Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Ninguém entendia o que estava acontecendo. Júlio Cláudio, o mais maluco da turma do Zum Kalum, composta de rapazes bagunceiros, tinha virado rapaz jovem comportado. Os colegas, rindo bastante, desconfiavam demais daquela transformação. Diziam ser impossível um cara como ele ter se tornado, de uma hora para a outra, tão educado e respeitável.

A razão de tamanha mudança estava clara: era o amor. A paixão avassaladora pela menina mais certinha, bonita e cobiçada do bairro. A linda Rafaela havia provocado aquele milagre. Só ela sabia o que tinha se passado quando Júlio se declarou apaixonado. Disse-lhe ser impossível aceitá-lo como namorado.

Como amar alguém que sempre agira de maneira incoveniente com ela e com as garotas e famílias da região? E listou-lhe um pouco do que ele havia aprontado nos últimos tempos. E mesmo só tendo tratado das derradeiras ações, estava mais do que claro que eram assustadoras. Disse-lhe da festa de quinze anos de Renata na qual, depois de abrir um bueiro e apanhar umas doze baratas, soltou-as em meio à valsa da debutante.

Relembrou-lhe do dia em que o convidou para que estudassem na sua casa e, numa ida ao banheiro, com a tesourinha de cortar unha, deixou careca o pincel de barba do pai. Contou do cordãozinho cheiroso, também chamado de “peido alemão” que ele tinha deixado aceso debaixo do banco na Igreja, bem no meio da missa.

Aquela manhã fatídica na qual colocou manteiga, sob a maçaneta da porta do carro de seu Nacif, o velho que morava na casa em frente e que tinha mania de limpeza. Até hoje acha que aquilo que impregnou-se em sua mão é algo bem pior do que parecia.

E o pior, a noite na qual colou com todo cuidado o buraco do cadeado do Colégio com Super Bonder, atrasando as aulas por mais de uma hora. E haveria muito mais, só que Rafa não iria gastar seu português com ele.

Bastavam aqueles exemplos para mostrar-lhe ser impossível que formassem algum dia um casal. Mas nosso companheiro era insistente. Olhando-a nos olhos suplicou: "E se eu mudar? E se provar que posso ser diferente? Você me namora?" Na certeza da impossibilidade de tal fato ocorrer, concordou.

Combinaram que se nos próximos três meses ela não ficasse sabendo nada de errado dele, repensaria no caso. Na verdade, falou assim mais para terminar a conversa. Estava cansada daquele papo com o cara mais doido do bairro.

Só que milagres são raros, mas ocorrem. Júlio Cláudio transfigurara-se. Era outro, totalmente diverso daquele tão complicado de antes. No início sua mãe chegou a imaginar tratar-se mesmo de doença. O amor faz coisas incríveis, foram todos aos poucos constatando.

Passados os noventa dias de completa santidade, lá vai Julinho se encontrar com seu amor. Encantada com seu poder, capaz de fazer um cara, considerado caso perdido como aquele, se transformar, havia decidido aceitar o namoro.

Era um sábado e ele a convidou para um cinema. O tempo todo comportou-se como um gentleman. Beberam refrigerante, tomaram sorvete, sorriram muito um para o outro, se deram as mãos e trocaram uns beijos. Tarde mais do que perfeita não fosse por um detalhe.

Nosso amigo não tinha ido ao banheiro nem no cinema, muito menos na sorveteria. Achava que não seria preciso. Só não contava com a viagem bem mais demorada. É que acontecera sério acidente de carro no meio do caminho.

Quando chegou à casa de Rafaela, Júlio estava que não se aguentava mais. Suava frio, tentava mesmo não pisar com força o chão. Tinha medo de atiçar mais a bexiga. Jamais teria coragem, depois de tudo vivido, da raiva do pai dela pelo pincel de barba barbeado e agora, cúmulo do absurdo, ainda namorando a filha, pedi-la, primeiro dia de namoro, para que entrassem e assim pudesse usar o toalete.

Ela feliz da vida por ter descoberto uma pessoa tão especial, passou pelo portão e postou-se com os cotovelos por sobre o baixo muro, feito de tijolos chamados de cobogó. Ele com ânsias de sair correndo para se aliviar e a namorada, encantada, esticando a conversa.

Sem se aguentar mais, não teve dúvidas do que deveria fazer. Naquele momento aconteceu a terrível recaída do nosso herói. A namorada no alto, ele embaixo, protegido das vistas dela por estar praticamente colado ao muro, aliviou-se.

Só de um pequeno detalhe não tinha se dado conta. É que os tais tijolos cobogó são vazados. Horrorizada e com os pés molhados Rafalea entrou correndo em casa. Julinho perdera para sempre a sua paixão.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 19/08/2013
Alterado em 22/03/2017


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