Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


ARMAZÉM DA MISERICÓRDIA
 
Nos primórdios do Século XX dois fatos deixavam grande parte da população do Rio de Janeiro preocupada e desprotegida. É que o povo simples não tinha como se defender dos projetos de modernização e geradores de mais saúde, que então eram implantados.

Dois homens lideravam as mudanças e nem é preciso dizer o quanto eram odiados pela gente miserável. Um deles era o prefeito Pereira Passos a demolir áreas imensas cheias de casebres, amontoados de cortiços insalubres, moradias dos pobres e que, conforme os políticos, precisavam dar lugar à modernidade: ruas largas, arranha-céus, cidade saneada e comércio mais dinâmico.

O outro atuava em paralelo e, no olhar das gentes simplórias, também causava grande estrago. Tratava-se do cientista Oswaldo Cruz, a se arvorar em cruzado da imunização contra o flagelo da varíola. Era obrigatório vacinar a todos contra a doença terrível que a tantos, sem distinção de classe social, cor ou riqueza, atacava.

Só que tal sanha modernizadora e a favor da saúde da população era feita de maneira totalmente autoritária. Nem o prefeito cuidou de arrumar lugar adequado e indenizar condignamente os cidadãos a serem remanejados, muito menos o cientista fez algum esforço para explicar ao povão as benesses a serem trazidas com os projetos.

Certo é que a sanha modernizadora daqueles dias deixava o povo apavorado e esse descontentamento desembocou na famosa Revolta da Vacina, que convulsionou a cidade do Rio de Janeiro em meados de novembro de 1904.

Enquanto tudo isto era manchete na imprensa, um evento estranhíssimo, esquisito mesmo, acontecia na cidade. Houvesse ocorrido em tempos mais tranquilos, com certeza teria tido maior divulgação. Talvez por não haver sido cuidado devidamente pelos jornais, quem sabe por conta da nossa inefável tendência ao esquecimento da história, o fato é que hoje praticamente ninguém sabe algo sobre o episódio que lhes relatarei.

Trata-se da intrigante bancarrota do mais importante comerciante da cidade. Nas coleções de jornais da Biblioteca Nacional, escondidos nas páginas interiores, pude encontrar algumas referências ao fato. Lamentavelmente as notícias estavam eivadas de viés sensacionalístico e até mesmo anedótico. Para serem mais bem compreendidas necessitaram passar por uma espécie de filtro, na busca do real oculto por detrás da narrativa.

Pesquisando as coleções dos jornais anteriores a novembro de 1904, pouca coisa encontrei referente ao senhor Joaquim José Romualdo Bragança da Torre e Pinho, o protagonista da nossa história.
Nas páginas que tratam das efemérides referentes aos endinheirados, três pequenas notas são encontráveis sobre ele: o casamento de uma filha na Antiga Sé, a doação de quantia de dinheiro para a compra dos bancos da Igreja de São Joaquim e a contenda com antigo empregado denunciado por ele, como larápio especializado em desviar mercadorias dos navios para outros lugares, que não seus galpões.
Sobre a esposa Dolores a mesma aura de mistério. No Cemitério do Caju se encontram registros do enterro, em cova rasa, de Dolores Silva Torre e Pinho, no dia 11 de junho de 1907. Estranhamente, não consta no livro nenhum dado sobre idade e muito menos cor, estado civil e filiação de tal mulher.
Podemos presumir tratar-se da esposa de Romualdo, mesmo que não tivesse esse Silva como sobrenome, mas sabemos também o quanto era comum que se batizassem, com os nomes dos patrões, os filhos e filhas de antigos escravos daqueles senhores e senhoras tidos como bons. Com isto paira ainda a dúvida. Será que não se tratava ali de criança defunta, ou jovem morta filha de uma das empregadas da casa nos áureos tempos de fortuna da família?

Nosso herói era natural de pequena vila lusitana chamada de Quintas dos Sonhos. Lugar, apesar de o nome sugerir coisa diferente, mais do que paupérrimo. A miséria causada pela falta de empregos fez com que o rapaz Romualdo se deslocasse para Lisboa, no intuito de se oferecer como subalterno em algum navio, viajando nele rumo às colônias da África.

A sorte, ou o azar, sempre a mudar os planos, fez com que, numa ruela lateral do Porto, desse com antigo companheiro da terra natal. Este, de nome Miguel, havia voltado, fazia três meses, de Angola. O que lhe contou foi que a crise na África era ainda mais grave do que a que grassava na Europa.
Por conta disso, dera meia volta, na esperança de ganhar a vida novamente em Portugal. Como em Lisboa não encontrasse nada e ficasse sabendo, pelas notícias que por lá circulavam, que no interior a coisa estava ainda pior, resolveu mais uma vez partir, no mais autêntico espírito português, para os oceanos.

“Mas estou indo para a outra banda. Viverei no Brasil. Lá é a nova terra da promissão e o melhor de tudo é que, como em África, falamos a mesma língua”. Foi o que, enfaticamente, carregado de entusiasmo, lhe disse.

Os planejamentos anteriores que bem possivelmente nem poderiam ser assim chamados, pela vagueza de dados nos quais tinham sido erigidos, cambiaram-se rapidamente e lá se foram os dois a buscar nas empresas de navegação algum serviço, sem nem querer outra recompensa que não fosse a viagem gratuita em navio cargueiro que os transportasse às terras brasileiras.

Deram sorte e logo estavam a bordo e bem melhor do que num cargueiro. Conseguiram vagas em um vapor de passageiros. A função que tinham era a da limpeza. Cuidar daqueles espaços que os empregados efetivos não queriam limpar.

Lastimavelmente, o único lugar da Primeira Classe ao qual possuíam acesso eram as latrinas, e essas – Romualdo iria contar e recontar a vida toda – não eram nem um pouco mais limpas do que as do porão, usadas pelos emigrantes da Terceira Classe. “Bundas dos endinheirados e de pobres nada têm de diferente. Produzem as mesmas fedorentas merdas”. Adorava dizer, às gargalhadas.

Miguel, cansado do estafante e nauseabundo trabalho, desembarcou no primeiro porto do Novo Mundo. Ficou em Recife e dele nosso amigo nunca mais teve notícias. Mais trabalhador e animado, Romualdo até chegou a pensar em apear por lá também, mas ouvira falar bem do Rio de Janeiro e lá definira viver.

Na Capital da República ele, que chegou sem tostão, dormindo de favor numa espelunca na Gamboa foi, pouco a pouco, adquirindo fortuna. Em alguns anos se tornara homem rico e, portanto, respeitado. Dois anos depois da chegada já pôde mandar dinheiro para que, lá de Quintas dos Sonhos, pudesse vir a noiva Dolores Sousa, com quem antes que embarcasse, se casou por procuração.

Seu faro para negócios, aliado à avareza, fez com que, de ajudante no cais sem nem poder comer e dormir direito nos primeiros dias, se transformasse no maior exportador de café e açúcar daqueles tempos. Afora o envio para o exterior desses produtos, da Europa Romualdo importava azeite, óleo de baleia, bacalhau, farinha de trigo e outros produtos para suprir seus armazéns. Isto além de tecidos, uma infinidade de miudezas e ferragens que comprava barato e vendia caro, através de um exército de mascates, país afora.

A vida de comerciante próspero e considerado, um dia, mudou radicalmente. Esta transformação aconteceu na madrugada de 23 de junho de 1904. Romualdo despertou de um sonho deveras sobressaltado. Em definitivo, que não fora como um daqueles pesadelos recorrentes, que costumava vivenciar quando das crises e consequentes quedas no preço do café e do açúcar.

O agito matinal, provocado por estranhíssimo sonho, nada tinha a ver com angústia ou tristeza. Ao contrário, Romualdo acordou feliz como passarinho que tem como primeira função do dia, quando ainda escuro, dar uns pios de alegria no meio da mata.
Nele lhe apareceu um anjo, daqueles lindos seres alados, que costumamos admirar em pinturas nas Igrejas mais antigas e em gravuras de livros sagrados. Um com imponentes asas, forte e jovem de olhos azuis, cabelos louros e cacheados. Tal ser celestial sorria, ao mesmo tempo em que lhe disse estas palavras: “Romualdo, o mundo a partir de agora entrará numa nova fase e você tem parte importante a realizar nessa nova Terra. As eras de maldade, sovinice e de tantos pecados estão no final. O mundo será outro e Deus escolheu algumas pessoas especiais, cada qual dentro de sua área de atuação, para iniciar o milagre da transformação. Há gente convocada nos campos da saúde, bancário, segurança, transportes, serviços e até no âmbito dos políticos e dos militares. Você será um dos nossos na área que tanto domina: o importante setor do comércio e da alimentação.”

“O que realizará e como irá proceder no futuro? É o que está, no mais íntimo do coração se perguntando, não é mesmo?” E ele no sonho, sentado diante do anjo que se mantinha de pé, garboso e imponente, balançou afirmativamente a cabeça.
Não havia a menor sombra de dúvidas de que se tratava de enviado de Deus, eis que o rígido e atribulado comerciante sentia-se invadido por uma paz imensa e estar desse jeito, numa hora dessas, só pode ter ligação com os céus. Era como se já não houvesse à sua volta nenhum problema. E o anjo continuou: “Fazendo uso de todo o capital amealhado ao longo desses anos, você deverá abrir grande mercearia. A maior do Rio de Janeiro. Nem em alguma outra cidade das Américas haverá negócio tão grandioso. A ela dará o nome de Mercado da Misericórdia e ninguém do seu estabelecimento sairá sem aquilo que necessitar e que em seus estoques houver”.

“Sim, farei isto, afinal realizar negócios é o que faço desde que me entendo por gente. Sou reconhecido como empresário de sucesso”. “Romualdo, atenção, pois você não agirá como têm feito os comerciantes, inclusive você. Para as novas empresas do mundo reformado, ficou definida pelas Cortes Celestiais uma única regra: a da Confiança”.

E ele balançou a cabeça intrigado. Deve ser um milagre dos grandes esse de fazer com que haja confiança universal, refletiu com seus botões. “Mas quem sou eu para duvidar do anjo do Senhor.” Foi o que deduziu naqueles instantes.

“Meu filho, jamais desconfie dos desígnios de Deus!” O anjo agora, sem sorrir, lhe dizia com voz tonitruante, semelhante à dos filmes bíblicos. E ele teve medo, eis que o ente celestial havia sido capaz de ler seus pensamentos.

“Senhor Anjo, pode dizer a Deus que sou todo confiança e que aceito participar do projeto. Nesses poucos minutos em que conversamos senti mais paz e tranquilidade do que nos meus cinquenta e quatro anos de vida. Sou todo fé e confiança no Pai Eterno e, aqui diante do Senhor, ó enviado do Altíssimo, prometo repassar ao povo toda a confiança que em mim Deus deposita”.

E Romualdo encerrou sua solene declaração, dentro daquele estranho sonho, com um sonoro “Amém”, que aquilo, ele que nem era de novenas e rezas, considerava que oração das bem grandes fosse.

Foi trabalhar leve, como jamais os que o conheciam tinham algum dia visto. Dolores, com várias pulgas atrás da orelha, chegou a desconfiar da existência de alguma sirigaita, tal o tamanho da transformação do marido. Os filhos alegres e ao mesmo tempo assustados, com o pai lhes dando, sem que nem solicitação houvesse, dinheiro para a diversão e algum outro gasto que se fizesse necessário.

Os empregados a começar de Anselmo, seu primeiro feitor e homem da mais estrita confiança, achavam que ele tinha ficado louco. O homem, considerado dos mais avarentos da Cidade Maravilhosa, aumentara, sem que pedissem, o salário da turma e ordenou que liberassem os vales. Para aqueles que tivessem dificuldades em saldá-los, era a ordem, que fossem perdoados.

O galpão imenso vizinho à Praça Mauá, que até então era usado para estocar açúcar, na política especulativa do aguardo de melhores preços, em menos de cem dias foi transformado num grande armazém de secos e molhados. O maior do Brasil, de fato e não somente no dizer do Anjo.

Em pouco mais de um dia todo o Rio era sabedor de que um comerciante excêntrico criara novo modelo de negócio na loja recém-aberta chamada Mercado da Misericórdia. Nele os caixas estavam orientados a venderem a todos. Mesmo para aqueles que não portassem dinheiro. Bastava que assinassem vales no valor da compra.

A orientação explícita era para que confiassem, aceitando como verdadeiras as palavras dos clientes. Daí que em bem pouco tempo quase ninguém levava dinheiro. E muitos, por motivo de segurança, cuidando-se para a eventualidade de depois serem cobrados, rabiscavam um nome qualquer nos tais vales.

Ao analisar tais papeis na casa de um bisneto, mais maluco ainda, eis que acalenta o sonho de receber aqueles valores em moeda que há tantos anos nem mais existe, dei com nomes notórios do tempo do Império e naqueles primeiros anos republicanos. Havia Princesa Isabel em grande número, muitos José do Patrocínio, vários Luis Alves de Lima e Silva, Florianos e Deodoros, além de uma infinidade dos odiados Oswaldo Cruz e Pereira Passos.

Enquanto teve dinheiro, sempre confiante no Anjo de que as pessoas voltariam para saldar as dívidas, José Romualdo ia repondo os estoques. O tremendo afluxo de gente, com filas desde a madrugada, fez com que em pouco tempo as prateleiras ficassem totalmente vazias e nos galpões mais nada para ser reposto existia. Mais umas semanas e começou a solicitar empréstimos.

Desconfiados com aquele modo tão temerário de negociar, os banqueiros arrumavam desculpas para lhe negar dinheiro. Teve que vender imóveis. A fazenda no interior de Minas, a plantação de café em São Paulo, as dezenas de galpões da Zona Portuária, umas tantas vilas de casas em Botafogo, Humaitá, São Cristóvão e Laranjeiras. Por fim foram penhoradas, na Caixa e jamais resgatadas, as joias de Dona Dolores.

Cessaram-se as fontes e José Romualdo não tinha mais onde lançar mão para fazer dinheiro. O mais triste era que o povo, ao encontrar o Armazém da Misericórdia vazio, ainda tinha o desplante de dizer que ele estava roubando o dinheiro que o governo lhe repassava, para que servisse à população. Tornou-se assim o terceiro odiado daqueles tempos.

Ansiava demais pela volta do Anjo, do qual nem perguntara o nome. Culpava-se pela falta de sono e sem dormir era impossível sonhar e se encontrar com o enviado de Deus. Sentia-se impedido de escutar as orientações emanadas dos Céus, ou mesmo os dinheiros que milagrosamente poderiam vir de lá, ou de não se sabe onde, para tirá-lo daquela enrascada. Isto, pelo menos, até que em outras áreas também ocorresse a tal propalada mudança na confiança das pessoas.

O Anjo jamais retornou e nunca ninguém soube de alguma pessoa que tivesse recebido, em sonho, visita desse tal ser angélico. José Romualdo, então, totalmente no buraco e sem ter a quem recorrer, reconheceu a bancarrota e abriu falência.
Nas minhas pesquisas sobre tão estranha história, junto aos familiares e conhecidos que me reconstruíram todo o seu trajeto – desde sua saída de Portugal, a viagem e trabalho duro no navio, a construção de fortuna –, é o fato de não ter sido possível saber que final teve o nosso herói. Será que morreu acreditando no Anjo? Ou se o andar da existência o colocou em meio ao conflito causado pela falta de fé no Anjo e naquele que o enviou?

Nas conversas com os descendentes, moradores atuais de Bangu e Vigário Geral, é curioso reparar a raiva que, passados mais de cem anos, ainda nutrem pelo velho. Reclamam que podia tê-los deixado ricos, por variadas gerações, mas que, ao contrário, Romualdo só lhes legou dívidas e as chacotas do povo.

Num asilo pude me encontrar com a única neta viva de Romualdo. Régia do Pinho, com seus noventa e cinco anos, a memória bem falha e totalmente cega, era possuidora de verdadeiro tesouro. Apontou-me, num momento de lucidez, a sua gaveta. Lá dentro eu haveria de encontrar numa caixa de charutos bem amarrada alguns papéis do seu pai. Explicou-me que os havia escondido e preservado no intuito de resgatar a memória do velho. Só que a vida foi passando e ela nem mais se lembrava do que havia lá dentro.

Misturada a certidões antigas, letras vencidas, ações de empresas inexistentes há tantos anos, havia uma carta de Romualdo endereçada ao cardeal Dom Joaquim Arcoverde de Albuquerque e tudo indica que jamais tenha sido enviada. Nela o nosso herói conta do sonho, detalha as orientações dadas pelo anjo e de como fez tudo para cumprir com as suas orientações. Sem tal carta seria tarefa impossível ter lhes contado essa história.

Também por intermédio de Régia, obtive indícios do que possa ter ocorrido depois. Aos noventa e cinco anos, a única neta viva de Romualdo relatou-me ter ouvido, quando criança, duas versões sobre o final de vida do avô.

Uma delas dizia que, logo após a quebra, morando já de aluguel em Niterói, no bairro do Fonseca, com esposa e filhos, sofreu fulminante ataque do coração morrendo imediatamente, tendo sido enterrado por lá mesmo.

A outra contava que perdera a razão. Que tinha ficado doido e até mesmo violento com os parentes, ou com aqueles que, nas ruas, ousavam rir de tão triste sina. Por conta dos problemas gerados pela loucura, em camisa de força, ele teria sido enviado, em viagem de trem, para ser internado no Hospício de Barbacena em Minas Gerais.

Nas exaustivas buscas nos registros dos cemitérios de Niterói constatei não existir nenhum indício de que por lá ele esteja. Por três vezes viajei a Barbacena e lá também, analisando os apontamentos de registro do Hospital Psiquiátrico, nenhum nome, nem ao menos parecido com o do protagonista da nossa história, eu pude encontrar.

Termino este relato com um pedido de desculpas. Sinto não ter conseguido oferecer aos leitores maiores informações sobre o final dos nossos heróis nessa história tão esquecida, tal qual era o objetivo quando do início desse empreendimento.

Quem sabe no futuro, algum jornalista ou historiador profissional e não um amador, diletante como eu, animado com esse pouco alcançado, tome interesse pelo tema e, embasado em maior técnica, mais competência e sorte, seja capaz de colocar luzes sobre os desdobramentos de tão esquisita ocorrência.
 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 07/04/2014
Alterado em 22/03/2017


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