Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O velório do juíz

Droga, quando menos se espera despencam as surpresas. Logo ontem foi me acontecer isto. Ainda mais numa semana como essa de agenda tão complicada. Nem faço ideia de como farão para me substituir na palestra magna do Congresso. Mas que bobo sou de me preocupar. Fosse só isso, mas e as audiências há tanto adiadas? Julgamentos quase prescritos? A pilha de processos sobre a mesa? E cá estou em berço esplêndido. Opa! Tudo menos esplêndido, que esse negócio está bastante duro. Domingo assim dos mais prazerosos. Dia planejado em duas etapas e que se complementavam. A primeira de propriedade da família e a segunda do prazer pleno, do gozo. Missa na manhã bem cedo com Dora, o almoço que programara de cozinhar pra mim e, pela tarde o grande lance. Sem passar a impressão de apuro e assim não deixar margem para suspeitas, que cabeça de mulher é aparelho dotado de tecnologia das mais complexas. Vestir a camisa do Flamengo, não se esquecer do radinho de pilha e boné. Célere escapar do lar. Tudo programado nos mínimos detalhes e desandou como o bolo tão bem preparado e que termina solado. Acordar assim desse jeito esquisito e com tanta gente à volta. Será que é meu aniversário e nem fui avisado? Logo comigo que abomino festas surpresa. Constato continuar o mesmo ser, mais que irônico, me mantenho sarcástico. Está bem, o futebol era mentira. Não mais que inocente álibi para que pudesse visitar Norminha, estar com ela mais despreocupadamente. Será que me julgam? Gente mais hipócrita. Pecadilhos desses, inofensivos, levante a mão quem não os tenha cometido. E agora mais esta. Com alergia ao pólen e envolto em flores. Como se as admirasse. Como se gostasse delas. Como se as achasse belas. Eu que desde sempre as odiei e ao mesmo tempo tanto paguei por elas. Caso pudesse contabilizar o quanto gastei em buquês por tantos anos, por ocasião dos aniversários de Dora, dias das mães, namorados, aniversários de casamento... Lá estava deixando dinheiro com a secretária, que jamais se esqueceu de uma dessas datas, para que ligasse à floricultura encomendando as malditas rosas, vez por outra, orquídeas. Ai de mim se não as recebesse. E se descobrisse a autoria dos cartões de felicitações? Pagaria caro para poder observar a reação dela. Redigidos pela Eneida. Cairia no choro de imediato. Sentir-se-ia traída por mim. Será que soube que o infarto não foi no Maracanã, mas num apartamento do Leblon? Também o que me importa? Uma dor a mais para quem acaba de perder o marido não deve fazer muita diferença. Ou sim? Daqui ouço, vindo de bem perto, lado direito, aquele choro fininho, tão desagradável dela. De Norminha não escutei a voz e muito menos senti seu cheiro tão delicioso. Estará presente me velando? Com certeza que sim, mas evitando se aproximar. Discreta junto ao pessoal do Tribunal. Bem que poderia se posicionar aqui do lado esquerdo. Chora também? Nunca a vi assim. Nossos momentos sempre vividos em tanta alegria e felicidade. Neles não deixávamos espaços para o pranto. Só risadas e prazeres. Vontade de gritar: “Norma, meu amor, chegue aqui e me dê um beijo”. Quem chamou o socorro médico com certeza que foi ela. Terá me vestido antes? Ou estava esdrúxulo, pelado, quando subiram ao apartamento? Equipe de paramédicos de merda, incompetentes todos. O brutamonte na massagem cardíaca (e eu já estava pra lá de Marraquech) mais parecia operador dessas máquinas que perfuram concreto. Pelo menos três costelas o monstro deve ter fraturado. Estes mosquitinhos querendo invadir as narinas, tentando abrir minha boca, zumbindo à porta dos ouvidos, ansiando por entrar pelas pálpebras. Parecem ser aquelas mesmas mosquinhas pequeninas que surgem quando as frutas amadurecem. De onde elas vêm? Têm geração espontânea as drosófilas? E de que maneiras entraram por sob esse véu? Incomodam-me e nem mexer para espantá-las consigo. Mãos atadas e ainda me colocaram algo entre os dedos. Parece um terço. Logo eu que nunca rezei um. Que nem uma nesga de fé possuo. Por que dormi e acordei agora em meio a essa reunião com tanta gente? Se era para acordar, que não tivesse adormecido. Queria ter visto como foi a viagem até o hospital. Abriram o trânsito com as sirenes gritando escandalosas? Como me trataram por lá. O que aconteceu que me fez estar aqui desse jeito? E por falar em sirenas, que soem as trombetas eis que chegou o ministro. Com a sua indefectível e irritante voz conversa com a viúva. Estivesse em outra situação o poria para fora. Aliás, expulsaria não somente a ele, mas a maioria dos que aqui compareceram. Terça tem médico. Avisaram que não poderei ir? Desse último toque do urologista me safei. Das vantagens de não se poder gerenciar a vida. Este poderia ser o título do meu derradeiro livro. Alimentaram a gata, ou está miando faminta? Dora não simpatiza com ela. Acho que com a minha retirada ela também irá embora. Parta mesmo, Pretinha. Esse povo do lado daí, a partir de agora, só estará pensando em partilhas, no tanto que lhes caberá na herança e não quererão herdar uma gata castrada e cheia de vontades que, além do mais, não lhes dava atenção. Animal que consideram chato como o dono dela. Quem gosta realmente de mim? A quem amo de verdade? Fizessem-me tais perguntas e não saberia responder. Eis que chega o Isaias. Deve estar aliviado, pois que me deve uma grana preta e só nós, por razões óbvias, sabemos dos negócios que temos. O idiota tirou a sorte grande na loteria. Meu único filho estudando na Nova Zelândia. Nem que quisesse e acho que não possui esse desejo, daria tempo de vir. Aí que instalaram essa câmera para o fedelho me acompanhar desde o outro lado do globo. A câmera na câmara ardente. Era assim que antigamente nomeavam a isto. Estará a me acompanhar mesmo o filhote? Oi Gustavo, está aí? Já deve ter largado, há tempos, esse site macabro disponibilizado pela funerária. Há coisas bem mais interessantes para os jovens. Tempos de interesse de um pelo outro só houve quando era criancinha. Ao final da infância a relação pai e filho já se tornara burocrática. O provedor de um lado e o necessitado de grana pelo outro. Simples assim. Norminha devia vir se apresentar para a minha mulher. “Dona Dora, sou a Doutora Norma, juíza também e amante do seu marido. Há muito queria lhe conhecer e considero como um desígnio de Deus que a oportunidade tenha surgido, não é mesmo?” Não, essa jamais seria a hora para o bom uso da palavra prazer. Muito menos falar em desígnios de Deus. Esses nunca que aproximariam esposa e amante. De bom tom, mais fino e elegante, seria dizer meus pêsames, meus sentimentos, minhas condolências, ou algo de teor semelhante. Epa, que chegam os bandidos. Não é sem sentido que os parentes da minha esposa só andam em bando. É assim que adentram o recinto. Deviam ser presos e julgados por formação de quadrilha. Alguém aí poderia avisar aos incautos presentes, para que permaneçam atentos aos bolsos e bolsas, eis que a súcia é das mais perigosas? Hei de convir que minha parentalha não é lá também muito santa. Gente falsa que pela frente, aqui agora, por exemplo, até chora e se necessário fosse que um deles se dirigisse à plateia (e como adoram uma!) para um florilégio, fariam chorar a todos com as baboseiras e mentiras declamadas a meu respeito. Deve estar no DNA esse dom da oratória que temos para enganar o povo. Há quanto tempo estou aqui? Com certeza que já não é Domingo e a tarde cai novamente. Então seria hoje o médico da dedada, ou ainda é Segunda? Os convivas parecem vir em ondas. Tem momentos em que não há quase ninguém. Dora, alguns parentes meus e dela, amigas íntimas. Em outras horas lota que é uma beleza. Fica parecendo estação do Metrô em horário de rush. E o barulho? Cada qual querendo falar mais alto. Meu Deus, não acredito no que estou sentindo. O perfume de Norminha, o cheiro esfuziante do meu amor. Ela se aproxima e abaixa a cabeça, tenho certeza disso. Irá me beijar? Falará comigo? Será que a viúva chorona está por perto? Tomara que não, eis que a cena é perigosíssima. Nitroglicerina pura. Poderá explodir causando grandes danos, mas não a mim, que já estou mais que relaxado, frio. Desculpas, mas não compreendi. Repita por favor, quem é o senhor? O que faz aqui? Será que entendi bem? Estou falando com meu anjo da guarda? E o que eu tenho com isto de você ter se esquecido de me transportar ao destino final, que presumo seja o céu? Chega assim totalmente atrasado para me levar e quer que seja de imediato? Agora, em definitivo? Faça-me o favor de esperar. Vê esta morena linda se abaixando rumo ao meu rosto? Repara que tem algo bem importante a me sussurrar. Estou lhe pedindo, me ouça. Quer que suplique? Por favor, lhe digo então. Subo o tom e vou mais intenso e desesperado. Eu lhe imploro: Pelo amor de Deus! Agora que já fez a coisa errada e me esqueceu por quase um dia, conceda-me pelo menos mais cinco minutos. Tudo empalidece. Está ficando branco. Meu corpo esquenta rapidamente. Seu desgraçado. Vejo que de anjo não tem nada. Você é Satanás, o demônio mais sujo. Seu crápula dos infernos está me apagando. Não me arraste desse jeito. Para aonde me leva? Tire essas mãos nojentas de mim. Socorro!

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 05/05/2014
Alterado em 30/09/2015


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