NOS ESCUROS DO ECLÍPSE (ec)
Manhã já vai alta, café esfriado no bule, bandeja da broa de fubá cheia de mil farelinhos, no se pegar desajeitado com os dedos, alguns capitães dele e assim lhe digo, dona, que gosto demais de estar debaixo dessa gameleira, a lhe revelar o segredo que me aflige, pesando aqui no fundo da capanga, desde vários anos. E conto meio enviesado as coisas, assunto que pode causar vergonhas. Mas para que compreenda melhor o que estou a lhe dizer, nas cumplicidades dessa manhã fria, não me amedronto. Falarei bem diretamente, cuspindo, tim tim, sem rodeios. Assim do fio, embebido no querosene, até o final do pavio no qual a chama diz presente.
Vida que tem início sempre nos escuros e ela seguia no mais do seu natural à espera da luz. Vida partida desde o preto da noite, para o se recomeçar naqueles devagarzinhos de se clarear no debaixo para riba, até que a coroa brilhante de fogo dê as caras, nos começos do seu deslizamento céu afora até que, lá das bandas que se clareou primeiro se começar, jornada cumprida, o lusco fusco eis que vai se aproximando a hora em que o caipiroto retoma posse de tudo. Volta a reinar nas penumbras do existir do cristão.
Tempo das escuridões no qual vigora as aflições de se ter uma coragem pouco viçosa. Assim diluída na água das veredas. Tal qual aquela receita que médico não gosta, de se dar um pouco de cachaça na água com açúcar para crianças, no choro da dor de dente, poderem dormir.
Pois que o existir segue assim em todo santo dia de Nosso Senhor Jesus Cristo? Eu lhe assevero que não. Tem, o tempo da Onça Preta das Sete Patas, em que o sol, mesmo nascido, recua. Tem a tenência de se esconder, cheio de medo do Coisa Ruim. Momentos em que os breus aparecem assim e prevalecem por um período até que Deus tome tento lá nas alturas, vibre no ar o chicote e resgate o poder do mundo.
Esses são os tempos dos tais eclipses. Sim, este é o nome que aprendi com seu Honório, homem sábio, estudado farmacêutico da Escola de Ouro Preto, com botica famosa em rua larga no Corinto, cidade razoável lá dentro do sertão, no entremeio de uma prosa na tentativa infrutífera de me acalmar, que nas aflições fui até ele adquirir uns remédios de se gerar paz nos espíritos e se poder repousar. Ganhar de novo as coragens, que angústias e ansiedades assim fazem com que elas se esvaiam.
Mas se é desses jeito, e quem faz esse tal do eclipse? Bem não poderia ser o Bode Velho de Chifre Torto e Pé Virado? Pois que conto para a senhora que foi numa tarde assim, ao passar por uma dessas escuridões, estando numas alegrias lá na casa das damas, beira do São Francisco, no entre uma e outra das cidades de Buritizeiro e Pirapora. E havia a diversão na grande sala de janelas fechadas, em respeito às pessoas viventes dos outros lados das paredes, gente que até ia, ou vinha da Igreja logo adiante.
A música da viola triste, dedilhada pela cega Catarina, de olhos de um branco de se dar tremores, pois que brilham e uns jeitos de me mirar como se estivesse rindo dos desejos mais ocultos. Aqueles dos quais até mesmo tenho medo de sonhar, muito mais ainda me angustia sentir, nos acordados, que estão presentes em mim. Tarininha, que é assim que as mulheres a chamam, a cantar, com sua voz bonita e afinada, as canções de amor sofrido e que me fazem mesmo chorar escondido na penumbra, que homem que é homem ninguém deve de ver numa situação assim. E senhora não acha que naquele aprazível lugar não seria de se apreciar somente cantigas de se alegrar a vida?
Pois foi nesse bem bom, horas em que estava de olho numa moreninha vinda das bandas do Montes Claros, dentes de sorrisos muito brancos, corpo sacudido, que mulher magriça não tem bastantes lugares de se apalpar com os maiores gostos. Ela me olhava apreciadamente também? Pois que desse afiançar não saberei lhe dar agumas certezas. Mulher mesmo a me gastar os olhos era uma que nem feminina total era.
Sou obrigado a confessar aqui para a dona, pois comigo a mentira não viceja, que até passeava, no afã de olhar no depois dela a minha morenona, pelo corpo e rosto dessa tal quase ser, sem ser, dama. De boniteza diria que até mais que a minha montesclarense. Boca e mãos grandes, pernas de quem sabe andar a cavalo, grossas e feitas de rijos músculos. Mas escolha mesmo, estava mais que definido, que nunca iria deitar numa cama com alguém por mais feminina que fosse, com as minhas mesmas semelhanças físicas, senhora balança a cabeça nas concordâncias? É impressão minha somente?
Pois não é que eu, nesse justo dia, copo no bebericar da pinga, nesse meu formato de ser meio desajeitado, homem de pouco jeito de me aproximar de dama, que sou bom mesmo é de luta de faca e de tiros entre varões em campo aberto. Num repente, salto da poltrona funda, assustado com a entrada, assim do nada, de Joca Capistrano, meu homem jovem e valente, rapaz viril e bonito, da minha mais alta confiança de permanecer obediente do lado de lá da porta, por modo me dar os sobreavisos de algum perigo.
O homem, estou a lhe dizer, abriu a porta de sopetão, que até cheguei a apalpar a arma, que dessa nunca, nem na hora dos prazeres, me afasto dela no risco de se encontrar algum inimigo, ou mesmo a polícia, o que no final das contas dá exato no mesmo. Pois que o meu guerreiro sentinela, cara de menino assustado, suava de pavor, a me dizer que o mundo estava nos princípios do se acabar, pois que a noite já acontecia. Ponderei, homem sem letras de escola, mas da mais alta sensatez que sou, ao mesmo tempo em que deixava um pouco de olhar para a tal mulata e suas vizinhanças, que se acalmasse, que era chuva forte se avizinhando e o moço já foi falando um não senhor, meu chefe, que nem sombra de nuvem há nenhuma no céu.
Mão no coldre e corremos todos para o quintal e não é que aquela era a maior verdade? Tudo na escuridão do maior breu. Pensei bem que seria a hora de partir para a matriz, de se postar na imploração de que fossem perdoados os pecados. Dos mais antigos até aquele de momento que eu não estava ali naquela casa para novenas e rezas. Senhora é doutora formada nas faculdades da capital, mulher de observar e de ensinar assuntos profundos e a me escutar nessas rasuras. Madame sabe, pelos seus estudos, das forças tremendas que têm os desejos no se mover dentro das pessoas.
Pois, nessas horas de muito medo é que em mim rompe a mais coragem. Banco de Igreja, com aquela tábua de se botar joelho em terra nada, que eu mais queria era do usufruir de uns gozos da existência. Trilha seguisse rumo ao inferno que fosse acompanhado pela morena. Uma boa viagem. Chegaria quente naqueles calores. Quente e feliz. Senhora será capaz de medir tamanho encorajamento eu tive naquele momento? E no justificar os pensamentos de não ir para a Igreja, sussurrei, boca para a orelha, que não seria pessoa bem grata por lá, eis que cobrava dízimo de proteção do padre e dos fiéis e isto, a dona não vá achar que meus ouvidos espalhados por aí não me contem. Deixava o povaréu cheio de raivas e temores de mim.
Pois que ordenei, para que não aumentassem meus medos e me reparassem sofrendo neles, que Joca voltasse ao posto da guarda e que todo mundo fosse cuidar dos seus desejos nas escuridões de cada quarto, menos meu sentinela. Ordem que dava era para que apanhassem a dama que mais apreciassem e se aviassem que o mundo não tardaria em se findar.
E fiz esse discurso me achegando primeiro na tal morena que lhe contei, mais pelo perfume dela do que no se ver exato, que ali era reino de Catarina, não se enxergava um nada. Nem podia correr o risco de que algum dos meus capangas dela lançasse mão e precisasse fazer valer minha autoridade. Segurei no braço forte da minha escolhida, que ágil passou a me guiar pelo corredor rumo ao seu aposento de amores.
Foi o bem bom mais aprazível que já vivi. Coisa assim de se dar gemidos, de se fazer e escutar uiuiuis e de se gargalhar nuns mais que largos sorrisos, esquecidos nós dois de que o mundo lá fora ia se acabando. No começo achei nas tarefas de se beijar, que ela possuia um rosto feito de uma pele carecendo de alguma maior finura. Peitos também que muito aprecio, eram poucos, mas as pernas grossas tão compensadoras que deles ali não sentia falta.
Pois foi num momento de descuido dela que vi que tinha errado a dama. Que esta nem morena era. Pois não é que havia levado para o quarto a tal quase ela? Raiva veio e raiva se foi em segundos, que tinha aprendido tão ligeiro, qual raio, a apreciar daqueles carinhos. Palavras dela ao deixar o quarto, voz grave, ainda ressoam em mim. Você, meu bem, é especial.
Depois disso passei a viajar também nesses outros trilhos, senhora é a primeira a saber, fora dos círculos das buscas desses prazeres nos meus escuros mais sem luz. Os capangas, meus liderados companheiros de armas, nem podem sonhar tal possibilidade desses gostos enviezados, que dirá tais fatos. E sinto que aprecio de gostar desses favores, que são de diferentes das normais cores, mas não deixam de ser amores. Senhora, lhe contei tudo, por favor, me responda na sinceridade dos seus conhecimentos, das suas vastas sabedorias a nos estudar aqui no sertão: Deixo de ser homem por ser assim? Passo a uma diferente categoria?
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 09/11/2015
Alterado em 04/11/2016