Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


PERSEGUIÇÃO 
 
Dizem que só me livrarei da senhora com a morte. Bem, como me diagnosticaram a doença, essa que tão bem sabe e da qual não digo o nome nem por decreto, parece que está chegando a hora da separação. Não sinto dores, mas o corpo vive a reclamar cansaço.

Mais uma peça que a existência vem me pregar. Para me safar de você, abandonarei a vida. E dessa, mesmo considerando seus altos e baixos, eu gosto. Desespera-me é essa presença constante, como se houvesse infinita simbiose e sua sobrevivência, sem a minha, fosse impossível.

O término do meu filme. “The End” como nos velhos tempos, a me pegar com os olhos marejados, no incômodo de que as luzes em seguida estariam acesas. Mas será mesmo o fim? Da época do catecismo nos fins de tarde dos sábados, vem a recordação de que somente três poderão ser os portos, quando enfim me postar rijo e inerte.

Naquela hora macabra em que serei petisco de vermes nojentos, dois dos possíveis destinos serão definitivos e um deles, bem aprendi, provisório. Céu e inferno fatais e o purgatório lugar de passagem, mesmo que tal etapa possa durar milhares de anos.

Cá pra nós, lhe confesso que não me interessa o para aonde estarei indo. O que anseio mesmo, veja bem, é que a senhora se ponha num local diferente e distante do meu. Estarei feliz, mesmo queimando no fogo eterno, se souber que não estará à espreita.

Larga da minha cola, “quem anda colado é chicletes”, foi a verdade que li, preso num engarrafamento, no para choque de um caminhão. Aliás, engarrafamento é o que você me provoca. Tendo a sua presença junto de mim, me sinto encalacrado, cercado, num beco sem saída.

Sou total prisioneiro e tal cadeia, mais que me afligir, me desespera totalmente. Está bem, não precisa me lembrar disso. No começo convivíamos bem. Cheguei a curtir – meu Deus, como era bobo, quão larga a minha inocência! – quando me envolvia, abraçando-me e me pondo no colo. Sim, dava gostosas risadas quando se punha a correr às minhas costas, no afã inútil de me pegar. Em outras horas dava-se o contrário. Partia, juntinho de mim, em desabalada carreira e lá ia eu, todo feliz, ao seu encalço.

Pouco a pouco fui me dando conta, do quão invadida estava sendo a minha privacidade com a sua presença, se não real, lá do lado de dentro, dando mirabolantes voltas pelos miolos. Sabe dos meus segredos. Os mais íntimos, os mais terríveis. Aqueles que até eu mesmo me apavoro de guardá-los. Daí que a afeição que tinha pela senhora foi se esvaindo. Secou e se transformou em ódio. Quero matá-la, extingui-la, bem sabe disto.

Será que todo mundo é assim? Será que já nasceu um ser que, depois de haver crescido, conseguiu manter uma relação, não necessariamente positiva, mas pelo menos aceitável, com um ser abjeto como é a senhora? Não creio que uma convivência normal possa ser viável com alguém tão presente e ao mesmo tempo, impertinente, tão invasivo.

Lembra-se daquela manhã em que me acompanhou, pela primeira vez, ao psiquiatra? Claro que não se recorda, pois foram tantas vezes. Aliás, é bom que se diga, jamais fui até eles (foram muitos) sozinho. Em todas as consultas, as marcadas e as de urgência, de maneira sutil, ou mesmo explícita, lá a dona estava. Fazia (e faz) questão de marcar sua abominável presença.

Nem nos terríveis choques e horas dos remédios pra fazer dormir até mesmo cavalos, conseguia me libertar de você. Terá a senhora arranjos com o demo? Epa. Se tomar parte em seus engodos, fundamental será que nos destinos eternos, eu não caia no caldeirão fervente de satanás. Melhor então a melodia eterna das harpas, dedilhadas pelos anjinhos a pairar em fofas e brancas nuvens.

Sugere que esteja sendo irônico? Que o meu discurso vai carregado de sarcasmo? Pois que seja assim, não a suporto mais. Fez-me doido varrido. Insano, demente, louco, delirante, alucinado, maníaco, pirado, maluco de pedra. Eu a acuso. Essa sua proximidade doentia e geradora de ascos, trouxe-me tais disparates. Faz-me marginal, vagando pela terceira margem, fora de siso, motivo de riso.

Mas não posso saltar daqui da murada desse prédio. Recordo-me do 
que a catequista dizia-nos: os suicidas se esgueiram rastejantes rumo ao fogo que não se apaga. Bem, se acho que estará por lá, eis que tem partes com o Coisa Ruim, o Caipora Cafifento, a queda será a manutenção, por todos os “séculos dos séculos, amém”, da nossa íntima e odiosa relação.

Melhor então, mesmo que demore uns seis meses, aguardar a progressão da moléstia. Esta, que lhe contei, aos pouquinhos, vai me tomando as entranhas. Sim, farei isto. Buscarei um sacerdote, um padre velho e contarei tudo, tintim por tintim. Pedirei a absolvição e, enfim, estarei longe da senhora. Livre, totalmente livre, maldita Dona Sombra.

 
 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 18/05/2015
Alterado em 09/03/2017


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