar do qual tinha vindo. Estava distante de casa e isto, ao invés de lhe gerar receios, trazia coragem e segurança. Dormiu, dormiu e dormiu até que uma coisa lindíssima aconteceu, um sinal do céu para ela, conforme raciocinou.
Por sobre o seu corpo voavam e revoavam dezenas, centenas de borboletinhas amarelas. Sorria agora para as bichinhas. Falava com elas e levantava os braços para que neles enfim pousassem. O sol vencera as sombras e seus raios faziam com que aqueles ouros das asinhas de suas fadinhas - Cândida as chamava assim - ficassem ainda mais vistosos, como se tal maior beleza ainda fosse possível.
Lamentando-se por ter que deixá-las cumulou-as de até logos, enquanto se punha de novo no caminho. Nem sabia que haviam avisado suas irmãzinhas e, de quando em vez, na estrada surgiam algumas delas amarelinhas a lhe saudar, trazer lembranças das manas e indicar que seguia no rumo certo do seu futuro. Tinha início ali a Era da Borboleta.
Antes de entrar naquela vila bem maior do que a que um dia visitara, desceu até a beira de um córrego e se banhou. Arrumou-se toda, botando no corpo o outro vestido, o de ir à missa. Perfumou-se. Escurecia e suas amigas borboletas já tinham ido dormir. Tomou toda a coragem de que era capaz e resolveu enfrentar aquele lugar desconhecido.
Havia umas casinhas já iluminadas, parecendo ser bem animadas. Estranho é que diante delas não se reparava a algazarra de crianças e nem a presença de velhos. Eram mulheres que se assentavam nos bancos às suas frentes. Como o pavor que sentia era de homens, sentiu segurança em se aproximar. “Veio trabalhar também?“ Foi o que uma disse. “Aqui já tem mulher demais e o serviço está ficando escasso por conta disto.” Era o que outra falava provocando risos na turma.
Explicou-lhes que não desejava tirar serviço de ninguém. Que só queria mesmo era uma caminha para descansar, um telhado que lhe desse proteção e comida para alimentar o corpo. Que trabalharia no que elas lhe ordenassem , sem a necessidade de dinheiro. Ansiava só por cama, abrigo e comida. Uma gorda, bem mais velha que as demais, da janela, disse então que assim desse jeito poderia ficar, cuidando das limpezas e da cozinha.
Quando começaram a chegar os homens, foi que reparou estar numa casa de mulheres da vida. Seus olhos tornaram-se de novo apreensivos e o medo brotou forte. Passaria a noite lá e pela manhã daria um jeito de ir embora. A idosa que morava no quartinho que lhe deram ao final da noite, e que soube ser a mãe da tal gorda da janela, a dona daquela casa, persuadiu-a a não partir.
“Menina, você vai daqui para que canto nesse mundão perdido de Deus? Das perversidades que há nele você não conheceu nem o tamanhinho de uma ponta de unha”. Sentindo-se resguardada pela velha e sua filha, proprietária do lugar, resolveu permanecer por ali. Evitava varrer e circular por perto dos homens e até que apreciava a falação alegre, e sempre mais alta que o necessário, das mulheres.
Essas, algumas mais novas do que ela, andavam sempre com dinheiro. Faziam a festa dos caixeiros viajantes que chegavam com seus baús carregados de coisas bonitas. Olhava admirada aquelas belezas e sentia desejo de comprá-las, mas cadê de haver cobre para tal? As amigas sempre lhe adquiriam algum mimo, mas almejava ser como elas. Poder além de escolher os trens como as demais, encomendar perfumes, bijuterias e peças chiques de tecido.
Pouco a pouco foi crescendo na cabeça um dilema. Mantinha a virgindade, ou se entregaria aos homens por dinheiro? Lembrava-se de Jorge e resolvia não cair na vida. Ao mesmo tempo raciocinava. “Mas como poderei ser encontrada por ele morando aqui nessas lonjuras”.
Mais ainda a preocupava o fato de que residia num puteiro. Será que ele acreditaria que homem algum, exceto aquela tentativa do desgraçado do Leovegildo, frustrada pelos seus gritos, jamais a tocara?
Coisa bonita que acontecia era que nenhuma daquelas mulheres lhe sugeriu a vida que levava. Se algum dia fosse se definir por ser prostituta, seria por livre decisão e não por indução das companheiras. Em meio a esta grande dúvida, aportou por lá um mascate trazendo uma série de broches de borboleta. Encantada com aquelas joias, perguntou ao vendedor se ele fazia fiado. Como a resposta foi positiva, adquiriu então a borboletinha dourada mais cara daquela caixa de sonhos aberta sobre a mesa.
Naquela noite os bancos de frente da casa ganharam nova menina, que era como se chamavam. O primeiro freguês daquela noite de iniciação, só entendeu seu choro ao reparar estar ali na cama com uma virgem. Para deitar com qualquer um é preciso haver coragem e foi desse jeito que aprendeu a, em cada noite da Era da Borboleta, beber pelo menos quatro doses da branquinha.
Carne nova era iguaria fina a ser apreciada. Cândida fazia grande sucesso. Na mesma velocidade que vinha o dinheiro de um lado, ele lhe saía por outra banda. Com o passar do tempo deixou de ser novidade. Apenas uma a mais a servir aos machos, ávidos por prazer, nas noites do sertão. O dinheiro dava para o sustento, mas jamais para se juntar algo. Até porque estavam sempre endividadas, com os encantos oriundos daqueles baús preciosos e mágicos dos caixeiros, que por lá passavam.
Dos anos de zona aprendeu três regras básicas: Jamais beijar na boca o cliente; não se apaixonar em hipótese alguma pelo freguês e a última: não sentir prazer. Normas que ajudavam a manter a proibição de amar. A primeira regra cumpriu à risca. Já as outras foram impossíveis de serem atendidas. Apaixonou-se por dois homens e sofreu da expectativa duplamente frustrada de que haveriam de tirá-la daquela vida.
Homem só quer mesmo é o desfrute da mulher dama. Retirá-las do meretrício para casamento, é história que na prática só se sabia de ouvir falar. Devia mais era ser conto da carochinha. Dos dois amados teve três filhas. Ajudou-a na criação uma senhora que tinha feito vida e agora a ganhava cuidando dos filhos das que trabalhavam na noite. Mandou fazer um barraco aos fundos da casa dela e assim, durante o dia, estava sempre por perto dando atenção e carinho às borboletinhas, que era como gostava de nomear suas meninas.
A Era da Borboleta acabou quando seu corpo não mais atraía os homens. Poucos e fieis fregueses ainda a procuravam. Agradecia muito a Deus pelo fato de nenhuma das três borboletas ter caído, como ela, na vida. Estavam casadas e os netos começavam a brotar mais de um a cada ano. Eram, ao contrário da mãe, donas de respeito e prendadas. Conheciam da religião e sabiam ler livros e jornais.
Quarenta anos nas costas, pouca beleza permanecia no corpo, que zona é algo que gasta por demais a existência. Nesse tempo comera toneladas de pão que o diabo amassou. O corpo estava marcado pelas surras dos brutos, fora roubada inúmeras vezes e sofrera com doença ruim. A Era da Borboleta de leveza só tinha mesmo era o nome.
Necessitava, com urgência, arrumar algo para sobreviver. Hora de dar início à Era do Burro. Tentou ser doméstica, mas nunca que conseguia permanecer nos empregos por mais de um mês. Os maridos das patroas acabavam descobrindo quem ela era e ordenavam, até para se defenderem, às esposas que a demitissem.
Resolveu mudar de cidade. Instalou-se na capital do estado. Distante do seu passado logo estava empregada. Naquela casa o serviço parecia brotar de todos os cantos. Por mais que fizesse, havia sempre tarefas a serem cumpridas. Ela, que na Era anterior tinha sido da noite, agora se tornara mulher do dia. Parava de trabalhar já tarde da noite e, esgotada, caia na cama para acordar quando ainda era escuro, retomando a faina diária. Tempos para visitas às filhas e netos eram escassos, mas fazia questão, na medida do possível, de preservá-los.
Teve uma patroa só e esta lhe arrancou o couro sem dó nem piedade. Como nessa época, levada pela dona, frequentava a religião, passou a achar que estava pagando os tantos pecados cometidos na Era da Borboleta. Pensando assim jamais reclamava ou se negava a cumprir, o que lhe era, excessivamente, demandado.
Foi Cândida quem criou os filhos da patroa. Instruiu-os na educação e nos bons modos. Acompanhou com carinho materno o crescimento de cada um deles, até que se tornassem adultos e partissem de casa para o casamento. Criou amor a cada um deles e era correspondida. Chamavam-na de mãe preta.
Na mesma medida em que a grande casa ia se tornando mais vazia, as forças de Cândida também diminuíam. Era incapaz de cuidar das coisas e a senhora teve que arrumar outra empregada. Na casa agora, neste final da Era do Burro, viviam três velhos. A patroa foi a primeira a morrer. Nem um ano havia se passado quando o marido faleceu.
Nenhum dos filhos, que criara com tanto cuidado e atenção, queria levá-la, agora que tinha mais de setenta anos, para a sua casa. Davam desculpas de que seus cônjuges não a aceitavam, ora porque a casa era pequena, ora porque não tinham intimidade com idosos e mesmo porque os filhos não se sentiriam à vontade, com aquela preta velha convivendo com eles.
Voltar para as filhas era impossível. Elas não mais viviam. Tinham, em dias de tanta dor, enterradas por ela. Buscou então as netas mas a recepção à ideia de acolhê-la não foi nem um pouco diferente, da que acontecera com os filhos de criação. Foi assim, bem desse jeito, que começou a Era do Escorpião. Batizou-a com tal nome porque este é bicho peçonhento e perigoso. Por mais que pareça amigo, acabará por picar até mesmo a quem tenha cuidado dele. Cândida estava ferida das ferroadas dolorosas demais das borboletinhas, filhas das borboletas e dos filhos brancos.
Procura daqui, busca de lá e o advogado que cuidava do inventário, conseguiu um asilo para interná-la. No novo lar, após curtir luto de tristeza e ira pelo abandono, era considerada a mais esperta dentre as internas. Andava de um lado a outro, animada e animando a todas. Aprendeu a gostar do lugar, da comida, das idosas e cuidadoras. Pouquíssimas dentre elas recebiam visitas e aquelas que as tinham eram motivo de inveja das demais.
A crise econômica obrigou a associação cuidadora do asilo a fechar as portas. Eram quinze velhinhas prontas a serem colocadas, literalmente, no olho da rua. Mobilizada a sociedade, a autoridade pública não teve outra saída senão recebê-las numa casa de idosos, alugada para este fim pelo prefeito.
Quando já tinha passado dos noventa e uns bons anos, encerrou-se de vez a Era do Escorpião. A bem da verdade é bom que se registre, que era para ter se cerrado bem antes, eis que raiva de ninguém Cândida era capaz de manter por muito tempo. Trocava-a pela indiferença e o desprezo.
Outro período começava e a ele deu o nome de Era do Carrapato. Este é bicho que passa um tempo na espreita. Fica de olho até achar quem o sustente. Então, caminha até ele, escolhe um lugarzinho quente e de pele macia e não mais se move. Passa a viver tranquilo, bebendo e dormindo às custas do hospedeiro.
Quieta tal qual carrapato, sem nenhum domínio sobre as pernas, que desde antes dos cem anos começaram a sistematicamente lhe desobedecer, tocava a existência da maneira mais frugal possível.
Nem comer mais comia, só bebia das sopas e sucos. Todos os dias a mesma rotina. Sabia de cor os horários e os detalhes de tudo. Até das imperfeições e manchas daquele teto do seu quarto seria capaz de dar notícias.
Conhecia, tal qual fosse relógio programado, os exatos momentos nos quais a cuidadora, Maria do Rosário, iria entrar pela porta para virá-la de lado e lambuzá-la de óleo, no afã de se evitar as escaras. Eram estes os únicos tempos, nos quais também trocavam suas fraldas, em que de banda conseguia ver dos lados do quarto, em seus leitos, as pessoas que com ela dividiam o ambiente.
Cândida agora é carrapato. Completara o derradeiro ciclo da vida e não obtém a permissão para ir embora. Quando as pernas bambearam de vez e lhe veio a irritação pela incapacidade de se movimentar, tal qual sempre fizera, soltou em voz alta um palavrão, que naquele tempo ainda tinha forças na palavra. A vizinha, mulher sábia que logo após partiria para a eternidade, do seu lado refletiu algo que nunca mais esqueceu.
“Na vida as pessoas, como a lua, têm quatro etapas bem demarcadas. Na primeira a gente, infantil, aprende. Temos a cabeça vazia e tudo que vemos, nos contam e mostram é novidade. Na segunda somos adultos e é tempo então de ensinar para os outros, tudo aquilo que um dia aprendemos. A terceira fase da vida é o silêncio. Chega então aquele momento em que, diante da existência, se deve calar para escutar melhor. É o tempo no qual se vai tornando mais sábio. O último estágio é o da mendicância. É aquele no qual nossas capacidades, definhadas, necessitam por demais dos outros. Temos então que nos colocar abertos para, qual um mendigo, solicitar e acolher a ajuda”.
Aprender, ensinar, silenciar e mendigar, as quatro fases dessa sabedoria, trazidas de uma terra distante e tão bem resumidas pela vizinha, da qual jamais tinha visto o olhar. Passara por elas todas e já estava mais que enfadada de mendigar. Chega de ser carrapata ali deitada no leito branco. Aspira demais pelo fim dessa última Era. Quer dormir e não acordar diante do mesmo teto.
O céu lhe haverá de ser só das maravilhas. Ao contrário da vida, ganhará balaios e mais balaios de guloseimas, bebidas, doces, cantos e danças. Vida plena de alegrias que nunca se acabam. Deus haverá de ser bom para ela. Sim, roubara as linguiças e as farinhas quando daquela fuga. Mas o Senhor já lhe havia de ter perdoado. Mesmo no randevu sempre fizera o bem, nunca destratara as pessoas. Cuidara das doentes. Tentara ser feliz, é verdade, mas também cuidara de fazer felizes as gentes em sua volta. Isto não é amar?
Para partir só lhe resta um detalhe. Quer ter saudades e divaga: “O que seria mesmo este sentimento? Será que o tenho em mim e o que acontece é que está adormecido?” Tenta gritar: “Acorda saudade”. Mas a voz não lhe sai. As últimas forças escorrem para fora do corpo. Sobe o degrau derradeiro. Cândida sorri imaginando a decepção de todos. Ao invés da grande celebração o velório. A mulher mais velha do mundo está morta.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 13/05/2013
Alterado em 22/03/2017
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