Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Amor perdido

Inacreditável, mas naquela manhã o trânsito fluia. Seguindo o intenso movimento na terceira das cinco pistas de cada lado da avenida, ela ouvia o notíciário. De repente um cantar de pneus, carros tentando se desviar para um e outro lado, fez com que saísse do automatismo. Reduzida a velocidade viu, encolhido, parecendo querer se proteger no minúsculo olho de gato, á frente, o poodle.

Não abandonaria o cãozinho numa situação aflitiva como aquela e cometeu a falta grave de brecar ali mesmo, congestionando o tráfego. Abriu a porta exato ao lado dele para apanhá-lo e surpreendeu-se com seu salto entrando dentro do automóvel. Aboletou-se, como se nada houvesse acontecido e aquele veículo fosse seu, no banco do carona.

Fechou a porta e viu pelo retrovisor a aproximação do guarda. Como se não fosse com ela deu a partida. Olhando o animalzinho com a bocona aberta a mirá-la, como se a conhecesse desde sempre, lhe disse: “Seu danado. Vi logo que tinha família. Não só pela raça, mas principalmente porque seus irmãos de rua jamais cometeriam tal desatino: atravessar tantas faixas nesse horário. Se acaso alguns tentaram estarão latindo no céu canino”.

Foi então que lhe alcançou o cheiro. Veio de uma vez tomando intenso o interior do carro. Teclando para fechar o vidro da sua janela, aberto quando da abordagem do cão, imaginou haver algum bicho morto por perto. Mas aquela ação só piorou o fedor.

Estava ao lado o cheiroso. Por onde teria andado na sua busca de comida? A ideia de deixá-lo sob os cuidados do gentil guardador do estacionamento, caíra por terra. Voltar para casa? Fora de cogitações.

Pânico! Às nove participaria de reunião da diretoria para apresentar o novo projeto. Pela primeira vez, dois anos de empresa, visitaria o aquário, como apelidavam o ambiente no qual trabalhava a cúpula da empresa. E se aquele mau cheiro permanecesse impregnado em suas roupas?

Seta para a direita e estacionou no posto de gasolina. Teria que enfrentar a situação e foi aí que reparou haver meio escondida, entre os pelos sujos e emaranhados do pescoço, fina coleira. Ponta dos dedos e tocou-a. “Vai que tem alguma indicação do dono”. Falou em voz alta. E havia sim. Uma plaquinha tinha de um lado, num coração o nome do bichinho: Amor. Do outro um número de telefone.

O cheiro a sufocava e saiu para ligar. Ia desistir quando a voz cansada e sussurrante atendeu. Ao lhe dizer que estava com o cão, a velhinha desabou a chorar. Aflita, com medo de se atrasar para o importante evento, esperou a diminuição do choro de alegria, torcia para que eles, Amor e sua dona, morassem próximos. Ufa, o endereço dado se situava só duas quadras dali.

Sem dar tempo para que o cheiro do Amor pudesse ser sentido pelo porteiro largou-o, dizendo ser do trezentos e um. Com o ar condicionado ligado no máximo e as janelas abertas, chegou à garagem. Em paz, pois fizera a boa ação do dia.

De noite, cansada e preocupada com as revisões a serem feitas no projeto, para que fosse aprovado na semana seguinte, esquecera-se do Amor. Isto até que abriu a porta do carro. A impressão foi que ele estava ainda dentro dele. O Amor tinha partido, mas sua marca, mesmo com as lavagens, desodorantes e perfumes borrifados, permaneceria viva por vários dias com ela.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 16/09/2013
Alterado em 22/03/2017


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