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CADERNO SECRETO
Meu querido diário. Sim, sei que você está com raiva de mim. Há quatro anos, vejo pela dedicatória, você foi meu presente de aniversário mais amado. Caderno tão lindo e ainda com essa chave rosa, que mesmo me trazendo dúvidas se é mesmo segura, acho o máximo.
Mas que mesmo sendo frágil seu cadeado, ninguém cometerá o ato de lhe abrir, já que o deixo muito bem guardado. Lugar mais que à prova dos olhares bisbilhoteiros da mamãe e de quem mais quiser saber dos meus segredos.
Antes já tinha pedido perdão a você por tê-lo deixado, por mais de três anos, você mofando no fundo da gaveta de blusas. Agora, já com dezesseis anos, idade que talvez várias pessoas (gente é tão chata) irão achar que não seriam mais condizentes com uma adolescente a fazer diário, assumi com você o pacto de lhe contar meu dia a dia.
E então, estou aqui de novo a lhe pedir perdão, por estar há mais de uma semana sem vir e deixar, bem registrados, os fatos marcantes dessa minha vida tão sem graça. Mas, veja bem, querido Di. Não seria exatamente por isto que não vim? É que não houve, como sempre, nada marcante.
Sim, a vida tem estado tão bobinha. Da escola para o ballet, do ballet para o inglês. Lá da aula de inglês para o treino de vôlei, do vôlei para o quarto a fazer os exercícios. Sempre tantos, sempre tão exigentes.
E, pior, muito pior ainda. Ele nem sabe que existo. Pois nunca me viu. Devo ser um ser invisível para a pessoa mais amada. Ele jamais me reparará e olhará para esses meus olhos tristes, que só têm alegria quando o veem passar.
E o tanto que tenho de ficar dando respostas, oferecendo milhares de explicações e atendendo ordens? “Como foi seu dia? E a escola, está tudo bem? Sentindo dificuldades em alguma matéria? Já saiu o boletim com as notas? Precisa se alimentar melhor, comeu frutas hoje?”
E nem lhe digo do que é ainda mais irritante, mais constante e que me causa ódio: “Já arrumou seu quarto? Como consegue molhar todo o banheiro e não somente o box? Não esteve com as amigas há pouco. Por que ficar escrevendo para elas meia hora depois? Colocou as roupas para lavar, não é? Baixe um pouco esse som senão logo irá ficar surda...
Pois é. Por conta de coisas assim quem terminou punido, deixado aqui no fundo desse lugar secreto, foi você. Mil desculpas e prometo que todo dia, querido Di, daqui por diante, virei para lhe contar, pelo menos do tanto sem graça é a existência.
Mas estou aqui com você e, já que me faço presente, quero lhe falar de uma coisa meio maluca (como tudo em mim, que sinto ser assim, tão estranha, esquisita). É que desde que me entendo por gente tenho estado a seguir os padrões. Os jeitos de ser que as pessoas me exigem, pedem, ou mesmo deixam sugeridos. Acho que aprendi a seguir regras, sabe? E passei a gostar delas, os padrões dos outros. Como? Não está entendendo por aonde estou indo e onde quero chegar?
Pois lhe explico então, Diário querido. Lembro-me que, quando ainda muito pequena, mamãe se encantou numa tarde qualquer, com algum passo de dança bem bobinho que executei e fazendo cara de encanto e espanto disse: “Ownnnnnnnn, que lindinha. Mamãe adora quando a filhinha dela dança assim tão bonitinho!". E não é que era só ver mamãe que lá começava eu a bailar? Agora você sabe que não é por acaso que faço ballet e por que, já lhe escrevi isto mais de uma vez, tanto odeio a dança.
E papai que achou que eu era poeta? Isto porque, por acaso, acertei alguma rima e isto num tempo em que nem era de falar direito. Comia um tantão de sílabas e errava conjugações. Pois ele falou para todos: “Olha que a minha filha é tão inteligente. Ela já nasceu com este dom para a poesia. Que orgulho tenho dela. Será uma famosa poeta com certeza!” Então, era só ver papai que começava a cuidar do jeito de falar, para poder dizer algo interessante. Passei a ter atenção com as palavras, não porque desejasse aquilo, mas simplesmente para agrada-lo.
E vovó que nos visitando um dia, foi me receber, vinda da escola, à porta de casa e me elogiou demais o uniforme todo limpinho que naquela hora eu trajava. Não que fosse sempre assim, pois o sujava demais, mas talvez, nem consigo me lembrar, aquele fora um dia de chuva e nos obrigaram a permanecer protegidas na sala, mesmo durante o recreio. O costume que gerou daí foi que só me colocava em frente à vovó se estivesse aprontada como se fora uma boneca daquelas que a criança era proibida de brincar.
Limpinha, arrumadinha, passadinha, como se houvesse tomado banho somente passados cinco minutos. E eu que adorava brincar no pátio, jogar queimada, chutar bola, correr atrás dos meninos, passei a me ver como a garota que jamais podia chegar do colégio mal arrumada em casa. E se fosse só isto, mas também na vida.
Ah, se existissem em mim só esses três padrões! Querido Di, seria quem sabe ter esse trio, algo razoável, coerente com uma estudante de vida sem graça como a minha, mas é muito mais do que isto.
Têm os padrões que me foram passados pela professora, aqueles então me sugeridos por um tio querido. Fora os da Milena, melhor amiga da mamãe e que me indicou alguns outros... E nem vou lhe cansar com um tantão de modos de ser que fui adquirindo e passei a administrar no dia a dia da existência.
Fossem esses tais jeitos de viver, essas máscaras aborrecidas, algo que me trouxesse colorido para a vida insossa, tudo bem. A questão é que não me trazem nada de interessante. Ao contrário, me cansam, me fazem ter que ficar atenta, pois que cada um que chega, traz junto a obrigação de me comportar de uma maneira diferente.
Semana que vem, não sei se você já leu nesse calendário do Século que está na sua segunda página, teremos o carnaval e estou aqui, com toda a nossa cumplicidade para lhe dizer, em primeira e única mão, pois que só você é quem irá saber disso, que surpreenderei todo mundo durante a folia.
Sim, jogarei fora as fantasias. Não usarei mais nenhuma. Aquelas máscaras que me foram dadas e que assumi, serão quebradas e farei diante de cada um dos que me presentearam com elas, exatamente o contrário daquilo que esperam que execute.
Nesses dias loucos se vestem máscaras e fantasias. Pois eu, ao contrário, tirarei todas elas! A partir da folia, querido Diário, Maria Laura será ela mesma e não mais uma personagem qualquer das pessoas que a cercam.
Um beijo e não se esqueça do nosso compromisso. Tudo que lhe conto é segredo só nosso. Nunca diga e nem sugira nada para nenhuma outra folha de papel. Nem aquela que seja sua mãe, irmã, ou melhor amiga.
Maria Laura, sem máscaras e fantasias, para sempre.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 28/09/2015
Alterado em 04/11/2016
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