Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Diabo de Bete
 
Formigas
 
Meu Deus, como ela modificou sua vida! Chegou de mansinho e, devagarzinho, cuidadosa, atenta aos detalhes envolvendo-o, cativando. Quando caíu em conta, Bete, este é o nome que deu a ela, tinha dominado tudo. 

Bete tem lá suas necessidades e quando se depara com elas, vê o quão exigente pode ser. Mas também sabe se retirar, comportar-se educadamente, tal qual ex-aluna do Sacre Coeur. É até capaz de tirar uns tempos para descansar, espairecer e aí, é incrível, mas o segredo é que dela sente intensas saudades. 

Aconteceu que após algum tempo adormecida, Bete havia acordado. Despertara mais que agitada, levantara insana. Bete era a égua a transportar o demônio que lhe ganhara a vida. Mulher e sua montaria num só ser, centauro.

Ser humano e Satã constituindo-se unidade. Acender o cachimbo de uma é fumar com a marginalidade e loucuras do outro. Simbiose bruta e ao mesmo tempo tão delicada, tornando impossível sua separação. Bete era o Diabo. O Diabo era Bete e ponto final.

Passara tempos significativos a combatê-la. Tendo raiva demais dela. Arrependia-se imensamente. Fez-lhe mal e depois que o carinho começou a crescer, até se envergonhava do que lhe propiciara. Bete era mais que companheira e cúmplice, era amiga, era amor. Que fizesse o que desejasse. Bete era sua. Ele era de Bete. Tornaram-se uma só carne. Não é assim que se diz no casamento?

O Diabo de Bete, qual namorada que sempre dá um jeito de dizer que está junto, se manifesta de variadas formas. Dentre elas há uma especial. A chaga no pé que de repente vinha caminhando célere e brincalhona, qual criança incapaz de ficar quieta.

Surgia como coceira insistente, daquela que dá vontade de tirar fora o sapato e curti-la. A pele onde costumava surgir, no peito do pé esquerdo, ia se tornando mais fina, azulava-se delicadamente até que, de repente, se abria em flor, ferida.

Bete, no início um caso de ódio, como costumavam ocorrer os fatos em sua vida, agora era o seu grande amor. Concedera-lhe de bom grado as condições para que se instalasse e viesse a estar com ele, esposa querida, na cama na qual mulher nunca houvera.

A pele delicada e em tons de azul que costumava ocultar a cratera do vulcão, agora lhe tomava todo o pé. Bem antes do médico, já sabia não haver jeito. Bete lhe cobrava prova maior de amor. Desejava para si parte do seu corpo. Desprendido, cheio de liberalidade, entregava o que lhe pedia.

A descoberta de que não lhe tinha só amizade se deu, quando passou a sentir sua falta no pé. Antes, naquele tempo da raiva, lhe dava limites. Cumpria os tratamentos, o que fazia com que Bete fosse se fechando, idêntica à cortina do palco, teminada a função. Tênue pele então vinha deslizando, até cobri-la, finalmente.

Lera um livro sobre os estigmas de alguns santos. Acaso Bete houvesse se manifestado nos dois pés, reivindicaria a condição de homem de Deus. Acontecendo somente no pé sinistro, nada mais óbvio que era só o homem da Bete. Pouco importa acaso o vissem como a vítima do demônio que o habitava. Era diferente, o escolhido, o predestinado para conviver com seu amor. O Diabo de Bete, de doença transfigurara-se em paixão.

Lembrava-se da madrugada em que notara sua manifestação primeira. Não costumava acender a luz do banheiro, mas sentiu algo subindo pelo pé. O horror de imaginar fosse barata, fez com que iluminasse o ambiente. Então reparou, em volta do vaso, formigas lambendo respingos da urina. O Diabo não chegara numa égua. Viera naqueles bichinhos ansiosos pelo doce do seu líquido amarelado.

Sempre soubera de Bete. Desde adolescente curtia reparar nos sintomas de doenças. Apreciava demais ler bulas. Olhava para a mãe buscando algum indício de enfermidade em seu rosto. Era ouvir sobre alguma moléstia e imediatamente sentir haver contraído tal mal.

Inúmeras vezes imaginara estar possuído por Bete. Os exames, infelizmente, rotineiramente davam resultado negativo. A glicose mantida dentro dos níveis da normalidade. Sua futura amada, montada no cavalo negro, ou mesmo nas formiguinhas, ainda não dera as caras.

Até que ponto foi buscado? A amante à caça do amado. A planta aflita pela chuva. O crepúsculo na expectativa dos pingos de luz das estrelas. Ou teria sido ele a procurá-la, aflito, até que enfim lhe sussurrasse “meu amor”’ o abraçando e lhe beijando o pé?

Tomasse então posse do lado direito da larga cama. Preenchesse sua solidão, fizesse sala nas noites insones, compartilhasse as doses de vodka. Assim não olhariam para ele como alcoólatra embebedando-se sozinho. Bete e ele, encontro de muita paixão. Acontecia ali um conluio enlaçando desejos, interesses que se casavam harmoniosamente.

Nesse jorro febril da consciência, dava-se conta de que o ódio não mais ocupava o pódio. Havia caído de posição no ranking dos sentimentos. Por tantos anos o liderara e agora, mesmo que no pódio, amargava reles terceiro lugar. Simples medalha de bronze. Comenda a ser comemorada com mil fogos, mas não no Brasil, onde nem vice é valorizado. “O time do ódio já não está tão firme, será que fiquei bonzinho?” Indagava-se.

Mãe
 
Lembrou-se da primeira mãe e a ira, sem nem titubear, avançou novamente e tomou a dianteira. Da segunda só tinha carinho e afeto para recordar. Era boa demais para viver neste mundo. Coração que de tanto acolher gente, muita dor, solidões e angústias, estourara quando adolescia.

Ataque que pareceu tiro. Caminhavam os dois após terem saído do colégio público no qual haviam revalidado sua matrícula. Quinze anos e passara com louvor. Perambulavam pelas lojas próximas pesquisando preços. Necessitava pelo menos uma blusa do uniforme. As mangas fugiam rápidas, subindo rumo aos cotovelos. A mãe apertou seu braço: “me segure, estou caindo”. Até tentou, mas ela já escorregava para o chão. Aqueles olhos bonitos e tão pretos se mantinham abertos.

Pensou que o miravam enquanto tentava levantá-la. Juntou gente e cada qual dizia uma coisa. Uma voz, de bom senso, ordenou que se afastassem para que respirasse. A ordem tinha sido tão enfática e o atordoamento era tamanho, que a largou no chão e, com os demais, deu um passo atrás.

A mulher se ajoelhou e segurou-lhe o braço, tomando seu pulso. Balançou negativamente a cabeça, enquanto encostava dois dedos em seu pescoço buscando a carótida. “Arrumem um lençol para cobri-la e uma vela para iluminar seu caminho. Que Deus a tenha.” Gritou abraçando o corpo inerte, enquanto outra alma caridosa já se agachara e apertava seus olhos, para que se mantivessem fechados.

A moça da mão delicada que os tinha atendido há pouco na última loja, agarrou a sua puxando-o para dentro. Tinha trazido um pano grosso, listrado de amarelo e azul, parecendo tecido para confecção de roupa de palhaço. Com o ridículo dele cobriram o corpo. O pai chegou à mesma hora que a polícia. Saiu novamente para o passeio e viu que em volta da mãe havia várias velas.

Três anos depois, quando descobriu tudo, aquele amor imenso pareceu se desmoronar. Teve então grande raiva dela. Aos poucos foi se acostumando com a ideia de que ela o achava ainda muito menino para saber dos ocorridos. Que só estava aguardando que se tornasse mais adulto para lhe contar sua história. Amou-a então. Mais ainda.

Dúvida

Não tinham sido raras as vezes em que alguém o cumprimentara falando de coisas incompreensíveis. Inclusive, acontecera-lhe o caso da garota jamais vista que chegou chorando, a lhe dizer palavras duras, de quem se sentia abandonada. Perplexo, foi incapaz de alguma reação. Permaneceu em silêncio diante de suas sentidas lagrimas.

Havia alguém muito parecido por aí, concluíra após esses encontros. Na fertilidade da imaginação, concebeu que a mãe falecida tivera outro filho e o entregara a alguém. Jamais que seria capaz de admitir fosse filho adotivo.

Não dava para conviver com esse tipo de dúvida. Era preciso passar tudo a limpo e foi neste propósito que matou aula àquela noite. Largou o trabalho e foi direto para casa. Necessitava indagar da irmã, dois anos mais velha, se sabia de algo a respeito.

Rindo muito, lhe relatou haver deparado no saguão do cinema, talvez um ano antes, com um cara que era ele perfeito. Só que com cabelos mais curtos e roupas de grife. Notara que sua mochila era da escola mais exclusiva da cidade. Até quis abordá-lo para dizer-lhe do quão parecido era do irmão, mas seu retraimento natural falara mais alto e o fato dele ter sumido das suas vistas, facilitara essa timidez.

Não sabia de nada, mas que havia alguém idêntico a ele, sim, com certeza que existia. Telefonou ao pai, então já casado com nova mulher, e lhe perguntou, de supetão, se era possível que tivesse um irmão. Engasgado com aquela pergunta inesperada, pediu-lhe que mais tarde fosse à sua casa. No caminho até lá foi que se deu conta, de não possuir traços físicos que lembrassem os dos pais e irmãos.

Pai

Encontrou-o bêbado. A vida toda fugira das conversas difíceis e aquela não lhe seria nem um pouco agradável. A bebida lhe destravara a língua, fazendo com que não desse voltas, tergiversasse. Para se livrar da aflição de tema tão delicado, foi direto ao assunto. Despejou tudo, sem deixar nem um ponto de fora. Sim, era filho do coração e havia um irmão gêmeo, univitelino.

“Meu filho, você foi adotado. Sua mãe tinha medo de lhe contar isto. Receava que sentisse raiva da gente e quisesse nos deixar. Sua progenitora era doméstica e vocês foram frutos de fugaz relacionamento. Impedida de trabalhar, com duas crianças pequenas e ninguém da família para ajudá-la, passou muitas necessidades. Nós a auxiliamos nesta ocasião.

Quando vocês fizeram dois anos sua mãe se apaixonou perdidamente. Foi correspondida. Só que houve um terrível problema. O namorado queria casar, mas não aceitava que fossem com ela as crianças.

Depois de viver por vários dias grande crise de consciência, ela fez a opção pelo amor. Procurou sua mãe e uma amiga dela, que não conhecemos, e ofereceu as crianças. Queria doá-los, os dois juntos, para alguma dessas famílias, mas lamentavelmente não havia como ficarmos com vocês. Com um até que daríamos um jeito, foi o que lhe dissemos.

Passados talvez mais uns dez dias, ela retornou contando-nos que o outro casal também só aceitava um de vocês. Seria preciso separá-los. Foi assim que tudo aconteceu e no domingo seguinte, bem cedo, a campainha tocou. Com ela estavam as duas crianças pequenas parecendo adivinhar o que acontecia. A cena era patética. Mãe e filhos choravam demais.

Idênticos, não cabia escolha. Minha mulher pôs no colo aquele que estava centímetros mais perto de seus braços. O berreiro aumentou mais ainda e, como se estivéssemos fazendo a coisa mais errada e proibida do mundo, entramos imediatamente, batendo a porta, largando lá fora sua mãe e o irmão.

No bolso da camisa encontramos sua certidão de nascimento que demos um jeito de eliminar, registrando-o novamente como nosso filho. A impressão que tivemos foi que não era bem cuidado. Estava bastante magro. Quando parou de chorar e pudemos observá-lo mais de perto, reparamos as unhas grandes e sujas, além das roupas não estarem limpas. Mas mais do que detalhes externos, o que nos confirmou o sentimento foi que, rapidamente, tenha se adaptado a nós.

Vésperas do Natal, dois anos depois, recebemos um cartão. Sua mãe dizia morar no Nordeste. Acho que em Recife. Contava estar morrendo de saudades e que em breve visitariam você e o mano. Viriam os três. Ela, o marido e o bebê que acabavam de ter.

Tivemos medo dessa visita. O receio era que ela houvesse convencido o marido a levá-los com eles. O tempo foi passando e nada dela dar as caras. Pelo Natal seguinte, sem novo contato e muito menos ter acontecido a tal visita, nos sentimos mais relaxados. Nunca mais enviou notícias.”

 
Irmão
 
Mantivera silêncio total. Findo o relatório levantou-se e disse a única palavra que lhe saiu. “Obrigado”. Não apanhou ônibus. Caminhou por mais de duas horas. Chegou tarde em casa. A irmã assistia um filme na televisão. Torceu para que estivesse interessante e não lhe dirigisse a palavra. Mas ela lhe perguntou: “E aí?”

Fez que não escutou e foi direto ao banheiro. Sentia-se muito sujo. Arrancou com asco a roupa e abriu o chuveiro. Deixou a água, o mais quente que sua pele era capaz de suportar, escorrer por um tempo que não saberia calcular. Tudo chegara de uma vez só e misturado. Choro, lágrimas, consciência do abandono, angústia, sensação de ter sido traído e raiva.

Saiu do banho e a irmã dormia diante da TV ligada. Desligou-a, mas sem acordá-la. Ela tentaria novamente puxar conversa. Deixou-a assim no incômodo do corpo curvado na poltrona. Experimentou a mais longa noite de sua vida. Nem depois da chegada de Bete viveu uma tão comprida.

Acordou cedo e não foi trabalhar. Meteu um boné na cabeça e partiu para as imediações do tal colégio de bacanas do qual seu irmão tinha a mochila. Sentiu um arrepio ao se ver passar do outro lado da rua. Não se aproximou, constatando, à distância, a incrível semelhança existente entre os dois. Isto lhe bastava, pelo menos por enquanto.

O trabalho de contínuo, quase sempre na rua, ajudava nas escapadas até a escola no afã de observar o irmão. Fazia tudo para passar o mais despercebido e mesmo disfarçado possível. O que menos desejava naquelas horas era ser reconhecido por um amigo dele. Um dia tomou coragem e o seguiu mantendo segura distância. O mano era gente fina mesmo. Residia num prédio de altíssimo luxo, situado em rua das mais badaladas da cidade. Acompanhar sua vida tornou-se vício. Passado algum tempo sabia seu nome, dos pais e irmãos adotivos. Conhecia, em detalhes, daquilo que mais apreciava e do que detestava. Seu time de futebol, que passou a ser também o de sua torcida.

Até da garota de quem estava gostando era sabedor de muita coisa. Aos poucos mudara o estilo de vestir. Usavam agora os mesmos modelos de roupa. As suas obviamente eram falsificadas, mas de longe quem haveria de reparar neste detalhe?

Vibrou bastante, ele que só há um ano terminara o primeiro grau, quando Gustavo passou no vestibular. E foi para medicina. Sentiu-se tão inteligente quanto ele. Foi por esta época que aumentou, mais ainda, seu interesse pelas doenças e seus respectivos antídotos. Diante da drogaria viu a placa afixada: “Admite-se vendedor com experiência”.

Apresentou-se dizendo não ter sido exatamente balconista numa farmácia, mas que entendia de remédios eis que havia sido, mentiu, entregador durante quatro meses numa botica de um bairro da periferia. Indagado por que parou, respondeu falsamente de novo. Afirmou ter deixado o emprego quando lhe fora roubada a bicicleta.

Convincente, foi aceito. O dono jamais se arrependeu daquela escolha. Tornou-se logo seu melhor vendedor. Incrivelmente eficaz na “empurroterapia”. A arte de, ao mesmo tempo em que atendia os clientes, ir-lhes passando aqueles medicamentos, cujos fabricantes ofereciam prêmios aos que conseguiam vendê-los.

Aquele cuidado que tomava não medicando as moléstias mais sérias que lhe apareciam, aos poucos foi deixando de lado. Sentia-se já competente. Impressionava parecendo dominar, mais que as bulas, as composições farmacológicas de tantas pílulas, xaropes, pomadas, injetáveis e outros que tais. Considerava-se competente clínico.

O irmão já era médico. Fizera especialização nos Estados Unidos e havia se tornado cirurgião ortopedista respeitado. Fora à sua formatura. Do fundo da Igreja, para não haver riscos de lhe descobrirem as semelhanças, entrando somente após ter ouvido a marcha nupcial, tomou parte até do seu, cheio de pompa e circunstâncias, matrimônio.

Encontro
 
Na medida em que ficava mais velho, foi tomando gosto pelo isolamento. Há anos morava sozinho. Amigos os tinha, mas só de obas e olás. Companheiros de beberagens nos bares seus velhos conhecidos. Na verdade era mais ligado às bebidas do que às pessoas que junto dele tomavam uns goles. Havia anos que ninguém, a não ser a velha e discretíssima faxineira, entrava em sua quitinete.

Quando fizeram cinquenta anos resolveu enfim se encontrar com o mano. Agiu igual o pai adotivo, naquela noite distante na qual lhe confessara sua história. Tomou algumas generosas doses de vodka, bebida que além de gostosa, melhor disfarça o bafo. Jogou na boca um halls, daqueles pretos de parecer estar arrancando os pulmões.

Despiu-se de qualquer cuidado e disfarce. Copo de plástico com café na mão assentou-se na mesinha triangular da cantina do hospital, no qual Gustavo trabalhava às terças e quintas. Sabia de longa data a hora em que ele costumava lanchar no meio da tarde.

Ocupando a mesa onde o irmão sempre ficava, bem mais de uma pessoa o cumprimentou, chamando-o pelo nome dele. Achou graça, meio de pileque, balançava a cabeça retribuindo cumprimentos. Torcia demais para que viesse sozinho. Seu desejo se realizou. Não teve coragem de mirá-lo, enquanto esperava no balcão a média de café com leite e o pão na chapa.

Notando que a mesa estava ocupada pelo homem de cabeça baixa, parecendo procurar algo no café, tomou uma cadeira da mesa ao lado. Levantou-se e se assentou diante de Gustavo. Agora mirando-o firme nos olhos. Assim de perto, caiu em conta de que apesar de iguais ele estava bem mais conservado.

O médico não escondeu o incômodo diante da ousadia daquele estranho se assentando à sua frente. Julgou ser algum parente de paciente, querendo lhe perguntar sobre o estado de saúde e as chances do seu doente. Ao levantar os olhos para demonstrar seu desconforto diante daquela atitude, veio o grande susto de se ver espelhado naquele homem. A diferença é que era mais idoso. Quem sabe se enxergasse nele dali a dez anos.

“Tenho diabetes há mais de seis anos”. “Por que o senhor me diz isto? Sou ortopedista e esta sua queixa deverá ser atendida por endocrinologista”. “Ansiava demais por conversar com você. Precisava tanto que pensei em mil maneiras de entabularmos contato. Pena que foram estas as palavras que me surgiram. Inapropriadas, com certeza, para começar o que quero que seja um agradável bate papo. Abordagem ruim, mas desejo que se mantém firme, de retomarmos uma conversa cortada há quarenta e oito anos”.

“Desculpas, mas não compreendo uma vírgula do que me diz. Aqui é lugar de se relaxar e comer algo e não para conversar com estranhos e muito menos para se consultar” “Você não se preocupa com os parentes?” ”Claro que sim, estão todos muito bem cuidados”. “Você se engana. Há um doente entre eles”. “O senhor está dizendo que faz parte da minha família?”

“Sim, temos mais do que o mesmo sangue. Somos irmãos gêmeos e, agora que completamos cinquenta anos, decidi enfim lhe procurar.” “Homem, que baboseira, sua precisão é de um bom psiquiatra. Além de desconhecê-lo, não tenho o menor interesse em manter relações com o senhor. Meus irmãos eu os conheço bem. Não me venha com esta história da carochinha que comigo não cola. Daqui a pouco pedirá dinheiro”

”Você está imaginando que estou lhe contando da minha moléstia para que trate de mim? Ledo engano, Gustavo. Bete me cuida. Não quero nada de você além do carinho, da atenção e da amizade fraterna.” “Por favor, Doutor Gustavo, e já estou atrasado. Passe bem e não mais me dirija a palavra. Muito menos me procure”.

O ortopedista, falando mais alto, articulando cuidadosa e lentamente as sílabas de cada palavra, sem tomar o menor cuidado em ocultar a irritação, empurrou com força a cadeira se levantando. Parecendo mirar um ponto fixo na parede do final do corredor em frente, saiu pisando firme.

Ódio
 
Tremia dos pés ao último fio de cabelo. Teve medo de se levantar e as pernas, bambas, não suportarem seu peso. Abaixou a cabeça, balançava-a afirmativamente e sorria dando boas vindas ao sentimento que chegava a galope. O ódio, aquele tão seu conhecido, tal qual o Diabo de Bete, o tomava todo, o possuía. Levantou-se devagar, mirou talvez aquela mesma marca imaginária à frente. Saiu altivo, mantenedor da sua toda dignidade.

O encontro o fez sofrer demais, adoeceu. Jamais pensara que seria rechaçado desse jeito, assim bruto, por Gustavo a quem acompanhava há 32 anos. Por uns dias sentiu febre. Deixou-se ficar prostrado, dia e noite, na cama. Só se levantava para tratar da flor de Bete, aberta no jardim do seu pé, comer algo e ir ao banheiro alimentar formigas.

Recordações em turbilhão, rodando loucas na cabeça e deixando-o tonto, tal qual houvesse se embebedado de muitas vodkas. Ironia sem tamanho o SUS tê-lo internado no Hospital de Gustavo. Lugar tantas vezes visitado na espreita do irmão, até a tarde fatídica. Era terça-feira e aquela era a hora do seu lanche. Será que já mastigava o indefectível pão na chapa, soprando sobre o copo plástico, cheio até a borda, de café com leite?

O amor é exigente e Bete pedira mais provas da sua dedicação. Respondia cuidando com mais carinho da chaga. A circulação cada dia mais ineficiente, fazia com que a ferida se mantivesse viva, forte, saudável. Compreendeu que seu amor queria bem mais. O pé de Bete gangrenara. Doutor Gustavo amputara seu pé naquela manhã.

Ainda meio sonolento, acordando da anestesia, viu-se acompanhado pela ira. Na sua imaginação, do lado esquerdo da cama, o de Bete e seu Diabo, punha-se a primeira mãe sorrindo. À direita Gustavo, cúmplice, lhe piscava o olho empunhando a serra elétrica.


Saciara Bete. Dera-lhe de presente o pé. Prova de amor é doação. Mais que dar algo que possuísse, ele foi mais adiante. Dava-lhe, com alegria, um pedaço de si mesmo. No delírio tentava desvelar o rosto da esposa lhe perguntando: “Meu amor, o que você me pedirá agora?”

A enfermeira, parecendo hipnotizada pelo pingado das gotinhas de soro, lhe transportou à realidade. “Que bonito, acordar assim falando da pessoa que ama”. O membro não mais havia, a estas horas já teria sido enterrado? Mas a coceira no pé esquerdo subsistia. Era este o jeito apaixonado de Bete lhe responder ao afago das suas palavras.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 27/05/2013
Alterado em 22/03/2017


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