Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

Amigo Oculto 

O muro todo pichado, intransponível, mais do que pela altura, por aqueles rolos de aço cheios de lâminas cortantes. O portão de pedestres que só vi se abrir uma vez e o maior, da garagem, que parecia jamais haver sido usado, davam ao lugar certo ar fantasmagórico. O idoso, morador do local, recluso e antissocial, conforme pude constatar quando tentei empreender algum contato.

A mudança acontecida pouco antes do Natal reforçava a consideração que fazíamos, de que a sonhada aquisição do imóvel, tinha sido verdadeiro presente natalino. A localização do prédio não podia ser melhor. Ficava a três quadras da estação do metrô que nos levava ao trabalho pela manhã, devolvendo-nos ao lar no início da noite.

Na quadra do meio a tal casa estranha. Nela, além do velho, vivia a fera. Desde a primeira vez que passei diante daqueles portões os latidos me acompanharam. Era estranho. Parecia que sabia quando estava me aproximando. Faltando ainda uns dez passos para o meu posicionamento diante do seu muro e o alarido dos seus fortes latidos se faziam ouvir. Com o tempo pude reparar, afinal trata-se de passeio bem movimentado, que quando da passagem de outros transeuntes, o silêncio imperava.

Por que chamo tanto a atenção desse estranho cachorro? Foi a primeira pergunta a me coçar a orelha. A partir dela a segunda logo surgiu: Por que ele não gosta de mim, logo eu que amo os animais e dentre eles sou apaixonado pelos cães?

Tomei então firme decisão: Conquistarei esse bicho! Botei as mãos à obra. Umas quatro casas antes de chegar até ele e começava a assobiar. Não é que o danado sabia que era eu e partia a latir, cheio de fúria, desde já? Rindo contei para Cláudia o que acontecia e ela sorriso descrente a me contestar: “Óbvio que ele late para qualquer um que assobie dentro do seu raio de audição, o que entre os caninos é bem vasto.”

Como me viu chateado pela sua descrença e ironia diante do fato que eu constatara resolveu, ela que usava o mesmo caminho uma hora depois de mim, assobiar antes de chegar à residência do cão. Fez isto duas vezes, na ida e na volta e pôde observar então que o brutamonte se manteve silencioso, tanto diante do seu assobio quanto da sua passagem.

Mais convicto ainda de que a birra era pessoal, resolvi sair de casa um minuto mais cedo. Desse jeito poderia parar diante do portão e trocar umas palavras com aqueles latidos agressivos. A ideia era de responder àquela vontade de brigar com palavras de afeto e carinho. Só que a estratégia não funcionava. Faltava-lhe os bons resultados práticos. Ao contrário, ela só fez aumentar a altura dos latidos e a vontade do bruto de atacar-me.

Acaso ele pensa que irá me vencer, está muito enganado, pensava. Cativar aquele cachorro foi-se tornando verdadeira obsessão para mim e, com o passar dos dias, aquele minuto inicial tinha se dilatado. Tornaram-se bem mais do que cinco após um mês de utilização daquela tática de aproximação.

Chovia bem forte no dia em que veio a novidade. Foi causada pela imperceptível mudança no tom do assobio, ou alguma palavra fora enfim escutada de outro modo pelo cachorro? A verdade é que não faço ideia. O que sei é que, de repente, tudo havia se transformado.

Não ocorreu a violenta contestação ao assobio e quando parei diante do portão pude ouvir algo bem diferente. Não havia mais aquele rude arranhar das unhas no portão e no piso. Muito menos a ferocidade dos latidos.

Escutava agora os sons de um ganido triste e o fungar forte do focinho a captar meu cheiro. Era enfim reconhecido por aquele cão. E como a conquista valera a pena. Aquele foi realmente um dia bonito da minha existência.

A partir de então a nossa amizade foi só aumentando. Um final de tarde, grande surpresa! O velho estava chegando. Apressei os passos e lhe disse um olá. Além de não obter resposta recebi duro olhar de reprovação. Antes que pudesse ver pelo menos a cor e o porte do novo amigo, o barulho do portão sendo batido com raiva doeu nos meus ouvidos.

Seria ele ou ela? A verdade é que nem do sexo eu era sabedor. Pelos latidos e fungar para mim grunhindo, companheiro, pela ínfima fresta entre o chão e o ferro do portão, depreendia ser o meu colega grande. Mas seria de alguma raça pura, ou era mestiço? Branco, malhado, marrom, ou preto? Nada disso dava para saber.

Hoje sei que isto não era importante. O que importava realmente é que fomos grandes amigos. E companheiros assim sentem a falta um do outro. Tanto que nos finais de semana, naqueles mesmos costumeiros horários, dei de visitá-lo. E era gratificante reparar como era aguardado por ele. Como conheço duas pessoas, um homem e uma mulher, partilhando o mesmo apelido, Duda, resolvi chamá-lo assim.

Do dono de Duda foi nascendo em mim, misturado ao ciúme, uma raiva esquisita. Ciúme devido ao fato de que ele podia estar com o animal sempre que quisesse e raiva porque tinha a impressão de que ele não lhe dava nem um pouco do carinho que lhe era devido. Já se tinham passado cinco Natais. A família crescera. Tínhamos um filho com três anos. Praticamente todo sábado e domingo, levava-o para visitar Duda.

Em seguida ao Natal e aproveitando o feriado de ano novo, íamos tirar uns dias de férias. Como sempre acontecia no caso de eu ter que me ausentar, fosse por um ou mais dias, prévia e cuidadosamente conversava com o meu amigo, preparando-o para a minha falta. Foi isto que fiz nos dias anteriores.

Na tarde do Natal, o último dia antes da nossa esperada viagem, fui ter com Duda e lhe expliquei tudo mais uma vez. Meu amigo entendeu totalmente e me senti livre para os dias de descanso.

Voltamos da praia no domingo tarde da noite e pela manhã saí de casa ainda um pouco mais cedo, para curtir um tempo maior com Duda. Mas não houve resposta ao assobio e muito menos teve a fungada levantando poeira, diante da minha presença frente ao portão.

Foi então que reparei na vizinha me acenando da janela. Atravessei a rua e ela que, sem eu notar, reparava desde há muito, meu comportamento, relatou-me a tragédia. O velho, um ermitão solitário que participara de uma revolução em sua terra no estrangeiro tinha morrido, um dia depois da nossa viagem.

“Descobriram o falecido três dias depois por conta do mau cheiro a empestear a rua inteira. A polícia arrombou o portão e o seu colega esfomeado, com sede e assustado, partiu para a defesa do território, atacando os policiais. Um deles, despreparado e movido pelo medo, atirou duas vezes. Nós o enterramos no jardim do velho.”

Conte-me dele então, lhe pedi cabeça baixa. Esse cachorro foi um grande companheiro que tive. Um amigo oculto, porque nunca o vi. Ela então me disse que o Duda era macho e da raça boxer. Qual cor ele tinha? E então fiquei sabendo que Duda era tigrado. “Você está chorando!” A senhora constatou meio sem graça.

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 27/01/2014
Alterado em 22/03/2017


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