Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Crime Hediondo

Quarenta e cinco, ou cinquenta e cinco? O envolvimento brutal na loucura do insólito ato, fez com que perdesse a conta das punhaladas desferidas. A dica de Jonas para que se lembrasse dele, a pessoa que mais odiava, eis que tal recordação lhe aumentaria a motivação e consequentemente a força, dera resultado.

Verdade que nos primeiros golpes a fúria tinha sido maior. Talvez pela força excessiva investida nas primeiras, quem sabe pelo cansaço natural dos músculos, agora eles eram mais lentos e menos profundos. Afinal, a juventude havia passado fazia tempo e não curtia a prática dos exercícios físicos.

As mãos meladas também atrapalhavam. A firmeza no empunhar a arma tinha diminuído bastante. O cabo se tornara escorregadio. Não fora a proteção existente entre ele e a lâmina, a chance de um acidente, breada como estava, teria sido bem alta.

A blusa, branca anteriormente, tinha a frente praticamente toda tingida de vermelho. No chão a poça nascida sob o mirrado corpo parecia viva. Ampliava-se deslizando e formando no mármore branco do chão uma série de riscos irregulares.

Vistos na penumbra em que se encontrava o hall, estando acesa só a lâmpada do abajur posicionado ao fundo, reparava-se que todos os veios daquele líquido denso voltavam-se para a direita. Prova inequívoca de que o piso tinha ligeira queda para aquela banda. Davam a impressão de fazer desenhos estranhos, distanciando-se do cadáver, como se fugissem da violência.

O marido por três vezes interpelou-a com um basta. Que cessasse os golpes. Na terceira enfim escutou seu grito. Chegara a vez de Jonas. Enfiando os dedos sob os cabelos louros, puxou-os para si com brutalidade.

Levantado o corpo viam-se bem os estragos, que tantas punhaladas haviam causado em seu peito e ventre. O serviço iria ser feito a partir de agora pela faca pequena. Daquelas meio curvas utilizadas pelos açougueiros no desossar das carcaças dos animais.

Desobrigou-se da tarefa insana em quatro golpes certeiros. Cirúrgicos poderia se dizer. Começou por trás. O primeiro corte abriu a nuca, o segundo, como se encontrasse espaço entre duas vértebras, foi adiante. O terceiro praticamente a degolou. O último só completou o serviço macabro.

Do mesmo jeito que se costuma fazer com um troféu, ergueu a cabeça diante do rosto. Balançou-a como se fora um pêndulo e os pingos voaram para mais longe, respingando alto nas paredes. Depois a jogou sobre o corpo inerte. Errou o alvo e ela quicou, igual a uma bola, três vezes na pedra fria.

Sorriam cúmplices. Tudo o que havia sido programado estava feito. Serviço completo. Agora era aguardar a segunda parte do plano. Acaso estivessem certos, em muito pouco tempo a polícia estaria chegando.

Não se passou nem mais um minuto e o som estridente de uma sirene se fez ouvir. Lá em cima, escondidos atrás de cortinas e persianas, os moradores assistiam, aflitos, a chegada do carro da polícia. Imediatamente, agora vindo do outro lado, chegava-lhes o berreiro de uma segunda, era a confirmação de que tinham acertado.

Lá embaixo a vontade maior que lhes vinha era a de um longo banho. Livrar-se daquelas marcas e do cheiro, meio adocicado, a lhes causar náuseas. Mas teriam que controlar o anseio, eis que sabiam o quanto aquilo tudo iria ser complicado, dali por diante.

Importa que tivessem se vingado e a constatação disto, por mais absurdo havia sido o que há pouco tinham terminado de realizar, muito lhes alegrava. Estarem sujos daquele líquido viscoso, já fazendo menção de secar em suas peles, era mero detalhe. Não havia dúvida de que valia a pena que o suportassem por mais um tempo.

Avistavam também, pela janela lateral, o crápula do 301 conversando com os policiais e abrindo o prédio para eles. Repararam quando passara usando a escada de serviço e se postando junto ao gradil. Obvio que não desejava ser visto. Afinal devia estar se borrando de medo dos dois.

Sendo capazes de matar alguém assim no hall do elevador, o que diria de fazer o mesmo com um vizinho que abominavam? E ele nem tinha ideia de que a pessoa lembrada por Odete, ao desferir os ferozes golpes, havia sido ele.

Chegaram de uma vez. Quatro ao mesmo tempo invadiram o recinto. Dois tinham subido pela escada de serviço, vindos da garagem, e os outros haviam arrombado o blindex. Os PMs todos com as armas engatilhadas.

Por já esperarem que assim eles chegariam para prendê-los, prontos para o que desse e viesse, era uma tremenda bobagem correr riscos. Para verem logo que não ofereceriam resistência, tomaram o cuidado de deixar, bem distantes, a faca curta e o punhal utilizados. Ao ouvirem barulhos na escada e no jardim que antecedia o vestíbulo, lançaram logo as mãos para o alto.

A primeira reação dos militares foi de nojo e repulsa diante da bestialidade. Aquela cena nua e crua era mais que chocante. Era selvageria demais. Mesmo estando acostumados a toda forma de violência, ainda se viam assustados frente a tamanha barbárie.

Acesas as luzes do ambiente o mais graduado aproximou-se do local onde repousava cabeça. Foi então que diante dela soltou estrondosa gargalhada. “Bem que estava reconhecendo este cheiro. Tomate puro. E além do mais, não é preciso ser médico para constatar a impossibilidade de haver num ser humano, esta quantidade enorme de sangue. Parece que exageraram no ketchup por aqui”.

E tomando cuidado para não lambrecar os dedos, apanhou no chão, também pelos cabelos, a cabeça da boneca de pano assassinada, para que seus companheiros vissem e enquanto enfiavam nos coldres os revólveres também dessem suas risadas.

Num instante o sorriso havia desaparecido do seu rosto. “Bem, agora que está terminada a brincadeira. Só precisamos saber quem foi o engraçadinho que está querendo gozar com a nossa cara, realizando esta falsa comunicação de crime?”

“Não fazemos a menor ideia. Cá estávamos ensaiando a difícil cena do assassinato, quando vocês surgiram”. Contou-lhes Jonas essa meia verdade, já que tomavam parte num grupo amador de teatro, mas cena de esfaqueamento e degola, na peça que em breve levariam ao palco, nunca que existira.

O tal vizinho que abrira as portas aos policiais tinha sido o que havia ligado para o 190. E disto já eram sabedores, eis que dialogaram com o salafrário através da grade, junto ao portão da garagem, antes de tomarem de assalto o hall do edifício.

Não cabiam desculpas e desse jeito ele foi rebocado para a Delegacia. Primeiro para explicar-se num longo depoimento ao delegado de plantão e em consequência do seu ato, responder a inquérito pela falsa comunicação de crime.

Madrugada ia alta e no prédio rolava a festa. Moradores que antes espreitavam, ocultos atrás de suas janelas para não gerar desconfiança no mexeriqueiro, os acontecimentos na portaria agora se reuniam comemorando o sucesso da pantomima, enquanto lavavam o piso.

Aquele tinha sido um belo trabalho em equipe do qual gente de praticamente todos os apartamentos haviam participado. A ideia partira de Odete e de seu marido. Um se incumbira de comprar o recheio de estopa para o corpo. Algumas mulheres tinham costurado as roupas, outras elaboraram aquela mistura esquisita de suco te tomate, quetchup e água, depois acondicionadas no interior do corpo dentro de garrafas de água mineral, a serem perfuradas pelas punhaladas. Alguém comprara a cabeça da boneca e outra trouxera de casa sua antiga peruca loura.

A lição enfim havia sido dada ao fofoqueiro. A investigação concluída pela velhinha do 402, provou que o maluco cheio de manias do 301, um verdadeiro hacker, fizera um gatilho no circuito interno de TV com vistas a espionar os moradores. Era sabedor de tudo.

Tornara-se fonte de grandes confusões e brigas, ao publicar, a partir de boletins anônimos não só aquilo que via, mas também o que sua imaginação doentia ampliava. Novos amores, a intimidade das carícias dos namorados, as desavenças, os segredos dos seus vizinhos. Tudo.

Daí a arquitetarem aquele plano macabro de fingir que assassinavam uma menina, com vistas a apanhá-lo com a boca na botija, foi um pulo. Acaso a polícia se fizesse presente a evidência estaria confirmada. Ficaria mais que provado de que lá da sua central de espionagem, assistia, confortável, um crime hediondo. A morte da boneca.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 08/07/2013
Alterado em 22/03/2017


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