Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Salto para o infinito


Era grande apreciador das coisas do alto. Não se recordava de ter havido vez na qual, após ouvir ronco de avião, não levantara os olhos aos céus procurando-o e desejando estar nele.

Mas sonho mesmo dos de causar suspiros, só ocorrera depois daquele momento em que o tio chegara a sua casa. Trajava farda verde oliva, bota marrom e a boina bordô na cabeça. Desde então ser paraquedista militar tornou-se única aspiração.

Tinha por volta de doze anos. As histórias que contava de saltos heroicos, dos exercícios extenuantes, de arrumações delicadas das equipagens, dos bivaques e acampamentos tinham o dom de fazer brilhar seus olhos. Tornavam-se poderoso alimento da imaginação.

Transportavam-no ao mundo da fantasia. Faziam com que se sentisse voando nas entranhas de um avião gigante. No ventre da grande ave metálica todos eram possuídos pelo medo. Só ele estava pronto para se lançar das alturas.

Havia também os relatos, o tio era mestre neles e sabe-se lá o quanto exagerados eram, descrevendo os problemas, contando das aventuras cheias de sofrimentos e dos insucessos de saltos, provocadores das mortes dos amigos.

Nem esses casos eram capazes de diminuir sua expectativa. Aliás, a impressão que se tinha era que tal vizinhança do perigo tornava ainda mais atraente e estimulante o sonho.

Anos depois ao alistar-se para cumprir o serviço militar, a ansiedade atingira cumes nunca dantes experimentados. Probabilidades de que fosse encaminhado ao Batalhão de Paraquedistas eram baixas. Mas teve sorte. O sargento entrevistador notara sua enorme vontade e como havia ainda algumas vagas a preencher, alistou-o onde tanto aspirava.

Superada a primeira etapa, agora vinha a prova de fogo. Vencer os famosos testes físicos. Eram duríssimos, mas mesmo assim o tio os descrevera muito mais exigentes do que na verdade eram. Como tinha se preparado para algo muito maior e pior, superou-os com louvor.

Eram tempos complexos aqueles. O país vivia o que chamavam de Revolução. Sentiam haver salvado o Brasil do comunismo e era preciso se postar sempre alerta. “A paz é fruto da eterna vigilância”, pregava a frase escrita sob a bandeira nacional numa imensa parede à entrada do quartel. Estavam em guerra e era mais excitante ainda servir à pátria num momento como aquele.

Às favas se havia quem pensasse de forma diferente. Importava que tinha ouvido os oficiais e confiava no que lhes contavam. Comunistas eram pessoas más. Queriam porque queriam extirpar do Brasil as famílias e a religião. Havia gente até que falava coisas mais escabrosas. Diziam que separavam das mães as criancinhas. 

Era preciso mais alguma coisa? O mundo é simples. Está dividido entre bons e maus. Postara-se do lado do bem e não estava aberto a reflexões. Boatos de que existiam presos secretos e até tortura não passavam de mentiras. Aleivosias, o coronel falou, pregadas pelo inimigo para arregimentar jovens para a perversidade da ideologia deles. E se, por acaso, houvesse mesmo essas coisas, azar de quem tivesse caído nessa.Devia ser merecido.  Drama de consciência é para os fracos. Não cabe na cabeça de quem se prepara para a batalha.

O uniforme inicial não era o do tio. Este só lhe seria dado quando completasse a formação, não somente com os saltos. Era preciso também haver cumprido a grande marcha, na qual teria que vencer quilômetros de terreno difícil e íngreme, com a equipagem às costas.

Mesmo assim, vestir pela primeira vez a farda de recruta da Brigada de Paraquedistas, teve o dom de fazer com que uma madrugada das mais normais para todo mundo se transformasse, como que por encanto, num dia muito especial. O mais alegre da sua vida. Em breve iria voar, iria saltar. Seria paraquedista e garboso saiu à rua.

Recruta se sentindo em prontidão para defender o Brasil. Não contra estrangeiros, eis que aquela guerra nem era contra algum país, como costumava assistir nos filmes. Ia lutar contra brasileiros como ele. Ninguém mandou que se colocassem no lado errado.

Seu sentimento era de que à volta sentiam orgulho de quem ele representava. A impressão é que o olhavam até com uma ponta de inveja. Estavam, com certeza, o admirando. Mesmo que a realidade não fosse bem assim, lamentou estar ainda escuro e que as poucas pessoas a caminhar pelas ruas andavam apressadas e ao mesmo tempo desligadas de tudo à volta. Pareciam ainda adormecidas.

Na volta do quartel não correu para casa. Tomou outro ônibus. Lídia precisava vê-lo assim. Seu sorriso era imenso, mas a correspondência a ele foi minúscula. Sua garota não se entusiasmava nem um pouco com essas coisas. Aliás, de uns tempos para cá, com mais nada que trouxesse, ou lhe mostrasse, ela se mostrava interessada.

Devia ser assim com as mulheres. Não havia tido outras experiências com elas e o que pensava era que logo se encantaria com seus sucessos. Pensava assim, enquanto na condução, sentado no último banco, admirava a foto da amada, delicada e tão linda, portada carinhosamente dentro da carteira.

Quando, alguns meses após, recebeu o paraquedas, deu-lhe o nome da namorada. Iria saltar com ela. Voar com o seu amor pelos céus da cidade, do estado, do Brasil inteiro. Pena que as coisas no quartel eram tão lentas. Preocupados com esses comunas, parecia que não davam atenção ao seu sonho. Estava mais do que pronto para o primeiro salto e nada do capitão liberá-lo e a seus colegas para a proeza.

Lídia a cada dia se mostrava mais reticente, mais distante, sentia-se triste com isto. Será que não apreciava que ele fosse soldado paraquedista? Foi num dia assim, em que essas dúvidas tomavam de assalto a cabeça, que lhes foi transmitida a grande notícia.

Na manhã seguinte haveria o tão esperado salto. Estava escalado de sentinela e teria que dormir no quartel. Correu ao telefone do posto da guarda precisava mandar um recado para a sua menina através da amiga trabalhadora num armazém.

Ansiava por lhe contar a fantástica novidade. Sinal para ligar custava demais. Quando dava sorte de haver ocorria o irritante sinal de ocupado do outro lado. O olhar do sargento sentado em frente foi de imediato entendido. Que largasse o telefone e desse o fora.

Procurou um amigo que estava na escala do final de semana e lhe fez a proposta irrecusável: “Tire serviço hoje em meu lugar e lhe cobrirei o trabalho no sábado”. Dia comum, por dia de festa é oferta que nunca se fazia por ali. Presente dos deuses de imediato aceito pelo companheiro.

Correu ao encontro de Lídia. A lotação sempre lenta, seguia, serpenteante, parecendo querer visitar todas as ruas, entrar em cada um dos seus cantos. Neste início de noite passava a impressão de que estava ainda mais devagar. Ao invés dos passageiros terem se postado numa parada só, mantinham-se espalhados. Cada um numa esquina. Iam então, qual cão a batizar os postes, parando em todos eles.

Como sempre sentara no último banco. Relatava ao retrato da amada a façanha da manhã seguinte. Foi num desses tantos pontos que o casal subiu e se assentou lá na frente, próximo ao motorista. Incrível como os cabelos dela são parecidos com os de Lídia. Pensava assim quando a moça se virou para acariciar o rosto do rapaz. 

Ficou zonzo. O mundo rodava. Deu sinal e, igual bêbado, desceu na próxima esquina. Não foi para casa. Caminhou sem rumo pela noite. Madrugada alta e estava chegando à caserna. No alojamento deitou-se, barriga para cima, olhando o nada no teto branco.

A manhã nasceu encontrando-o em lágrimas e a todos os demais agitadíssimos. Tomaram o caminhão que os levaria ao aeroporto. Desde a hora fatídica não trocara uma palavra. Naquele burburinho tremendo ninguém foi capaz de notar sua dor.

Em forma, perfilados, ouviram do tenente a última preleção e a ordem do dia. A guerra ia sendo vencida. Os comunistas, covardes, fugiam qual ratos abandonando o navio a fazer água. Na ordem dos saltos seria o sétimo a mergulhar nos ares.

Lá no alto, misturado ao ronco dos motores do avião, ia pensando. Aquele cara só pode ser comunista. Como alguém há de querer me tomar Lídia? Só um ser do mal seria capaz de tal feito hediondo. Ouviu o comando para que se preparassem.

Estivessem a postos. Sua hora chegou breve. Lançou-se corajoso. Estava nos braços de Lídia. Com ela naquele azul tão bonito das manhãs de maio. Enfim havia retornado a alegria. Sorria livre voando pela imensidão do firmamento. Dizia à namorada, abraçada às suas costas, do tamanho do seu amor. 

Desejou demais então que acontecesse o milagre. As coisas não podiam funcionar tal qual haviam sido programadas. Queria sua paixão enlaçada a ele, amarrados como estavam deveriam permanecer para a eternidade. Não haveria nenhum final do salto. Pedi e recebereis, lembrou-se da mãe reclamando que devia rezar mais. Bradou aos céus então com uma fé muito maior do que aquela que morava em seu coração.

Aquele momento sublime não poderia se encerrar no prosaico chão lá embaixo. Olhou para cima e viu que os paraquedas do seu pelotão estavam abertos. Lídia junto dele até o final. Seria mesmo inaceitável, algo horrível, caso aquele abraço terminasse. Lídia e Wagner, juntos para todo o sempre.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 24/06/2013
Alterado em 22/03/2017


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