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BEIJOS DE JUDAS
- Sabe que sei quando virá? Não há modo de lhe explicar direito, mas sinto o coração palpitar mais forte e, de repente, lá está esse sorriso grandão entrando pela porta. É uma sensação tão boa. Ainda mais que você chega me chamando de vovó.
- Ah, vovó, mas é tão bom estar aqui. Pena que não dê para vir mais vezes. Minha vida é tão complicada e com o marido que tenho não sou nem um pouco dona dos horários. Daí que não gosto de deixar agendadas as visitas. Mas sempre que posso dou um jeitinho de, correndo, vir lhe visitar.
- Sei, minha netinha. E lhe juro também que nunca mais vou ficar lhe perguntando, feito velha rabugenta e carente, quando poderá estar comigo. Vou me conter desta vontade, mas de ficar rezando para que Deus a traga o mais rápido possível, ou seja, todo dia, toda manhã, toda tarde eu não irei jamais me refrear, viu?
- Sim, querida vozinha, eu sei disso. Há muito a partilhar. Você nem tem ideia do quanto suas histórias me fazem bem. O tanto que necessito delas. A minha vida é tão turbulenta e vir aqui é como se tivesse encontrado um oásis em meio à secura da vida em que estou metida.
- É, mas queria saber mais de você. Só eu que falo. A minha neta me conta tão pouco da sua história, do seu dia a dia. Praticamente não sei nada do que lhe ocorre.
- Pois é, vovó. Digamos que isto possui razão de ser. É que tenho outras pessoas com quem falar e você me confidenciou que só conta comigo, além de necessitar da sorte de haver alguma empregada, em dia com mais paciência, para ouvi-la enquanto lhe presta cuidados. Daí que me calo e fico saboreando o tanto que você tem me compartilhado.
- Ah, minha neta amada, vou acreditar. Porém algo me diz, lá no fundo da alma, que a minha menina me oculta algo...
- Vovó, você é tão bobinha. Eu nunca esconderei nada de você. Ao entrar já pedi para que lhe preparassem o banho. Já deve estar tudo arrumado. Vou colocá-la na cadeira e partiremos velozes pelos longos corredores rumo à água quentinha. E olhe, trouxe xampu novo e um creme hidratante que é uma delícia.
- Gosto demais quando me leva na cadeira. É tão bom sair desse quarto. Depois que a vizinha se foi desta para a melhor, ninguém eles colocaram aí nessa cama para me fazer companhia. Você tem toda razão, adoro sentir o ar passando pelo rosto, me propiciando a sensação deliciosa de liberdade que há muito parecia haver perdido.
- Pronto, banho tomado. Vamos secar bem esses cabelos branquinhos para que possa lhe fazer novo penteado. Não ria. Diferente mesmo e bem bonito. Voltemos e como apreciamos a velocidade, pelo menos enquanto não houver nenhuma enfermeira chata pelo caminho, mais rápido ainda dirigiremos pela casa. Enquanto estiver cuidando dos seus cabelos e lhe massageando com o creme novo, me postarei toda atenta à continuação da sua história.
- Sou-lhe tão grata, minha querida. Você é a neta maravilhosa que nunca tive. Todo dia, toda hora, agradeço ao Senhor por você existir e vir aqui, com este carinho táo especial, para cuidar da velha coroca que nem é mais capaz de dar um passo que seja.
- Pois é, chegou a hora das histórias. Ou acha que não sou a neta interesseira louca pra saber da vida da vovó dela? Da última vez que estive, quando chegou o tempo de retornar, você me contava como conheceu o marido. Pois continue.
- Eram tempos de muita repressão aqueles da juventude. Nós nos conhecemos num baile ao qual tinha sido levada por uma tia. Sabe que as moças nunca tinham permissão para irem às festas sozinhas? Mas nada disto tem importância. O que preciso lhe perguntar é se acredita em amor à primeira vista?
- Claro que não, vovó. Nem sei bem se acredito no amor. Ando tão desiludida de tudo... Mas esse negócio de que olhou para o cara e, de repente, bate uma química que faz os dois se misturarem e daí que vivem juntos e felizes a vida toda? Isto não consigo que entre em minha cabeça.
- Esta é a única coisa na qual divergimos. Mas o que importa é que creio e ponto final.
- Continue, vó. Não iremos discutir né? Conte-me logo a sua história que quero aproveitar cada uma das palavras que lhe saírem dos lábios.
- Quando nossos olhares se cruzaram senti algo estranho. Uma espécie de arrepio diferente. Estava de alguma maneira prometida ao irmão de um fazendeiro vizinho. Uns primos distantes. Homem mais velho e que parecia não gostar de banho. Sem nada a ver comigo. Morria de medo de ter que viver com ele.
- Mas vovó, aí está explicada a sua atração pelo tal moço no baile. Seu receio de ter um namorado arranjado foi que provocou essa tal sensação estranha.
- Fico rindo dessa sua descrença a respeito do amor, minha doce menina. Quando acabar a história serei eu que estarei toda ouvidos para lhe escutar. Creio que tem muito a me contar também. Ele era corajoso e me tirou para dançar. Aí foi um escândalo. Além do mais por se tratar de rapaz desconhecido.
- Ele não era lá da cidade?
- Não, tratava-se de um vendedor. Naqueles tempos eram chamados de cometas. Vinham com uns burros com duas canastras cada. Traziam coisas do Rio de Janeiro para revender à gente na roça. Tinham de tudo um pouco. Das coisas mais mimosas às mais urgentes e necessárias.
- Mas não entendi isto: de que se tratasse de algo escandaloso alguém de fora, que estivesse num baile, convidar uma moça para dançar?
- Na verdade, netinha, não foi bem isto que provocou o alvoroço. Este se deu porque ele me beijou e eu, doida e afoitamente, sem nem saber o porquê, acolhi seu beijo.
- Coisa mais simples e comum, além de tão gostosa, a gente se beijar. Isto nada tem de escândalo, vovó.
- Ah, isto você diz hoje que os costumes são diferentes. Está tudo tão mudado. Naquela época foi uma loucura. Assunto falado por vários dias na cidade toda. Fiquei meio que mal falada. Mas isto teve seu lado positivo, sabe?
- Que ponto bom é este de se sentir assim na boca do povo fofoqueiro? Não vejo vantagem alguma nisso.
- Benefício houve e dos grandes. É que assim o tal coroa fedorento, ao qual estava meio oferecida, torceu o nariz e afiançou não desejar mais casório. E isto abriu caminho para o meu amor beijoqueiro.
- E foi bom, vovó? Como foi seu primeiro e assim tão escandaloso beijo?
- Maravilhoso, minha amada, a sensação era a de que não existia mais nada ou alguém à volta. Nem baile, orquestra, valsa, muito menos outros pares dançando. Era como se a irmã solteirona da mamãe nem observasse, horrorizada, à cena.
- Uau! Adoraria estar presente para assistir a esse beijo e ter visto a reação hipócrita do pessoal.
- E o medo de que o meu cometa fosse embora e nunca mais retornasse? Aí sim, eu seria mais que vítima das fofocas de comadres e mesmo das amigas. Teria ficado maldita para sempre. A beijada no baile pelo moço desconhecido, que não se casou com ela.
- Inveja, pura inveja. Mas ele voltou, não é? Pelo jeito esta história tem final feliz e estou louca para que chegue logo nele.
- Sim, era um homem muito bom e honesto. Claro que retornou. E muito antes do tempo em que costumava regressar. Mais ainda, ele voltou só com o cavalo. Das mulas nem trouxe notícias. Chegou para ficar de vez e se casar comigo.
- Que bonito o amor dele, vovó. Estava de um jeito assim tão interessado, que até a profissão tinha largado?
- Pois é. Deixara de vez as estradas, Não era mais cometa. E então namoramos o que para a época foi bastante tempo. Quatro meses! E olha que muito mais vigiados. Nos três meses primeiros nem sentar ao lado dele podia. Ficava diante de mim, separado por boa distância. E nunca que tinha oportunidade de estarmos sozinhos. Sempre com gente por perto.
- Mas desse jeito precisavam falar alto, o que significava que a vela iria ouvir todo o namoro de vocês. Que chato isto. Implicância desse povo, vovó.
- Falávamos mais pelo olhar do que por palavras. Mas importa que iríamos morar na cidade. É que o meu pai havia estipulado uma regra: que filha dele para casar jamais que poderia ser levada para longe de suas vistas.
- Que norma mais maluca.
- Pois foi assim. Era uma maneira de o papai demonstrar o amor que sentia por mim. Era muito rico e ofereceu trabalho nos seus armazéns. Como meu amor tinha sido caixeiro viajante, portanto sabia negociar muito bem, não teve dificuldades em se adaptar.
- E ele tinha uma relação boa com seu namorado e depois marido?
- Naqueles tempos os contatos entre sogro e genro eram mais formais. Ouso dizer que frios até. Mas ele foi conquistando o velho na medida em que fazia negócios sempre bons, o que aumentava os nossos ganhos de casal e consequentemente a fortuna da família.
- E o casamento, como aconteceu, houve festa, ou foi coisa simples?
- Você acha que o casório da filha do coronel mais importante da região, ia ser coisa para se passar em brancas nuvens? Pois foi festejo para mais de sessenta carros de bois. Isto que me contaram, pois que noiva é dona de muitas outras preocupações e contar carroças não faz parte desse rol.
- Mas a festa era das gentes ou das vacas?
- Ai, minha netinha, só você para me fazer rir assim. É que naquelas eras as pessoas não possuíam automóvel e para se ir a um casamento não se podia ir caminhando. Distâncias eram grandes. Imagine moças, senhoras, homens e mulheres mais velhos, com a melhor roupa que dizíamos ser roupa de ver Deus, tendo que caminhar léguas e léguas? O carro de boi era transporte mais que bem-vindo então. E havia gente que vinha de lonjuras.
- Os parentes dele também estavam lá, vovó?
- Sim, dois irmãos, a mãe e um primo, além do melhor amigo dele. Como eram de outro estado, lá do Rio de Janeiro, não foi possível que viesse mais gente. Viajaram primeiro de trem, depois em lombo de cavalo até à fazenda. Chegaram meio descadeirados. E o pior de tudo foi que calcularam mal a viagem e tiveram menos que um dia para descansar.
- E do casamento em si, você se recorda de algo? Conte-me mais. Sabe o quanto aprecio as cerimônias.
- Obvio que me lembro. Não me esqueço de nada. Foi tudo tão lindo. As palavras do padre, as flores na Igreja eram angélicas. Flor das que conheço que tem o mais forte perfume. Gente que não cabia mais. Muitos foram obrigados a ficar do lado de fora. E a chuva de pétalas de rosas que ganhamos quando saímos do templo? Festança para dois dias. Muita comida, bebida sem medida para todos. Um conjunto da capital para animar o baile.
- E a lua de mel, vovó?
- Minha neta, lua de mel era por lá mesmo. Ainda mais que havia o receio de que eu fosse ser raptada. Acha que deixariam que me levasse para lugar mais remoto? O que lhe digo foi que aquele amor à primeira vista prosseguiu por exatos sessenta e um anos e dois meses. Posso lhe afiançar que a lua de mel durou enquanto estive casada.
- Que lindo o que me conta. Uma lua de mel que permanece por bem mais de meio século. Quando reparo que tantas, ainda nos primeiros dias já se transformaram em tenebrosas luas de fel.
- Não tenho uma queixa, uma palavra que seja de reclamação dele. Ao contrário, fomos felizes demais, mesmo sem termos tido filhos. É que meu útero não conseguiu segurar criança alguma. Até o último dia, quando se despediu de mim e partiu, a gente foi feliz.
- Aiai, vovó, já chegou a hora de ir para casa. Ainda tenho que passar na escola para apanhar seu bisneto Gabriel, que ainda nem trouxe para você abençoar. Mas antes de sair não vai me deixar esperando até que retorne para me contar esse final, não é?
- Ele estava muito fraquinho. A gente já morava aqui em São Paulo havia mais de trinta anos. Os médicos o haviam desenganado, mas a gente quando é apaixonada demais, busca se iludir. Assim, cada dia com ele era como se fosse mais um, de um tanto que ainda estava por chegar.
- Então ele faleceu quando estava ao seu lado?
- Sim. Não deixei que o levassem de novo ao hospital. Estava sentada ao lado da cama e fez um gesto para que deitasse juntinho dele. Senti ser aquele um momento especial e tive medo da verdade, de que fosse o fim. Ele, rosto ao lado do meu, sorria banguela, que de dentes não havia mais nenhum. Estava lindo e sabe qual foi o seu último pedido?
- Ai, vovó. Deixe de fazer suspense e me conte depressa. Sabe que estou atrasadíssima.
- Segurou firme a minha mão e pediu um beijo. Seu último hálito foi em minha boca. Morreu do mesmo jeito que nasceu para mim. Num lindo beijo.
- Estou chorando, vovó. Agora preciso ficar mais uns minutos até me recompor. Não quero que o Gabo me veja assim ao buscá-lo no jardim da infância. E você nem me disse como se chamava? Qual era o nome do seu marido?
- Judas era o nome dele. Judas Tadeu, meu eterno amor.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 21/04/2014
Alterado em 22/03/2017
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