Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


 
Alto lá. Não me venha dourando a pílula. Não aceito que venha tratar de coisas que só me fazem espumar de ódio. Dizem que você aqui é respeitado, mas saiba do seguinte: Respeito não devo a ninguém. Nem a esse seu Deus e muito menos a você.

De igual para igual podemos dialogar. Conheço a droga que sou, mas sei mais ainda a merda que você é. Posso continuar a contar minha vida. Gosto disto. Divirto-me com as caras e bocas que as pessoas fazem ao saberem dos horrores cometidos. Ah, sua cabeça balançando diz que sim.

Pois já nasci enviesado. Nunca soube de pai e minha mãe me contou que bebeu de tudo quanto foi receita de chás e outras beberagens abortivas pra me expulsar do ventre. Como não deu resultado dava socos e mais socos na barriga, que teimava em ir crescendo, para me matar.

Pensa que me relatou esses fatos com remorso? Alguma dor causada pelo arrependimento? Pois que nada. Dizia às gargalhadas e eu era miúdo. Fato é que estava bêbada e isto, caso queira considerar aí nas suas avaliações mentais, poderá servir a ela de atenuante, uma pobre coitada, não é mesmo?   

Entrei atrasado na escola, tinha uns dez anos. Entrei e saí rapidinho. Fui expulso na primeira semana. Meninos não me deixaram brincar com a bola deles. Nessa época, para defesa, já tinha o canivetinho. Só encostei nela a ponta afiada.  Fez fiuuuuuuuuuuuu e ficou murchinha. Eu ria demais e dois deles, mais corajosos e maiores, quiseram me enfrentar. O talho no rosto do primeiro, o sangue escorrendo e não sobrou ninguém por perto.

Apanhei demais em casa. Você não sabe o que é bêbado batendo. Eles não têm limites e socam com o que está à mão. Minha irmã mais velha, tadinha, tentou me defender. Ganhou um galo na cuca fruto de batida forte da panela de pressão.

Dessa vez, pelo menos, sabia por que ela estava me batendo e a ironia é que foi logo por causa de uma escola que não sentia que fazia questão que eu frequentasse. Na maioria das vezes desconhecia porque apanhava. Numa dessas protegia o rosto e ela então quebrou duas coisas: o braço protetor e o cabo da vassoura com que me agredia.

A gente ia para o hospital e no caminho ela me doutrinava. Se disser que apanhou, mesmo com esse braço quebrado, vai levar dobrado na volta. Inventava alguma história do tipo “ele caiu na escada, escorregou no passeio liso, tropeçou no meio-fio...”. 

Meu tio, irmão dela mais novo, gostava de mim. Achava legal que eu não chorasse quando apanhava. Foi quem me ensinou a bater. Treinava boxe e me fez ver que podia enfrentar até garotos bem grandes. Foi morto num assalto que deu errado. Recolhia o dinheiro do caixa na lanchonete e não viu que um policial estava no banheiro.

O tira saiu e lhe sapecou um balaço no peito. No jornal a manchete era assim: “Bandido morre com as mãos na botija”. Enterro dele eram só nós quatro: mamãe num fogo só, eu e minhas irmãs a escorá-la. Companheiros dele ficaram com receio de que a polícia estivesse por lá.

Nessa época, já com catorze anos, decidi morar no morro. Fui ser avião do tráfico. Ganhar meu dinheirinho certo e quando a polícia apertava até dava uns pitocos com a ferramenta trinta e oito. Já sabia me defender dos perigos e com uns companheiros descia até o asfalto para melhorar a grana nuns assaltos.

As meninas caíram na vida. Fosse só isto, que corpos delas quem manda são elas mesmas, mas houve mais. Estava juntando um dinheirinho que queria conhecer o mar. O Rio de Janeiro de tantas belezas nas revistas das bancas. Fazia as economias e quando passava perto da casa de mãe, entrava e malocava num buraco entre dois tijolos atrás do armário.

Devem ter escutado o barulho de arredar o móvel, eis que uma noite cheguei lá e quem disse que dinheiro havia? Criara asas. O bom cabrito não berra e fiquei quieto observando. Mulher é bicho bobo e já no dia seguinte estavam de roupa nova. Raiva quando me vem eu não consigo controlar.

Fui em casa e mamãe escornada na cama nem me viu. Peguei as roupas delas e fiz fogueira no quintal. Deixei as duas só com as roupas novas. Pensa que acabou aí? Elas me entregaram para a polícia.

Fiquei dos dezesseis aos dezoito anos no Reformatório Pai Bondoso. Foi nele que aprendi tudo de ruim que alguém seja capaz de imaginar. Extorquir, achacar, sequestrar e matar. Está surpreso? Pois lá dei fim a três caras.

O primeiro queria me fazer de mulherzinha dele. Disse que topava, mas que seria no dia seguinte, pois estava de diarreia. O bobo acreditou e na madrugada fui até onde dormia e abri a goela dele. Arma foi uma moeda afiada pacientemente no cimento do chão. Cortar garganta, aprendera por lá, é bom porque não tem grito. Sangue esguichou e fiquei sujo. Lavei logo e nem desconfiaram de mim. O babaca estava cheio de inimigos.

O segundo queria sociedade na minha comida. O rango já era ruim e pouco. Vou ainda dar parte a vagabundo? Também foi esgoelado sonhando e dessa vez pus folha de jornal na frente. Até achei que iam pensar que fora eu, mas nada. Tenho sorte.

O último foi para defender amigo. Aliás, vou modificar. Um que achava ser amigo, mas que me traiu dedurando ter sido eu o assassino. Veja só como é a humanidade. Defendi o idiota, deitei para sempre o inimigo dele e me entrega. Tomei quatro meses de casinha, que é como a gente chama a solitária.

Perdi as regalias de cuidar da biblioteca. Único lugar que gostava lá. Devorava um livro a cada dois ou três dias. Acha que pobre não pode ter cultura? Pois me tornei sábio. Viajei quase nada, mas sei de coisa demais do mundo. Sou conhecedor de virtudes e pecados. Domino vários mistérios da natureza humana.

Um companheiro trabalhava na secretaria e foi lá que viu papéis com meu nome e fotografia. Contou-me que estavam separados porque eu iria chegar à maioridade em poucos dias e seria transferido para presídio. Aqueles dois anos na gaiola já estavam mais que suficientes e decidi fugir. Acaso soubesse o tamanho da facilidade teria escapado antes. Naquela mesma noite preparei uma teresa amarrando cinco lençóis. Subi ao telhado e caí no mundo.

A primeira missão era encontrar o tal que fui defender e me dedou. Ele havia cumprido pena e saíra durante meu período de solidão. Daqueles tempos de amizade ficara sabendo em que subúrbio o corno morava.

Comprei fiado uma automática e parti para lá. Com três perguntas bem feitas e já estava diante do barraco dos pais dele. Chamei e o cabritinho saiu cheio de medo, mas fingindo estar feliz com a minha presença. Queria porque queria me convencer de que aquilo que diziam sobre o alcaguetar era fofoca. Meti muitas balas na cara dele que era para estragar o velório. Deixei algumas para a volta. Afinal poderia aparecer algum doido querendo vingar o presuntinho. 

Em dois anos estava famoso. Sabiam de mim no Brasil e no mundo. Chefe de muitos morros. Homem respeitado até demais, apesar da idade de vinte anos. Tretar comigo era brincar com a morte todos sabiam. Escolhi e namorei as meninas mais bonitas. Nunca que tive menos de cinco de cada vez.

Filhos, que saiba, tenho quinze. Todos muito bem amparados. Para as minhas mulheres dou do bom e do melhor, mas ai daquela que se engraçar por algum homem. Justiço os dois. Morte devagar, daquelas bem judiadas. Aconteceu mais de uma vez.

Frequentar Igreja? Nunca gostei, acho que tenho gastura delas. Nas poucas vezes em que entrei numa não foi para rezar. Fui para roubar, assaltar pastor e mesmo fugindo da polícia. Aí me misturava em meio aos crentes pegava uma Bíblia e até fingia cantar uns hinos deles.  

Coisa que aprendi num livro policial foi que bandido bom não fica contando o tanto de mortes ocorridas. Dai que se me perguntarem quantos foram não saberia dizer. Estou hoje com vinte e cinco anos. Considerando uns dez a cada ano que mandei aos infernos, mais os que ordenei que apagassem, a conta vai dar uns setenta. E isto sem aqueles três e mais o dedo duro, do tempo no qual era de menor.

Diz que mãe e irmã visitam preso na cadeia. Balela pura. Sabe quantas vezes a velha apareceu? Uma e essa foi para pedir dinheiro. Dei enojado e cuspi na cara dela que em mãe a gente está impedido, por mais que se odeie, de encostar a mão.

Gosto quando vem aqui. Sinto falta de alguém para conversar, tendo que viver nesse seguro no qual estou metido. Há inimigos demais querendo minha pele. Tenho que viver sozinho. Fiquei só com os livros. Para não haver problemas, vamos combinar o seguinte, padre: Pode puxar qualquer assunto. Só um está proibido. Não me venha nunca falar de família. Quero somente a realidade, não me traga contos da carochinha.   



 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 24/02/2014
Alterado em 26/05/2016


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