Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


Sessão de Psicanálise
 
 Bem, se vim até aqui foi porque desejo me conhecer um tanto mais. Se é fácil estar com você? Não imagina o esforço que faço. A vontade, tento controlar, é de sair correndo e nem esperar pelo elevador. Lançar-me louca pela escada abaixo.

Pergunta-me então quem sou? Como lhe responder? Não faço a menor ideia. Digamos que seja um enigma. Mulher lunar, sujeita a fases. Mistério para mim mesma. Uma fêmea encantada. Sim, simples fêmea. Acho que todas somos assim. E sua pergunta carrega um quê de idiota, sabe? Soubesse já quem sou, jamais estaria aqui.

Deitada assim no divã posso parecer tranquila, domesticada, mas saiba que sou selvagem. Perigosa demais para estar solta por aí. Seria louco lhe dizer decifra-me ou te devoro? Bem, estou aqui com esse objetivo. Ser decifrada e, se não o for, será totalmente devorado por mim. 

Por que rio? Da asneira louca que disse. Lacan? Ouvi falar dele sim. Um tal que afirma não existir palavra gratuita? Que se falei que o devorarei, é porque fiz uma ameaça e que poderá mesmo ser, de alguma maneira, comido por mim? Meu Deus, parece ser mais insano do que eu.

Tenho quarenta e cinco anos e sou médica. Casada há vinte anos. Se sou feliz? Respondo peguntando: O que é mesmo a felicidade? Acredito é que há momentos, alguns espaços de alegria na vida das pessoas. Respondi? Quer mais ainda? Está bem, mas, antes, farei breve comentário.

Encanta-me sua mobília. Desde a sala de espera, curto cada detalhe da decoração. Encantada. Não precisa entender de artes e estilos para reparar que é tudo finíssimo. Também, a seiscentos reais a sessão, tem mais é que ser muito refinado mesmo. E a sua secretária custou a me achar agenda.Também sou exigente, só podia depois das dezenove horas.

Fiquei até pensando que ser atendida a esta hora já o encontraria cansado. Imagina só os seus ouvidos, depois de dez horas escutando lamúrias, desgraças, traumas, assédios, deprês e outras milongas mais de um bando de endinheirados... Seiscentos vezes dez pacientes dá a bagatela de seis mil. Isto num dia... Ah, e nem havia contabilizado meus seiscentinhos extras do final de expediente.

Observei que ficou incomodado por ter falado de grana. Nada disso? Posso dizer o que quiser? Será que sua escuta é mesmo assim tão fria e indiferente? Duvideodó. Mas voltemos ao tema. Continuemos no caminho da felicidade.

Há gente que é mais aquinhoada pela sorte e esses tempos de gáudio se tornam maiores. Têm outras pessoas que recebem rações mirradinhas dessa tal felicidade. Dentre umas e outras, coloco-me no meio. Da relação amorosa? Estava começando a residência médica, quando o conheci.

Foi num bloco de carnaval em Botafogo, no Rio, em que se deu o encontro. À fantasia havíamos dado o nome de “Quadrigêmeas Colombinas”. Aquele cara ruivo, de mais de dois metros de altura, sem ritmo algum, se remexendo desengonçado e fantasiado de gringo, nos chamava a atenção. A peça se vestia com camisa de estampas florais, sandália franciscana com meia azul, quase até o joelho e bermuda cheia de bolsos e zíperes.

Fato foi que o gajo parou de uma vez e eu, que vinha atrás, lhe chutei o calcanhar. Encostadinha de nada, mas ele, no clima do carnaval e já com algumas latas de cerveja na cuca, aprontou grande cena. Pulava qual saci numa perna só.

Aí, imaginei que só tinha aparência de estrangeiro, eis que um legítimo gringo jamais faria aquilo. Enganei-me mesmo e depois de dois anos e meio, estava casada com o alemão. A exigência que fiz foi que não sairia do Brasil e muito menos de São Paulo. Aceitou e não foi nem um pouco complicado encontrar emprego, como engenheiro, numa multinacional do seu país.

Temos duas filhas, Deborah, assim mesmo sem acento, segue meus passos e faz o primeiro ano de Medicina. Renata está terminando o segundo grau e não sabe ainda qual carreira irá seguir. O pai, claro, dá todas as dicas para que seja engenheira.

Patrão generoso. Gostei de ver. A secretária estava prontinha para ir embora. Disse-me que estou num horário extra, eis que nunca passa dos dez pacientes diários, mas como havia insistido muito que necessitava retomar a análise, você abriu esta exceção. Depois, falou que estudariam a planilha, para ver como me encaixar na agenda daqui por diante.

Tergiverso demais, não é? Gosto de dar voltas. A vida é ir e vir, avançar e retroceder, subir e descer. Ganhar e perder também, concorda comigo? Acho que faço isto para aliviar a tensão de ter que falar de mim. Nunca gostei de me abrir assim, ainda mais com um desconhecido. Sim, não se trata de desconhecido e a escuta que tem é profissional. Ok. Voltemos à sua anamnese por um lado e, pelo outro, ao meu discurso íntimo.

Desde que me entendo por gente escrevo. Na escola minhas redações se posicionavam, quase sempre, entre as melhores e isto muito me alegrava e animava. Descrevo-me como típica leitora voraz. Ao encontrar autor que me interesse, ponho-me gulosa. Desassossego total enquanto não devorar tudo dele.

De novo a questão do devorar. Por isto essa expressão um tanto quanto irônica? Quer me sugerir que sou mesmo uma mulher  devoradora de gente? Não está me sugerindo nada e muito menos mudou de cara? Sei lá... passou-me esta impressão, sabe?

Amo demais poesia: Pessoa, Drummond, Adélia, Murilo Mendes, Cecília, Manoel de Barros... Adoro romances: Machado, Garcia Marquez e João Ubaldo de paixão. Fascinam-me os marginais: Bukowsky, Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, Hilda e tanta gente mais. Já leu algo do Padura, conhece?

Bebo com prazer do vinho da existência. Detesto falsos pudores e moralismos. A vida é para ser saboreada com intensidade, com paixão. Economizá-la é puro sovinismo. Nosso existir não pode conviver com as tesouras da autocensura.

Os limites da vida são o céu de azul tão escuro na quase noite, vejo por essa janela e que beira o infinito. Jamais li um livro seu. Comprei o último, mas não passei da terceira página. Quem sabe retome...

Sofro do trauma da obra escondida. Isto porque as experiências que vivi, ao partilhar o que produzia, foram bem negativas. A primeira se deu com uma freira, professora. A dita cuja elogiava bastante as redações. Mostrei-lhe alguns poemas e contos. Fez caras e bocas de horrorizada. Falando baixo, dizia não serem palavras apropriadas a uma menina. A segunda vez foi com mamãe. Foi direta: Eram meus escritos umas bobagens desinteressantes.

Acho que aí a gente toca em ferida das dolorosas. Para ela sempre fui de bobagens desinteressantes. Nunca me valorizou. Lá em casa fêmea não tinha vez. Só machos eram considerados. Papai foi mosca morta. Morreu duas vezes. A primeira desde sempre. A segunda quando largou mamãe, assumindo a homossexualidade. Aí ficou evidente que também era mais de valorizar machos, não é mesmo? Fui irônica? Acha? Não disse nada, mas fez cara de que não gostou. Rosto de quem se sentiu, deixa criar uma palavra: “sarcasticado”.

Por fim Kurt, apaixonado por Goethe e que, em meus devaneios, iria curtir o que escrevia. Ama nossa língua. Nem foi capaz de reparar no caderno largado - fingindo esquecimento - sobre a estante. Deixara pedaço de linha a cumprir um quase oito sobre ele. Desejava ter a confirmação de que fora ou não tocado. Passados dois dias e estava tal qual tinha sido posto. Essas três experiências fizeram com que mantivesse reprimido o desejo de partilhar meus escritos.

Somem-se a isso tudo os papeis que a sociedade me impunha (e continua a me exigir) de mãe, médica e esposa. Com certeza, eles, sutilmente, iam reforçando o "deixa pra lá" dos escritos, da existência. Relembro que umas três ou quatro vezes tive ímpetos de queimar a “papelada”, mas sempre acontecia algo, fazendo com que adiasse o intento e permanecessem guardados no fundo do gavetão das roupas de cama dos hóspedes.

Escurece e com estes óculos, isto aqui está ficando na penumbra. Só esse abajour aceso. Pode ligar a luz? Deve estar se indagando o porquê de não tirar os óculos, não é? É que olhos são íntimos demais e nem nos conhecemos direito...

No futuro, os tirarei, por enquanto não gostaria que visse meus olhos tristes. De uns tempos para cá eles têm ficado cada vez maiores. Deborah outro dia ria de mim dizendo que daqui uns dias não se verá mais meu rosto.


Aumentam os tamanhos dos óculos na proporção em que cresce a ansiedade. Sinto-me, cada vez mais, engasgada com tudo. A vida, palavras, as perguntas existenciais e as respostas de autoajuda. A megera que foi minha psicanalista bateu, repetidamente, na tecla de que represava por demais as emoções. Suas palavras, enfim, um ano após tê-la deixado, ressoaram em mim.

Por que a chamei de megera? Na segunda sessão lhe contarei. Aguarde. Deixemos o apelidinho dela guardado no lindo armário Luis XV em frente. Não vejo daqui o relógio na parede, só escuto o tic tac. Esse Bulgari, de ouro, em seu pulso deve valer uma baba.

Eleonora é nome que me foi dado como homenagem. Defunta que trago guardada em mim. Nora, como gostava de dizer, era a melhor amiga da mamãe. Faleceu alguns meses depois do meu nascimento. Seria a madrinha. “Problemas de coração", como mammy me contou um dia, chorando obviamente. Odeio intensamente o meu nome.

Termino esta apresentação lembrando do coração da morta Eleonora. Também meus anseios e angústias, marido, filhas, solidão, enfim tudo o que aqui falei e o não dito, principalmente, são “problemas de coração” e, para que o meu se mantenha saudável, eis-me aqui, tal qual sou, em seu divã, doutor.

Acabou o nosso tempo? O seu, o meu, ou o nosso? Irônica novamente? Assumo, acho que fui mesmo. A moça falou que teria que ser em dinheiro. Que aqui não se aceitam cheques e nem cartão. Passei no caixa rápido e saquei os seus reais. Vou apanhar na bolsa.

Tudo bem, doutor. Meu cheque é este revólver. Fique tranquilo. Sei bem o que quero. Primeiro o relógio. Agora celular, carteira, cartões de crédito, o jogo de Mont Blanc. Ah, apanhe e coloque aqui dentro, com cuidado, a bailarina do Degas. E, claro, o envelope pardo que a secretária lhe passou e que, com certeza, contém a féria do dia. A gravura atrás é Picasso, não é?

Pensando o quê? A minha hora também é cara. Bem mais que a sua, há de considerar. Para o banheiro, rápido, afinal meu tempo está terminado e preciso ir embora. Claro que levarei a chave do toalete, mas antes, darei uma olhada, com calma, para ver o que mais há de interessante.

Sim, em silêncio. Ficará muito feio um homem como o senhor, a berrar dentro do banheiro. Controle-se e, antes de se esguelar, conte até mil. Depois disso esteja à vontade. Igual às suas clientes mais histéricas.

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 02/02/2015
Alterado em 02/02/2016


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