Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


A missão 

Genésio era figura mirrada e frágil. Magro e pequenino ninguém sabia bem como tinha sobrevivido à vida de abandono. Quem sabe se por ser tão desprovido de tamanho sentisse a necessidade da manutenção constante do sorriso franco no rosto. Amigo de todo mundo no bairro, era um dos dez filhos adotivos da velha Delourdes benzedeira.

Além de ter sofrido demais até chegar enfim aos braços de Delourdes, o que se podia considerar de diferencial nele, em relação aos irmãos e outras pessoas, era a sua excessiva educação. Genésio era cortês por demais. Talvez por isto, várias mães da região de gente tão pobre torciam e mesmo faziam lá suas rezas para que se engraçasse por uma de suas filhas.

Mas Genésio, ao contrário do que ansiavam aqueles desejos maternos, não era de namorar. Devotíssimo de Nossa Senhora Aparecida ele não saía de casa sem que houvesse feito suas orações entregando-se aos cuidados da santinha mãe de Jesus.

Vida mais trivial do que aquela poucas deveria haver. Nosso amigo acordava sempre bem cedo para cumprir suas orações e novenas à Nossa Senhora ainda em seu oratório no quarto. Em seguida cuidava de mãe Delourdes, já purgando o final da existência entrevada no leito, apanhava sua benção e ao sair colhia uma flor ou ramo no jardim, para oferecê-la no altar de Maria na Igreja ao fim da rua. Então estava pronto para partir rumo ao escritório de advogados no qual, há dez anos, cuidava da máquina de Xerox.

A vida seguia assim até a tarde em que, sentado no vaso, lê escrito na porta da privada do escritório, desse jeitinho mesmo, essas três palavras: “Genésio é viado” . Aí foi que não conseguiu obrar nada. O intestino, que costumava andar entrevado, travou de vez.

Só podia ser Perseu. Aquelas letras arredondadas, meio infantis eram dele. Foi fácil comprar na favela um revólver velho e com número riscado. Genésio, tomando os devidos cuidados para não ser visto, tomou o mesmo trem que o seu desafeto. Ao vê-lo descer na estação também saltou e o seguiu até que ele entrou numa ruela. Não havia ninguém à volta e então gritou:

- Perseu.

- Ué, Genésio, você por aqui, que surpresa boa!

Foi o que respondeu o quase morto, surpreso com a presença do companheiro de trabalho na sua vizinhança.

- Desculpa aí, Perseu, mas você me chamou de veado e isto eu não admito. Comece a rezar e não me leve a mal, mas você já era.

- Ficou maluco, amigo. Não tenho nada com a sua vida. Com o que faz, ou deixou de fazer.

O barulho seco do tiro ecoou na viela. Apanhou a mochila dele para parecer ter sido assalto e saiu correndo. A carreira foi até o momento em que sentiu que os joelhos iriam dobrar de vez. Jogou as tralhas do falecido nas águas poluídas do córrego e fez sinal para o primeiro ônibus.

Deu sorte porque ele o deixou no Centro. Apanhou outra condução para casa e desceu dois pontos antes. Encontrou a Igreja aberta. Entrou e foi direto ao altar da Virgem. Entre dentes, sussurrou então mirando firme o rosto da imagem:

- Desculpa aí, mãe!

Deu-se então o milagre. Genésio reparou que Maria lhe sorria toda delicada. Chorou copiosamente e foi neste exato momento que ele sentiu ter uma missão bem grande. A partir dali não mais precisava se preocupar com gente do tipo de Perseu. A meta era limpar a sociedade de todas as pessoas más. Havia muita perversidade no mundo e ele iria acabar com ela. A arma ainda iria ter bastante serventia.

Depois desta noite, além das orações, novenas e do ramo, ou da flor colhida no jardim e trazida para homenagear a santa, de vez em quando, lá vinha Genésio ao altar de mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, também para lhe pedir desculpas. 

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 28/10/2013
Alterado em 26/05/2016


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras