A FOTO DO MENINO
A manchete do jornal tranquilizava a população. O bandido que há três meses aterrorizava São Paulo fora encontrado. O facínora que não se contentando em assaltar e humilhar casais abusava das moças amarrando seus namorados e os obrigando a assistir tudo para em seguida mata-los, estava preso.
- Dezoito anos tem o desgraçado. Jovem assim e tão perverso. Com tantos crimes para pagar espero que jamais saia da prisão.
Marcelo passava os olhos pelas notícias do jornal comentando-as com Maria Laura.
- Vi a notícia no site, ia te falar, mas vi que dormira. Graças a Deus ele está entre as grades.
- A turma abusa. Namorar assim em tempos de violência é querer dar chances ao azar. Conversei com Claudinho, mas como sempre tive a impressão de que minhas palavras entraram por um ouvido e saíram pelo outro.
- São assim os filhos. Fazer o quê? A gente alerta e fingem que nos escutam. Olhe a foto dele, amor, parece um menino frágil. Pelas impiedades e atrocidades cometidas tinha a impressão não só de ter mais idade, mas também de que se tratasse de ser imenso. Um armário de uns dois metros de altura.
Laura apanha o jornal, enquanto o marido vai se levantando, xícara à boca no saborear do último gole de café. Só possuía cinco minutos para terminar de se aprontar e sair. Perdesse a condução das sete somente chegaria ao centro depois das nove. Beija os lábios da esposa e a sente gelada. Sai do automatismo e repara a paralisia dela diante daquele retrato.
- O que foi meu amor? Está pálida. Tão fria que parece ter vivido um tétrico encontro com a morte. Ter visto, por trás da foto do assassino a tal aterrorizante dona da foice.
- É ele, tenho certeza de que é ele. Veja o nome: Genivaldo. Você brincou dizendo que nunca teria um filho chamado assim. Não se lembra e por isto ri? Esqueça o nome. Mire nos olhos. Eu nunca esquecerei esse olhar.
- Você, minha querida, e suas fantasias. Isto foi no Rio, aquele garotinho, como o nosso Cláudio, era carioca. Já se passaram quinze anos. Moramos em São Paulo, onde ocorreram os crimes. Tudo bem que sejam homônimos, mas você acha mesmo que só houve um Genivaldo registrado no país naqueles tempos? Vai ver era nome de jogador de futebol, ou vereador populista apadrinhador de crianças nas comunidades. Não repara no tremendo mau gosto que os pobres têm ao nomearem os filhos? Relaxa, vai.
Maria Laura não se acalma. O marido nem bem fecha a porta e corre para o quarto. Busca a caixa guardada a sete chaves. Aquela que continha o processo de adoção. Mexer naquilo, rever a papelada, era trazer de volta tudo o que sofrera.
Recebido o diagnóstico definitivo da incapacidade de engravidar, passaram por grande raiva. Em seguida sentiram, como casal, a depressão. Nessa época a hipótese da separação chegou a ser cogitada. Passado mais de um ano, ela descartou o projeto da inseminação artificial e, em seguida, uma barriga de aluguel. Começou a trabalhar a hipótese de adotar uma criança.
Marcelo que no começo nem admitia tal saída, aos poucos foi sendo doutrinado até que mais ainda do que ela apaixonara-se pela ideia da criança. Quando deram início aos trâmites para a adoção dois pontos punham-se bem definidos. Seria do sexo masculino e que não fosse bebê. Buscariam uma criança com idade entre dois e quatro anos.
Surpreenderam-se ao caírem em conta de que para crianças maiores a oferta era maior do que a procura. Houvessem optado por um recém-nascido teriam que aguardar numa fila imensa. Depois de passarem pelas investigações e reuniões com assistentes sociais, terem respondido a vários questionários e feito entrevistas com psicólogos, foi-lhes dito estarem aptos para a adoção.
Nessa hora lhes foi entregue, junto com uns sumários, fotos de dez meninos no perfil escolhido. Poderiam, mais friamente, realizar uma triagem inicial. Marcelo, irônico como sempre, lhe disse ao chegar e vê-la com aqueles envelopes pardos, que parecia estarem contratando algum empregado e não escolhendo o filho.
De cara separou, deixando-os de lado, os textos sobre os garotinhos. Focariam seus retratos. Colocou-os sobre a mesa numerando-os de um a dez. Era o marido que vinha com algum sarcasmo novamente, a indagar se participaria de sessão espírita na qual perceberia um piscar de olhos, um sorriso maior, algum movimento sutil enfim que o fizesse ver que algum daqueles abandonados o chamava. Como Laura ignorou tal insinuação idiota, entrou com ela no jogo. A regra era que, depois de dez minutos, sem nada dizer um ao outro, anotassem num papel os números daqueles três que seriam descartados.
Coincidiram em dois números e os tiraram. No caso dos escolhidos somente por um deles haveria de se explicar o porquê da eliminação. Houve acalorada discussão, cada um defendendo, emocionado, seu garoto. O bom senso prevaleceu.
- Se estamos brigando desde agora é porque não dará certo tê-los como filhos.
Laura afirmou e Marcelo concordou. Naquela primeira noite, dos dez candidatos ao amor de família, quatro estavam fora.
Ela levou para o escritório os postais e os ampliou. Ficaram do tamanho de folhas ofício. Renumerou-os e os pendurou, numa espécie de varal, na sala de jantar. Que não se precipitassem, tinham tempo. A escolha necessitava ir se dando naturalmente. A nova regra do jogo era a de se olhar, sem compromisso, os garotos pendurados na corda. Assim que algum insondável motivo dissesse que não seria legal assumir um deles como filho, que deixasse o sentimento criar raízes, para então conversarem.
Após vinte dias e vários choros, que de racional pouco havia no estranho método, três meninos restavam nas paredes. “Sorriso Leve e Gostoso”, “Intelectual Sério e Profundo” e “Olhar Inquiridor e Enigmático”.
Vencera o mês e a assistente social ligou indagando se desistiram. Precisavam liberar as crianças para novos possíveis candidatos. Laura ditou-lhe os nomes fora da disputa. Falou dos finalistas. Da dificuldade em escolher entre o sorriso, a seriedade e o olhar.
Acolheu a sugestão de visitarem os três. Dois moravam numa casa na periferia. O outro na área rural de uma cidade vizinha. O primeiro foi “Intelectual Sério e Profundo”. Conversaram, brincaram e, por mais que o menino, na carência imensa de abandonado, se jogasse nos seus braços, sentiam não possuírem semelhante energia para acolhê-lo.
- Pois é. A corrida nessa reta final, só tem dois atletas. E se não escolhermos nenhum deles?
Ditas assim desse jeito essas palavras de Marcelo marcavam o tanto aquele jogo os comprometera e o medo que sentiam de ter que recomeçar tudo desde a estaca zero.
No sábado seguinte lá estavam na outra creche. Nem bem entraram e a responsável lhes contava da coincidência de terem optado, entre tantas crianças, por conhecer dois que são mais que carne e unha.
- Só brincam juntos, têm os mesmos gostos, jamais brigam. Dormem e acordam um ao lado do outro e à mesma hora. Mas crianças enturmam logo e novos amigos têm o dom de fazer com que sejam esquecidos os antigos.
- Será que sugere que levemos os dois?
Laura cochichou para Marcelo enquanto a senhora magra, depois de saber que preferiam vê-los em separado, buscava o primeiro: Genivaldo, o “Olhar Inquiridor e Enigmático”. O escolhido, ou os dois no caso de impasse, iria com eles ao Zoológico, depois o almoço, um cinema e a devolução ao final da tarde. Adorou o menino, mas Marcelo cismou que havia algo nos olhos dele que não batia.
- Ao mesmo tempo em que firma em mim o olhar, sinto que esteja vendo além e isto me deixa aflito.
Laura discordava. Apreciava e se sentia bem naquele olhar diferente. Chegara a hora de Cláudio. Seu sorriso, a falta de receio do que, ou de quem iria encontrar, foi que abriu a porta. Nem bem entrara e Marcelo derretera. Não desgostara dele, mas amor mesmo, de paixão, de dar arrepios, Laura sentira foi com aquele olhar anterior.
Solicitaram um tempo e debateram bastante. Marcelo estava firmemente decidido por Cláudio “Sorriso”. A partir das ponderações de Laura, da defesa que fazia de “Olhar” e para que aquilo não findasse em desagradável conflito, optaram por sair com os dois.
No banco de trás seguiam alegres e foi então que Genivaldo perguntou:
- Mãe, após o zoológico iremos todos morar juntos, não é?
Assustada Laura se vira e encontra aquele olhar forte, diferente, inquiridor. Foi uma tarde angustiante. Bom só para os garotos, encantados com tudo que viam e experimentavam. Ao devolvê-los sentiam cansaço e certa tristeza. Foram dias de discussões infindáveis e intensas lágrimas.
Marcelo vencera. Ter perdido fez com que se esforçasse ao máximo para amar mais ainda o filho. A cada minuto Cláudio perguntava por Genivaldo. Seguidas noites só dormia depois de chorar intermináveis horas. Por vários dias esteve tristonho, pelos cantos, sem curtir o lindo quarto novo, as montanhas de brinquedos e o carinho que lhe propiciavam. Absorta em meio àqueles papéis nem reparou na chegada de Cláudio.
- Que foto é esta, mamãe?
- Oi, filho, bom dia. Cá está sua mãe a relembrar a vida. Digamos que uma foto qualquer.
Aquele “Olhar” tão encerrado no passado, não era uma foto qualquer, sabia do tamanho de seu significado. Teria que carregar até a morte aquele pecado por ter se deixado vencer. Aquele olhar voltara e, vingativo, saltava selvagem em seu rosto naquela foto do jornal.