Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


GODOQUASE: UMA TRISTE  HISTÓRIA 

Godoquase comemorava dezoito anos. Festa sem graça só com a mãe, uns quatro amigos e a namorada, pois que dinheiro andava escasso. Vivia a fase de trabalhar muito, ganhar pouco e com esta mixaria ainda ter que custear estudos, transporte e gastos pessoais. Esses, de uns meses pra cá, tinham dobrado de tamanho, já que para a mulher amada há que se parecer sempre bonito.

Godofredo, nome de batismo, era conhecido por todo mundo como Godoquase por motivo bem simples. É que desde antes de nascer esteve envolvido em grandes riscos. Maria da Penha somente engravidara depois de passar por quatro abortos, além de uns cinco anos de reza.

“Útero de gelatina”, é o que dizia Vilma rezadeira, autora da alcunha. “Barriga incapaz de segurar qualquer coisa”. Mas sempre chega o dia em que a gelatina desanda e Godô enfim pôde viver seus nove meses na barriga de Penhinha. Não que tivessem sido tempos tranquilos. Foi tudo bem conturbado e quase que o nosso herói não alcançava o mundo.

Ainda nos primeiros meses quase que ele morreu de uma febre esquisita, que até hoje ninguém soube direito diagnosticar. Com três anos tinha sofrido essas doenças que costumam atacar os novos: sarampo, rubéola e caxumba. Teve-as não brandas como a maioria das crianças, mas bem agressivas e, por três vezes em menos de um ano, o menino quase se tornara anjinho.

Estômago mais que sensível, aos sete tinha tido todos os tipos de vômitos e diarréias. Crescia bem magro, que nem palito. As disenterias quase o levaram ao cemitério por uma dezena de vezes. Já adolescente teve o atropelamento e quase faleceu sob as rodas do ônibus que deveria levá-lo à escola.

Aos dezesseis quase que foi embora ferido por bala perdida. Pescoço atingido e a maligna tinha passado a menos de um centímetro de mortal artéria. Com dezessete descobriu a diabetes imediatamente após ter entrado em coma, devido ao empanturramento de doces, numa festa de crianças do dia anterior.

Quase que a descoberta da doença se dava ao mesmo tempo de sua morte. Aos trancos e barrancos, quase se finando aqui e acolá, o menino se tornara homem pronto. Foi ao final daquela minguada festa, diante da namorada, o que o deixou aborrecido, que Maria da Penha lhe disse da promessa.

“Meu filho, acho que na nossa cidade nenhuma pessoa passou por tantos problemas sérios quanto você. Acredito mesmo terem sido as orações que não deixaram que morresse. Numa dessas noites de aflição, velando você pelos hospitais, acabei fazendo uma promessa para que cumprisse ao atingir a maioridade”.

“Pô mãe, sem essa de promessa. O que tive mesmo foi sorte de ter sobrevivido. Necessita de se cumprir promessa nada não”. Foi então que Sofia entrou na conversa. “Meu amor, essa coisa de quebrar promessa pode ser perigosa. Sei do caso de uma moça que fez isto e ficou lascada na vida...” E relatou baita desgraça que ouvira falar sobre alguém que desatendera promessa de mãe.

“Tá bem, tá bem. E se por acaso eu concordar o que é que teria que realizar?” “Coisa das mais simplórias, meu filho. Daqui a uns quarenta quilômetros fica o Santuário da Virgem. Já mandei fazer a cruz bem leve para que possa carregar, sem se estafar, pela estrada. Irá deixá-la aos pés do altar de Nossa Senhora, como penitência e gratidão pela sua vida”.

“Mas mãe, sair a pé uma cruz daqui de casa até à Igreja tão distante! A senhora não considerou o mico que terei que pagar andando por aí com essa sua cruz às costas? Isto nem será um mico, mas um gorila total!”

Conversa que vai, discussão que vem e Godoquase estava convencido de que deveria cumprir seu destino naquela questão com a santa. Fez planos e deliberou que sairia de madrugada. Isto para que os vizinhos e muito menos seus amigos, pudessem vê-lo daquele jeito. Alguns dias passados, madrugada bem fria, lá estava nosso herói no caminho.

O amanhecer o encontrou nas lonjuras da estrada. Mais um tempo e fazia calor. O sol lhe queimava rosto e braços. Nas programações se esquecera de dois itens básicos: chapéu e filtro solar para proteção da pele. Meio dia, sol a pino, metade da promessa cumprida e Godoquase resolveu descansar. Fim da subida íngreme encontrou o lugar ideal à sombra de grande árvore ao lado da estrada. Pensou, avaliou bem e reparou no montinho de pedras à frente.

“Perfeito para a cruz”, ponderou com a deliberação tomada de retornar desde ali mesmo. “Só não volto direto pra casa, eis que mamãe sabe que não teria dado tempo para chegar ao final da romaria”. Retorno à cidade, passo num cinema, dou umas rodadas pelo shopping e, início da noite, fazendo cara de imenso cansaço, entro triunfal em casa. A santa afinal haverá de considerar que vinte quilômetros já está de bom tamanho para o sacrifício”.

Na beira da estrada sobre as pedras daquele lugar mais alto, ajeitou a cruz. Dali, resolveu cruzar a via para retornar pelo outro lado, por ter observado que naquela banda batia menos sol. Atravessou sem reparar no caminhão de cerveja descendo silencioso, desligado o motor no afã de economizar combustível. De Godoquase pouco, quase nada, restou. A cruz postada na beira da estrada marca o lugar em que terminou de cumprir a quase promessa materna.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 11/08/2014
Alterado em 22/03/2017


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