Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


CIRCO 

Era uma vez um circo. Não desses grandões, iluminados e coloridos que se instalam em espaços valorizados das metrópoles. Contarei pedaços da história de um circo pequenino, pobre, mambembe mesmo, como se costumava dizer antigamente. Ao falar dele me emociono, eis que lhes trarei um pouco da história do Grande Circo Internacional e ao relatá-la vocês estarão conhecendo a minha vida.

Como em qualquer circo desse porte, cada membro da trupe exercia bem mais de uma função. Papai era o gerente, bilheteiro, apresentador, marqueteiro e palhaço. Sua entrada no palco provocava um turbilhão na plateia. Do lado de dentro eu o observava e tenho para mim que o bufão não precisa fazer nada. As crianças irão rir até mesmo da sua não ação. Mas papai era bom profissional, ou seja, alegrava não somente os miúdos, mas também seus pais. Sempre cheio de mesuras, quando ainda jovem recebeu o apelido de Mordomo e este foi o nome que adotou no circo.

Mamãe era vendedora de balas, trapezista, a mulher barbada, além de realizar o número com os cãezinhos amestrados. Sempre de grande sucesso no programa. No trabalho do circo estava sempre a sorrir - aquele sorriso performático - para a plateia, ou para as crianças a comprar guloseimas. Fora da função, estava sempre de cenho franzido. Séria demais, poucas vezes, a vi relaxada entre nós.

Tio Alberto, chamado por todos de Muralha, era o irmão mais novo de mamãe, atuava como porteiro, equilibrista de pratos e bolas, responsável pelas músicas e som, iluminador, líder no número com os cavalos e também o “homem mais forte e violento do universo”. Acham que era pouco? Pois era também uma espécie de “faz tudo” por lá. Orientava montagens e desmontagens, gambiarras de eletricista, veterinário e tratador dos animais, carpinteiro e o que mais houvesse necessitando ser feito.

Maria Eulália não era nativa do circo. Fora adotada. Como toda criança, extasiada com a passagem do circo pela cidadezinha, escondeu-se, quando da partida, entre a lona dobrada e umas madeiras e só foi encontrada na cidade seguinte. Tremia de medo e frio. Três dias depois, porque não podia parar a montagem para leva-la, papai foi devolvê-la à família, quem disse que a aceitaram de volta?

Estavam aliviados com sua partida. Um gasto que não mais haveria de ocorrer em meio à miséria imensa de até assustar papai, homem frio e não dado aos arroubos das emoções. Maria Eulália, acolhida pelo Grande Circo Universal, teve como primeira tarefa ser a minha babá. Tinha uns dez anos. Eu no máximo quatro.

Havia também Raimundo que chamávamos de Remundo. O mais velho do circo. Primo de papai e abobalhado. Voz esganiçada. Hoje seria certamente diagnosticado como “criança especial”. Costumava beber exageradamente. Se invernasse numa branquinha, não havia santo que o fizesse parar. Bebia direto uns dois ou três dias e apagava, totalmente. Ao sarar do porre, era como se nada tivesse acontecido. Era o ajudante de Tio Alberto nos cuidados com os bichos, além de se fantasiar de palhaço quando das paradas nos lugares novos.

Hoje tem espetáculo?
Tem sim senhor!
E o palhaço o que é?
É ladrão de mulher!

Essas duas perguntas, respondidas aos gritos e em coro pelas crianças, nos acompanhavam quando da chegada às cidadezinhas e arraiais desse imenso Brasil. Nossa chegada configurava-se verdadeira apoteose. Bem mais animada que o carnaval e as procissões mais concorridas. Sem dúvida éramos o acontecimento do ano por aonde chegávamos.

A gente não irrompia de supetão no lugarejo. Parávamos antes para nos preparar. Os fogos de artifício nos anunciavam e se o padre fosse de bons bofes e colaborasse, éramos saudados também pelo toque de festa dos sinos da Igreja. Entrávamos então, triunfalmente ao final da tarde, quando os que tinham estado trabalhando na lavoura já haviam retornado.

O cortejo era composto pelas duas carretas, na verdade dois caminhões caindo aos pedaços, cada qual com a sua jaula coberta. Na primeira, guiada por papai, ia a jaula da mulher Goraylan, como estava escrito nos cartazes, o que era explicado por papai nas funções, tratar-se de atração internacional, sendo que tal vocábulo nada mais era do que “fêmea de gorila selvagem” em inglês. No estribo da carroceria desse caminhão vinha preso o alto-falante, chamado pelo povo de “boca de ferro”. Por ele papai animava o cortejo fazendo as perguntas de imediato respondidas pelas crianças e os adultos que ainda possuíam vivos no coração o espírito infantil.

Na segunda carreta, dirigida por Muralha, estava a jaula do próprio. Como seguiam cobertas, para aguçar a curiosidade do povaréu, ninguém podia perceber que estavam vazias de gente. Na verdade, dentro delas, viajavam os sonolentos cachorrinhos. Altaneiros, um em cada caminhão, soberbos, sempre a olhar de cima para baixo, orgulhosos, Princesa e Diamante.

Apesar de terem esses nomes, a cada cidade os cavalos eram apresentados de formas diferentes. Tornavam-se mais pomposos ganhando alguns toques que os fizessem parecer importados. Viravam legítimos cavalos árabes, puros sangue ingleses, saltadores da Abissínia, trotadores da Mongólia e mil outros nomes saídos da imaginação fértil de Mordomo. Na frente de todo mundo, vestido de palhaço, mas sem saber fazer a menor graça, ia Remundo. A ordem que tinha, e que cumpria à risca, era de saudar o público, à esquerda e à direita, com seu chapéu de três pontas.

Em minutos estávamos envoltos pelas crianças, enquanto os adultos ficavam à frente das casas sorrindo e batendo palmas, animados com a possibilidade de fugir da estafante rotina. Ter algo diferente para experimentar naqueles próximos dias. Pois foi uma dessas meninas, de um desses lugarejos perdidos Brasil afora, que nos acompanhou um dia, conforme já lhes contei. Lalinha me punha para dormir após o almoço e geralmente tirava comigo um cochilo. Uma tarde, vim a compreender isto muitos anos depois, acordei com seu grito. Mordomo tinha uma expressão estranha e saiu rápido quando lhe perguntei: “que foi, papai?” Minha babá chorava.

Apesar da sugestão trazida pelo nome, Muralha era o mais franzino dos homens. Um tremendo fracote, se é que a gente pode chamar de tremendo alguém de tal porte. Seu apelido de juventude era friso. Dizia-se que visto de frente Muralha não passava de tênue linha. A compleição mirrada facilitava o trabalho de faz tudo do circo, principalmente aquelas tarefas a serem cumpridas nos lugares mais altos, os quais escalava tal qual lépida lagartixa.

Um dos papeis mais importantes de mamãe era atuar como a “famosa e única mulher barbada nas Américas”. Vestida num velho macacão de lona que um dia teria sido verde e que, segundo constava, servira a outras antigas “famosas e únicas” mulheres como mamãe. Sobre o rosto tinha enfiada tosca máscara de um ser barbado e de longuíssimos cabelos, quase a tocar o chão.

A jaula com mamãe dentro, com esse figurino fantasiada, era posta no centro do picadeiro, coberta por um pano preto. Papai ia reforçando a atração, anunciada desde a parada inicial, como grande sensação. Começava dizendo que a fera era por demais bravia e que não se devia zombar dela e muito menos lhe dirigir impropérios. Simultâneo ao puxar do pano por Remundo, Muralha desligava a luz, deixando o ambiente na penumbra. Desse jeito, além de ninguém perceber quão bizarra era a fantasia, ajudava Mordomo, travestido de apresentador, a criar no público o pavor de que a mulher fera pudesse escapar da jaula.

E era assim que terminava o último número da derradeira função na cidade. Papai, ao mesmo tempo em que reclamava do respeitável público por atiçar mamãe, lhes relatava gaguejante de medo terrível fuga. Contava de alguma outra cidade, da qual inventava o nome, onde as pessoas não o atenderam e Goraylan escapara. Dizia de crianças mortas e despedaçadas, de mães gritando desesperadas e de homens que se vangloriavam de valentia a sair com as calças sujas. Dizendo isto dava um jeito de alertar a plateia para o fato de mamãe estar balançando, enfurecida, as grades da pequenina e frágil gaiola.

Mais um pouco e era o primeiro a notar que um dos lados da prisão estava cedendo e que o risco de a fera escapulir era real. Os mais medrosos iam dando um jeito de escapar, enquanto papai aumentava a tensão, dizendo sussurrante jamais ter visto a barbada tão furiosa. Era a hora em que Muralha acendia o estopim da forte bomba por trás da jaula. À sua explosão, fumaça, uivos e outros tipos de alaridos, partindo chiantes e esganiçados desde o disco de 78 rotações, viam-se reforçados pelos tantos gritos do povo assustado e papai no seu papel de ator a se desesperar, quase aos prantos, de que não poderia se responsabilizar pela tragédia e consequentes feridos e mortos. Que todos botassem sebo nas canelas e fugissem, pois que a grade não resistiria nem mais um minuto.

Mamãe gostava de comentar ser esta a maneira mais rápida e eficaz para se esvaziar o circo. Claro que esta atração especial somente poderia ocorrer uma única vez em cada cidade. E sempre na véspera da partida. Vez por outra havia problemas. Alguém mais viajado e que já nos assistira em outras paragens, denunciava a pantomima, mas papai, que nisso era mestre, logo arrumava um jeito de engambelar o povo.
Depois de uma semana naqueles arraiais insignificantes, o povo começava a mirrar. Aproximava-se a hora de caçar rumo. Papai ia para adiante sondar as redondezas. Escolhido o lugar, enviavam-se faixas e cartazes anunciando a próxima chegada dos artistas.

Acho que esse jeito de ir relatando, de forma meio desordenada e até esquisita a história, tem a ver com a experiência circense. É que nele a gente vivia do improviso. Do esticar, remendar, recolher e costurar a realidade. Assim, papai poderia ter dito, sem que houvesse a menor chance de que fosse mentira, que os espetáculos jamais se repetiam. Que cada função era única.

Nem me recordo se já lhes contei da tragédia, a primeira. Mamãe caiu do trapézio. Naquela manhã fatídica ela reclamara de dores de cabeça. Que não se sentia bem. Mas de jeito algum que se poderia adiar o espetáculo. O artista sempre está ótimo. E ela estava péssima. Ao dar o salto mortal duplo, realizado milhares de vezes, não conseguiu pegar o segundo balanço e despencou lá do alto. A rede de proteção, velha de tantos anos, soubemos naquela hora que estava podre. Mamãe passou como se furasse uma folha de jornal.

Em meio ao ohhhhhh da plateia, ela saiu do palco com fraturas na bacia, pés e pernas, carregada por Muralha e Remundo e tentando sorrir saudando o público, como se a queda fizesse parte do número. Papai alugou um taxi e a levou para a cidade grande da região. Aquela com mais recursos e foi nela que dois dias depois fui parar.

Na volta de papai nos reunimos preocupados. Mordomo relatou que a situação de mamãe não tinha risco de morte, mas que era coisa delicada e longa de se curar. Sugeria o seguinte: Que eu ficasse com mamãe durante a sua convalescença na cidade grande, enquanto eles a iriam rodear, não se distanciando muito para as visitas e gerando as receitas necessárias ao tratamento, bem como à minha manutenção.

Maria Eulália, papai fez um parêntesis dizendo que aceitava sugestões para o nome artístico dela. Já bem treinada, assumiria as funções até então exercidas por mamãe e, quando da cura, o circo estaria mais forte, com nova artista prontinha no picadeiro. E foi mais além, agora com pitadas de filosofia: que as desgraças sempre trazem no seu bojo algo de positivo, eis que eu, quase adolescente, poderia colocar em dia meus estudos, impossíveis de serem feitos como as das crianças normais, pelas constantes movimentações do circo. Nada nem ninguém poderia se contrapor a palavras tão sensatas de Mordomo e foi assim que me afastei do circo.

Na segunda cidade do circo após o fatídico evento, Muralha nos contou o que já estavam cansados de saber. Que Mordomo e Eulália partilhavam da mesma cama. Ao lhe chamar a atenção, papai queimou no golpe, brigou feio com Tio Alberto e fazendo-se de traído e magoado, desapareceu do mapa com ela.

Configurava-se então a nova tragédia. Pouco tempo depois, por absoluta falta de artistas e de direção, o circo se esfacelava. Diamante e Princesa, para que fossem pagas contas de remédios e médicos, vendidos para o trabalho da lavoura, os cachorros doados para quem os quisesse e jurasse tratar bem deles em suas velhices. A lona retalhada foi praticamente dada a alguns proprietários de caminhão e a um homem que precisava de um pedaço dela, para proteger a muito boa safra de milho. As madeiras das arquibancadas transformadas em cerca e lenha.

Estávamos na miséria. Remundo bebendo direto e, cabeça sonsa, desapareceu na cidade grande, na qual Muralha e ele vieram morar comigo e mamãe. Todos amontoados num pequeno cubículo. Procurado aqui e ali, soubemos por despachante da rodoviária que um homem, parecendo meio abobado, roupa assim, assado e chapéu esquisito, tomara um ônibus para a capital. Dele nunca mais se soube notícias.

Muralha, nem na tosse excessiva que o tomava desde as madrugadas, conseguia abandonar o cigarro. Quando começou a cuspir sangue, levaram-no à força ao hospital. As chapas do pulmão mostraram o quão avançada estava a tuberculose. Isolado, proibido de receber visitas para não contaminar gente sã. Um dia, quando já trabalhava na boemia, ajuntei um dinheirinho e fui ao sanatório para lhe deixar uns doces e revistas. Contaram-me que o grande Muralha tinha se finado fazia já uns dois meses.

A minha função continuava a ser, de alguma forma, semelhante à do circo: Alegrar as pessoas. Talvez a maior diferença fosse que esses agrados eram inacessíveis às crianças. Agora trabalhava numa cama redonda, meu picadeiro. Lado de fora da porta a placa imaginária: “Proibido para menores”. Era um circo negado às crianças.

Mamãe nunca mais andou. Cuidei dela até o final com bastante dignidade. Logo vi que havia herdado de Mordomo as artes da administração e prosperava. As meninas apreciavam que olhasse por elas. Cabecinhas ocas, abusadas tantas vezes por aqueles que deveriam delas haver cuidado, terminavam doidivanas na imensidão do mundo e eu as aconselhava, acolhia.

Não tinham se passado nem dois anos e era patroa. Cinco quartos e doze meninas. Bem escolhidas. Casa distinta, sem bebidas e a e proibição de fumar e de se andar indecentemente dentro dela. Somente nos quartos com os fregueses, que entre quatro paredes ninguém deve palpitar, podiam exercer o ofício sem meus olhares de controle. Óbvio que só quatro quartos eram usados. O primeiro, o melhor de todos, servia de moradia para mãe e filha.

A saúde de mamãe começou a dar sérios problemas, exato naquela hora em que mais conforto e cuidados médicos poderia lhe oferecer. Deixei a casa sendo cuidada por uma das meninas mais espertas e parti com ela para a capital, em busca dos melhores médicos e tratamentos. Definitivamente, não me importavam preços.

O primeiro doutor, figurão famoso por lá, depois de muito a examinar e analisar os exames, chamou-me de lado e, falando baixinho, afiançou-me que nada havia na medicina que pudesse ser feito. Pela minha cara de velório e porque lhe disse que iriamos consultar um médico ainda melhor e mais importante, mamãe entendeu tudo. O segundo clínico, tão, ou ainda mais nomeado que aquele primeiro, foi ainda mais taxativo. Mamãe estava quase nos finalmentes da vida.

Resolvi lhe dar o que pudesse de melhor em seu resto de existência. Desde criança escutava seu sonho de visitar o Rio de Janeiro. Queria demais conhecer o mar. Por esta época podia me dar ao luxo de escolher clientes. Só concedia prazeres a homens finos e um deles, bem rico, comerciante grande do lugar e já meio idoso, estava caído de amores por mim.Queria porque queria montar casa paralela à da mulher e filhos para nós. Ficou feliz demais em nos levar ao Rio em sua camionete de luxo. Mamãe ia deitada com uma enfermeira na carroceria coberta de lona, tal como o circo, e eu viajando ao seu lado na cabine.

Viagem por demais longa e cansativa, eis que era exigente com nosso motorista, para que a velocidade fosse a menor possível e que todos os buracos da pista fossem evitados. Na Cidade Maravilhosa montamos uma operação de guerra para que mamãe pudesse, não somente conhecer o mar, mas banhar-se nele. A maca que tínhamos projetado de antemão, levava a querida doente deitada pela areia e ela pôde molhar seu corpo nas águas, naquele dia bem frias, de Copacabana. Foi a última vez que vi mamãe sorrir, ao levar à boca a mão com um pouco da água, a me dizer “é salgada mesmo, filha!”. Estava tal qual criança. Naquela mesma tarde dormiu cansadíssima no hotel luxuoso. Seu despertar não se deu mais aqui. Foi no céu.

Defini que mamãe deveria descansar naquele último lugar que a fez verdadeiramente feliz. Sonhara tanto em conhecer a cidade e seria nela que viveria eternamente. Seria para mim boa desculpa tê-la por lá, para visita-la e curtir o Rio com o amante, ou algum outro cliente interessante da ocasião.

Comprei o melhor caixão, disseram-me ter sido feito de madeira de lei. O crucifixo e os parafusos grandões para se lacrar a tampa eram de cobre e o vidro, através do qual se via o rosto, de cristal. Mamãe foi levada pela Funerária, para ser velada numa bonita Capela. Lugar estranho, constituído de várias salas, cada qual, tendo um corpo repousando. Havia aquelas salas dos ricos, amplas e adornadas por várias coroas de flores, muita gente chique em volta. Mais adiante, meio escondidos, ficavam os velórios das pessoas pobres, alguns se via que nem flores sobre o corpo havia. Aluguei, claro, o melhor local disponível e adquiri três coroas, das mais finas. Uma quarta tinha sido presenteada pelo meu namorado.

Somente três pessoas a velar o corpo. Fosse onde residíamos, pelo menos as doze meninas estariam conosco. Altas horas, bem pouca gente resistia por lá e fui dar uma volta pelas capelinhas com seus provisórios moradores defuntos. Morresse mais alguém teria que esperar, ou ser encaminhado para outro daqueles locais que, soube, havia vários. Quase caí para trás ao chegar à última capelinha, a mais pobrezinha de todas. O homem que lá jazia tinha o mesmo nome de papai. Do susto ao sorriso pela coincidência foi um único respirar. Uma mulher somente cochilava sentada e curvada ao lado do caixão. Entrei.

Valei-me Nossa Senhora da Boa Morte nesse meu momento de desespero! Não era possível de haver engano. Mesmo com o passar dos anos, estava evidente que aquele homem envelhecido era o meu pai. Dei um grito de pavor, ódio, indignação e sei lá mais de que sentimentos me tomavam naquele instante. A mulher abriu os olhos, levantou-se no susto do meu imenso espasmo de dor e nos reconhecemos.

Chorávamos as duas, cada uma de um lado do esquife. O destino a nos pregar peça do demônio. A última tragédia. As capelas mortuárias transmutavam-se em novo circo, agora dos horrores. Reunidos novamente, papai e mamãe a dormir. Juntos. A vontade que tinha era de esgana-la, mas ela foi chegando de mansinho e me deixei abraçar. Não me dou conta do porquê de ter permitido isto. Só sei que meus braços a apertavam também. Em meu ouvido esquerdo Maria Eulália sussurrou delicada: Não me culpe, por favor, a tudo fui obrigada e nunca me perdoei por isto. A culpa foi de Mordomo.

Nunca imaginei que fosse chegar aos oitenta anos. A vida me foi várias vezes madrasta, vocês como se ela fosse um grande caderno a me explicar as coisas. Hoje bem sei a razão de ter me deixado abraçar por Lalinha. Ela também, tal como eu, Raimundo, mamãe e Muralha era uma vítima do circo, do mundo. A Mordomo, que pôs tudo a perder, também perdoo as fraquezas e pecados. Afinal esta era a sua sina. Em toda cidade cantávamos: “E o palhaço o que é?” E a resposta me chega hoje definitiva: “É ladrão de mulher!”

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 15/06/2015
Alterado em 04/11/2016


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